Jornalismo Júnior

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A Liberdade sob a ótica do deus do trovão

Em crônica, a importância do bairro paulistano na construção cultural do Brasil, desde a formação pelos imigrantes no século XX à manifestação religiosa na tarde de uma quinta-feira   Por Bruna Diseró (bubslovegood@gmail.com) Saindo do metrô, eu me deparo com a Liberdade. Quantas vezes já andei por suas ruas, é incontável. Em todas elas, a …

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Em crônica, a importância do bairro paulistano na construção cultural do Brasil, desde a formação pelos imigrantes no século XX à manifestação religiosa na tarde de uma quinta-feira

 

Por Bruna Diseró (bubslovegood@gmail.com)

Saindo do metrô, eu me deparo com a Liberdade.

Quantas vezes já andei por suas ruas, é incontável. Em todas elas, a minha visão recai, primeiramente, no calçamento que reveste o chão do bairro: o símbolo mitsudomoe. Expressando a força em geral, o mitsudomoe é a união do Céu, da Terra e do Homem, representados pelas aparentes vírgulas que compõem o círculo do desenho.

A força, aliás, mostrou-se uma qualidade inerente aos primeiros imigrantes que formaram, em 1912, o bairro nipônico. Escolheram a região, próxima ao centro de São Paulo, pelo custo do aluguel dos porões que lhes serviam como morada inicial. Rapidamente, a rua Conde de Sazerdas recebeu o apelido de “rua dos japoneses” e, vintes anos depois, havia cerca de 2 mil japoneses na capital.  Contudo, só após o término da Segunda Guerra Mundial houve a consolidação do bairro da Liberdade como centro acolhedor dos nipo-brasileiros, já que o Japão deixara de ser um país inimigo.  São Paulo tornara-se, definitivamente, sua Terra.

Liberdade para os japoneses que escolheram viver no Brasil, Liberdade derivativa da praça que o corta e que relembra a abolição da escravatura, já que o local era, antigamente, o Largo da Forca, dos escravos. Essa é a minha segunda visão do bairro.

Banca de jornal na Liberdade. (Bruna Diseró/J.Press)

Confesso que a Praça da Liberdade é a primeira visão de muitos que o visitam, pois abriga a estação de metrô homônima. Caminhando por sua rua alargada, palco da Feirinha típica que colore os sábados do bairro, oferecendo amostras da cultura japonesa aos visitantes; vejo a multidão que passa. A maioria, absorta em sua rotina caótica, atravessa a avenida sem perceber onde está. Vendados pelo invisível tecido do estresse, programados para assinalar os itens obrigatórios de seu dia a dia o mais rápido possível. Outros, poucos em uma quinta-feira, veem tudo. As lojas são atrativas por sua comum excentricidade. A mais antiga, inaugurada em 1947, é a Livraria Sol (Taiyodo ) que importa impressos japoneses pelos EUA. Adentrando-a, é como se o meu período de alfabetização não houvesse existido, já que os primeiros livros e revistas que encontro são todos em língua oriental. O público, no entanto, é misto: há aqueles que, assim como eu, não entendem a escrita, mas se encantam com as figuras; há aqueles que compram jornais e revistas para lê-los e se informarem, de fato. A variedade dos impressos também impressiona e exemplifica a cultura japonesa atual: entre livros que ensinam dobradura, jardinagem e jornais, há revistas de moda pop com sua efusão colorida e mangás, quadrinhos de estilo próprio oriental.

Saio da livraria e sigo em direção à Rua dos Estudantes. O meu pensamento foi capturado pela cultura jovem do Japão, capaz de imprimir revistas que são compradas por brasileiros que não leem japonês. Novamente, a idolatria da imagem. Dessa vez, agindo de maneira positiva para que o Ocidente afrouxe as amarras culturais norte-americanas e conheça as revoluções nipônicas nessa área.

Mangás japoneses. (Bruna Diseró/J.Press)

Relembro que o primeiro contato com esse tipo de cultura pelos brasileiros ocorreu pela televisão. Os famigerados anos 1980, trouxeram séries como Jaspion e Ultraseven para a casa brasileira, estreitando os laços oriente-ocidente e deixando o público habituado com o que era popular no país do Sol Nascente. Assim também ocorreu com os animes, desenhos feitos com o traço que também aparecia nos mangás, histórias em quadrinho que invadiram as bancas de jornais brasileiras em 1990. Era a época de fenômenos como Sakura Card Captors, Sailor Moon, Cavaleiros do Zodíaco, que abriram as portas para que os apaixonados conhecessem outros aspectos culturais populares do país. É assim que, hoje em dia, podemos ver, em eventos, brasileiros que são cosplayers de algum personagem que lhes é querido. É assim também que outros são adeptos de nichos alternativos como o Lolita, moda que é inspirada no rococó e na era vitoriana e possui inúmeros sub-estilos, sendo o estilo alternativo (kei) mais conhecido por aqui, hoje.

Ironia, penso. Os motivos que levaram à criação dos estilos alternativos pós Guerra Fria no Japão, assim como a tradição cultural subvertida que permitiu a invenção do traço típico dos mangás, pertencem a uma realidade tão distinta daquela que o Brasil enfrentou e enfrenta que é imensamente irônico estarmos absorvendo os fluidos culturais que o país consegue emitir pela Internet. Lembro que o Brasil é o país que abriga a maior quantidade de japoneses fora de seu país original e a ironia se atenua. A bem da verdade, fomos impactados por essa imigração e a identidade brasileira também foi edificada por tijolos orientais. Talvez, isso é o que torna o Brasil como é. Mas, esses, são apenas devaneios em uma curta caminhada até a Rua dos Estudantes, a minha terceira visão.

Nela, as casas que vendem lámen integram a paisagem das sobrelojas. A culinária japonesa também conseguiu conquistar os brasileiros com seu sabor suave, exotismo no modo de preparo e possibilidade de juntar os amigos para saboreá-la. O lámen é um prato estranho aos habituados a irem em rodízios de sushis, mas nem por isso é menos tradicional na mesa oriental do que eles, atraindo brasileiros dispostos a experimentarem o macarrão temperado ao mesmo tempo que trocam conversas.

Descendo a rua, um mercado me chama a atenção por ser novo em minhas explorações pela Liberdade. O nome já indica a origem dos proprietários — Korea Market. A nova urbanização do bairro identificado como reduto japonês em São Paulo conservou os comércios tradicionais, mas fez com  que as novas gerações procurassem outros lugares para morarem. Assim, a Liberdade tornou-se um bairro não exclusivamente nipônico, mas sim, oriental. É por isso que me deparei com um mercado que oferecia produtos importados da Coreia do Sul e que tocava k-pop em seus alto falantes, música que também angariou fãs brasileiros que trouxeram aos solos tupiniquins muitas bandas para fazerem shows em casas famosas. É por isso também que, seguindo para a Rua da Glória, ouvi o som que as crianças fazem quando estão contentes e ao olhar para a origem do barulho, vi uma escola primária e percebi que o seu nome estava em chinês. A Rua da Glória é a minha quarta visão, mais pluralista agora que percebi a miscelânea oriental que a Liberdade atualmente possui, do bairro.

A rua que acolhe a Associação Chinesa de São Paulo, também é o abrigo dos karaokês, substitutos das casas noturnas, e que se tornaram a moda do bairro. Outro ponto que atraiu a atenção dos brasileiros amantes do Japão e que, por isso, contam com DVDs em português e inglês para facilitar a cantoria. Mas, possivelmente, a China tenha capturado a rua da Glória para si, penso, pois é nela que se encontra a União das Danças de Dragões, elemento essencial para a comemoração do Ano Novo Chinês no início do ano. As festividades que alegram a Liberdade também tornaram-se multiculturais.

A Rua Galvão Bueno, minha quinta visão, era a segunda por muitas visitas que fiz. Em seu calçamento estreito, pude observar a maior quantidade de “pessoas que veem”. Veem os mercados que vendem produtos orientais coloridos, diferentes, fofos (kawaii) e querem adquiri-los. Nas prateleiras, comidas prontas para o consumo, salgadinhos com sabores diferentes como “polvo”, doces feitos de feijão doce (azuki), refrigerantes de marca conhecida, mas com sabores que não são encontrados em todos os lugares, como manga, blueberry, morango, baunilha, cereja… É a explosão culinária japonesa na altura de nossos olhos e que nos atrai, seja pela embalagem, seja pelo conteúdo ou pela curiosidade.

Sucos diversos. (Bruna Diseró/J.Press)

Veem também o Shopping SoGo Plaza. Em seus quatro andares, que podemos explorar pela escada ou pelo elevador, é possível novamente entender a força da cultura pop japonesa no Brasil. Lojas e mais lojas abarrotadas, corredores e mais corredores abarrotados. Os pais que acompanham seus filhos adolescentes que usam camisetas de personagens de anime, fazem-no para agradá-los. Um deles chamou minha atenção no momento em que passava pelo corredor do segundo andar, porque o seu olhar era muito peculiar. Nele, pude enxergar toda a incompreensão por sua filha se animar com miniaturas de personagens japoneses que ele nem conseguia pronunciar o nome, e pular de alegria ao ver uma mochila customizada para se parecer com outro personagem. Mas, ao mesmo tempo, enxerguei em seus olhos o amor que permitia com que ele carregasse sacolas de compras e ficasse horas em pé apenas para acompanhá-la. Contudo, o SoGo, igualmente, permite a entrada de pessoas mais velhas, na faixa dos trinta e poucos anos, que permitiram a sobrevivência em seus corações da paixão que sentiram ao acompanharem os primeiros animes que foram transmitidos pela televisão. Eles compõem,  juntos aos mais novos, a multidão que se enfileira nos corredores do shopping para apreciar as novidades dos quadrinhos, os bonecos de ação mais recentes, as camisetas e canecas e broches estampados. As lojas mimetizam os corredores, oferecendo um turbilhão de produtos alternativos aos clientes interessados.

Quando mais nova, eu mesma era uma cliente assídua. No caminho de saída, senti que não mais idolatrava os produtos do shopping, como acontecia, e isso me deixou nostálgica. Deixei o ambiente, mas também deixei uma outra pessoa, uma menininha de luvas listradas em preto e roxo e que vibrava de alegria por ter comprado dois DVD’s com seu anime favorito.

Segui, então, para a Rua São Joaquim, a minha sexta e última visão da Liberdade.

Em sua rua comprida, encontra-se o Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil localizado em um prédio comercial. Aberto das terças aos domingos à tarde, das 13h30 às 17h, é o marco da importância do país na formação do espaço brasileiro. Entrei no prédio e fui informada de que era preciso subir aos sétimo, oitavo e nono andares que abrigam o museu. Deparei-me com um rico acervo composto por livros, fotografias, pinturas descrevendo a rotina dos imigrantes e objetos utilizados por eles na época. O museu dos imigrantes fechou, com primazia, a estrutura do Homem. Formado pela tradição e pela ousadia, o Homem que imigrou e se integrou à sociedade brasileira, transformou-a e enriqueceu-a com suas culturas. O Homem que se veste, que se alimenta, que se diverte e que se informa, o Homem também que se mescla a outros povos próximos, esses que também fornecem culturas novas ao país e que o transformam.

O círculo mitsudomoe estava quase se fechando, para que isso ocorresse, precisava contemplar o Céu. E, surpreendentemente, na Rua São Joaquim encontrei-o por acaso. A rua, batizada com o nome de um santo católico, hospeda em si um templo budista. Nunca o havia percebido, já que nunca explorei tal rua com afinco, então, quando avistei uma aglomeração de pessoas em fila e sons de sinos não imaginei o que poderia ser. Andei até a movimentação e olhei para a construção que as atraía – Templo Busshinji que comemorava a Cerimônia de Aparecida Kannon Bosatsu da Paz Universal.

Votos de paz e felicidade, pendurados em bambu. (Bruna Diseró/J.Press)

A razão de haver tantas pessoas em um templo budista, muitos brasileiros até, era que naquele dia, assim como em todas as quintas-feiras, o templo retribuía as doações que a ele eram dadas pelos fiéis e simpatizantes, oferecendo comida e bebida gratuitamente das 12h às 14h. Aqueles que entravam na fila, assinavam um papel em que oravam pedindo a paz para si e para o templo, além de se comprometerem a mudar suas vibrações energéticas para um campo positivo. Na metade do trajeto, o visitante encontrava um monge que o ensinava a orar e agradecer, ao mesmo tempo em que jogava incenso em uma pequena chama. Se pudesse, faria uma doação. O mesmo acontecia para tocar o grande sino da entrada e espantar energias ruins. No fim do trajeto, o alimento purificado que, na religião budista, concedia sorte aos que o comiam.

Enquanto completava essas fases, senti-me em paz. Assim como a Terra e o Homem, o Céu vindo de um país tão distante, a princípio estranho, diferente em suas crenças, possuía uma filosofia semelhante às religiões ocidentais que já existiam no Brasil — o amor ao próximo, a busca por ser um humano melhor e dividir as conquistas positivas com o mundo. Lembrei-me da frase que encontrei na Praça da Liberdade, em uma estátua, e percebi que ela sintetizava a minha ida ao bairro naquele dia e a crônica que derivou dela – “A humanidade é uma só”, disse Hiroji Mukasa, ao que, o subtítulo que a completa, “criemos pontes de amizade em todo o mundo”.

Nós criamos.

Voltando ao metrô, eu me despeço da Liberdade.

 

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