Por Giovanna Querido (gioquerido@gmail.com)
Depois do segundo AVC, os médicos avisaram à família que a recuperação de Neusa seria difícil. Ela precisaria de muitas sessões de fisioterapia. Seus filhos — Nilson, Nilma e Junior — começaram a se questionar o quanto sua casa poderia oferecer a assistência necessária, “ela vai precisar de cuidado integral de enfermaria: teria de usar fralda geriátrica, por exemplo, e não conseguiria mais tomar banho sozinha”, dissera o médico.
Seu marido Nelson, avesso a hospitais e médicos, acreditava que bastava uma boa alimentação para resolver os problemas. Mas os filhos já estavam esgotados e completamente incapacitados de cuidar da mãe em casa. Decidiram, então, que o melhor seria interná-la num lar de idosos, pelo menos durante os três primeiros meses de recuperação.
“Vocês vão me levar para um asilo? Isso é coisa pra louco”, questionava Neusa. “Não quero ir para o asilo. Vocês vão me largar lá! Vão me abandonar.” Nilson, seu filho, recorda que a mãe só aceitou quando descobriu que não era um asilo, mas um “centro de enfermagem”. Nelson não entrou na discussão inicialmente. Não era uma questão de amor, de querer que sua esposa ficasse em casa, com ele. Era de tentar buscar o melhor para ela.
Todos os dias Nelson a visitava. Inicialmente, acreditava estar num lar da novela das sete: idosos andando no jardim, jogando dominós… Não sabia que também havia gritos, delírios, pessoas falando sozinhas. Chegou em casa questionando seus filhos: “Vocês erraram… Só tem louco ali, gente largada, gritando — AAAH, AAAH —, que é que é isso? Vocês erraram!”. Neusa também parecia não acreditar na sua situação; a depressão voltava e ela se movimentava cada vez menos. O marido, apaixonado, continuava a visitá-la. Cada dia levava um agrado diferente — milho verde cozido, salgados, chocolates e caramelos.
Após os três meses, Neusa voltou para casa. Dessa vez, amparada por uma cuidadora — R$ 1500 desembolsados por mês. Sua volta foi mais difícil: a depressão se agravava ainda mais. Quando Nilson viu que sua mãe não saía mais da cama, procurou outra casa de repouso.

A continuação da história acima estava em uma nota na Folha de S. Paulo. Nelson, Neusa, uma bomba e o lar de idosos eram os personagens. O acontecimento chamou a atenção do jornalista Vitor Hugo Brandalise. Ao ler o jornal, Vitor, defensor do slow journalism”, sabia que tinha uma história maior ali. Como conta em entrevista à J. Press: “Por trás da mera notícia policial, pensei que haveria uma história de amor, desespero, dor — e quis saber mais sobre ela”. Foi assim que a nota no cantinho da folha virou uma reportagem de 75 páginas e 122 minutos de leitura, denominada Sobre a Sede. Vitor acredita que toda história tem várias camadas e, para chegar às mais profundas e verdadeiras, é preciso “tempo, esforço, sensibilidade e empatia”. Esse espaço privilegiado, de jornalismo de fôlego, encontrou-se no blog BRIO STORIES.
Vitor relata que a visão dos lares de idosos na reportagem é pelo ponto de vista de Nelson, que considera esses ambientes como “depósitos de gente”. A descrição dos lares como “um lugar triste, onde as pessoas ficam esperando a morte chegar”, diz Vitor, reflete unicamente a opinião do Nelson. Em outras visitas a casas de repouso, o jornalista deparou-se com um cenário um pouco diferente daquele transmitido na reportagem Sobre a Sede. “Há alegria no espaço, há idosos rindo, batendo papo, assistindo à TV, jogando baralho.” Relembra, no entanto, que “ há um bocado de solidão também”.
O olhar para a instituição como um lugar que não respeita a dignidade humana, onde ocorrem maus-tratos e o idoso não tem privacidade, constitui, segundo a professora e doutora em Gerontologia da Universidade de São Paulo, Bibiane Graeff, o fantasma da imagem negativa em relação aos asilos.
A começar pelo nome. O termo usado em leis e documentos para nomear essas instituições é “Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI)”. Bibiana critica a nomenclatura: para ela, a dominação fica resumida a uma sigla fria e técnica que exclui a população não especializada do assunto. O nome “lar de idosos”, na sua concepção, é mais próximo das pessoas e, além disso, quebra com o uso do termo “asilo” — “que já carrega uma carga negativa muito forte”, explica. Apesar da mudança de nomenclatura, Bibiana acredita ser um dos maiores desafios da contemporaneidade mudar, de fato, as ILPIS. “Ainda existem instituições com pouco preparo, espaço inadequado, profissionais carentes e sem formação adequada”, diz a pesquisadora.
Como será o Brasil em 2050, quando 23% da população será idosa — o triplo de 2015 —, segundo o IBGE? Como será o mundo com 2 bilhões de idosos, 30% da população mundial, conforme previsão da OMS? Onde morarão?
Ao longo do século XX, houve um maior confinamento da velhice, principalmente em países que sofreram a transição demográfica. Na França, por exemplo, o Estado assumiu cada vez mais responsabilidade em relação ao bem-estar e cuidado dos idosos. Em sua maioria, eles residem em suas próprias casas, mas são amparados por políticas públicas como o APA (Allocation personalisée d’autonomie), benefício em dinheiro repassado às pessoas que necessitam de cuidados, conforme o grau de dependência.
No Brasil, só em 1988, a Constituição Federal assegurou o dever de amparo ao idoso, que cabe ao Estado, à sociedade e à família. Segundo Bibiana, os textos com força vinculante de lei e de caráter obrigatório vêm avançando paulatinamente. Depois de um movimento internacional de discussão sobre a necessidade de um tratado mundial sobre direitos humanos para idosos, em junho de 2015 foi aprovado o primeiro tratado com força de lei na Convenção Interamericana de Direitos Humanos dos Idosos. O objetivo, conforme diz o documento, é “promover, proteger e assegurar o reconhecimento e o pleno gozo e exercício, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais do idoso” — contribuindo, assim, para que o idoso se sinta incluído, integrado e partícipe da sociedade.
O idoso deveria ter direito de expressar seus gostos e o desejo à privacidade. Mas, na prática, muitas vezes essa autonomia é infringida — como ocorre, por exemplo, na escolha de morar em um lar de idosos. “A violação desse direito de autonomia do idoso é difícil de constatar”, explica Bibiana. Ela está atrelada a pessoas próximas, a seus familiares. O idoso, por sua vez, encontra-se em uma sinuca entre agradar à vontade da família ou manter sua própria independência . Segundo a professora, muitos não são empoderados o suficiente. “Acham que já estão no final da vida e que ela já deu o que tinha que dar, o velho não quer mais incomodar”, afirma.
O enunciado do idoso como indivíduo inútil e terminal configura exatamente o estereótipo em torno da velhice que é interiorizado pelo próprio idoso e alimentado pela sociedade. “A gerontologia quer desmistificar a velhice”, diz Bibiana. A definição de velhice, de acordo com a convenção, como “construção sociocultural da última etapa do ciclo vital”, não implica uma fase — apenas — de perdas, como se costuma promover. O envelhecimento, como todas as etapas da vida, é feito de perdas e ganhos constantes e também de adaptações; para cada indivíduo, esses ganhos e perdas se manifestam de forma diferente. A pesquisadora ainda reitera a necessidade de se desconstruírem os mitos do velho como ser assexuado, que volta a ser criança.
Em um dos lares de idosos localizados no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, a estigmatização está presente inclusive no nome: “creche para idosos”. “O idoso, quando fica com 60, 70 anos, passa a ser uma criança; ele tem a mesma manha que uma criança”, diz Rose, enfermeira e gerente responsável pelo lar. Há um ano na casa, ela explica que, no serviço de “creche”, “você deixa seu idoso às 7h e ele pode ficar até às 17h”. Além desse serviço, que custa R$ 140 por dia, o local também funciona como moradia permanente para idosos, custando o equivalente a, no mínimo, R$ 2 mil por mês.
Lares de idosos
Portão de ferro vazado em muro de pedras de água-sabão, seguido por um jardim no canto direito. Grama baixa e um coqueiro. Atrás das portas de correr: seis sofás de couro preto. Televisão de plasma na parede. Idosos sentados, conversando. A professora doutora Maria Luisa Bestetti, também do curso de Gerontologia, ressalta que a arquitetura de um lugar é muito mais do que um desenho no papel. “O espaço pode influenciar e condicionar comportamentos”, ela afirma. No caso dos lares de idosos no Brasil, são poucos os exemplos que proporcionam liberdade aos moradores.
O medo, sendo sempre a máxima da preocupação, alavanca a segurança como prioridade na arquitetura desses ambientes. “Muros altos, o controle (sempre necessário…) de ingresso e a criação de ambientes abertos ajardinados oferecem bem-estar e possibilidade de gerenciamento mais controlado”, diz Maria Luisa. O grande diferencial de um lar de idosos está no limite entre o privado e o coletivo: durante refeições e atividades, a moradia deve privilegiar os espaços de convívio mútuo. De acordo com a professora, o conforto está muito além de proporcionar assentos macios e pisos planos. “Ele existe nas relações sociais entre todos os atores de uma moradia”, afirma.
Com 500 metros quadrados de terreno, Rose considera o lar da Mooca uma das melhores casas em que trabalhou. “A casa é grande, é térrea, é ampla, os idosos se locomovem. Aqui todos andam”, afirma a gerente. Durante o dia, são realizadas atividades como pintura, bingo, dominó, jogos de dado… “Tudo para tirar a pessoa da cama; senão, eles se tornam muitos debilitados”, explica Rose. Além disso, aqueles que conseguem arcar financeiramente são acompanhados todos os dias por uma nutricionista, de um médico geriatra e de uma fisioterapeuta, que promove exercícios nos dois corredores laterais da casa, amparados por corrimões. Para a professora Maria Luisa, inclusive, a acessibilidade é o principal instrumento para ampliar as condições de autonomia do idoso.
Cores alegres e janelas amplas complementam o conforto. Rose acrescenta: “Se você coloca música da época deles, eles começam a lembrar sua época de juventude”. O hábito mantém a memória ativa e cria uma variação no clima emocional do ambiente, e tudo é feito com o intuito de exercitar os sentidos do idoso, além de garantir sua maior autoestima. Por isso é também importante a composição do dormitório: é nesse espaço que o morador pode contar sua história de vida. “Confere um significado e uma personalidade”, diz Maria Luisa.

Esse espaço de privacidade e espacialidade da memória pessoal, na realidade, pode ficar um pouco restrito. Apesar de autorizar que os idosos levem objetos pessoais, Rose não permite o uso de relógios, anéis e bens de valor material nos lares. “Como eles são como crianças, um pega do outro. Já teve umas coisas assim”, explica a enfermeira responsável pela casa.
A mudança da esfera individual e unifamiliar de uma residência para a convivência com outras pessoas em uma mesma morada pode levar a choques de diferença e manifestações de preconceito. “Sempre haverá a possibilidade de rejeições, conflitos e dificuldade de convivência”, diz a professora Maria Luisa. Ela ressalta que o fato extrapola o campo arquitetônico, mas convida a refletir: “Será que diferentes composições de dormitórios e ambientes de estar auxiliam para que as situações críticas se resolvam naturalmente?”.
Na zona leste, uma tentativa de solução para esses problemas foram os dormitórios separados entre homens e mulheres. “Cada um fica no seu quarto: homens aqui na frente e mulheres, no fundo”, afirma Rose. Por outro lado, não há divisão entre os idosos independentes e aqueles mais debilitados. Segundo a professora, que critica essa situação, ao atender todos simultaneamente, o lar pode provocar dificuldades de relacionamento. “Incomoda os que têm autonomia ao se imaginarem com as perdas que veem nos outros”, diz Maria Luisa.
Após quatro anos trabalhando em instituições de idosos, Rose denuncia o uso exacerbado de medicamentos. “O geriatra daqui não dopa os pacientes. A medicação é apenas para aqueles que têm dificuldade de dormir ou patologia [como diabetes e hipertensão]”, afirma. Como exemplo, ela conta a história de um dos moradores, seu Ramon, que era diabético. Quando chegou à clínica, além da tristeza e solidão, carregava também um saco de remédios. De acordo com a enfermeira, o senhor se recuperou do quadro da doença, controlando a diabetes e diminuindo a dosagem da medicação, já que muito era desnecessário. Com a melhora, seu filho resolveu tirá-lo da clínica. Ramon faleceu uma semana depois.
A invisibilidade do envelhecimento nas cidades
Presos nos carros, presos no tempo. Atrasados como premissa maior. Na cidade, onde “os bares estão cheios”, mas “de almas tão vazias”, como diz o rapper Criolo, a paciência torna-se excepcionalidade. “Eu acho que é essa vida moderna, sabe?”, comenta Rose. Para a enfermeira, os lares surgem como uma alternativa aos dias de hoje, em que as pessoas não têm mais paciência para lidar com uma outra dimensão de tempo, mais lenta, e as limitações dos idosos. “Será que você vai dar atenção a ele?”, ela duvida. Diante desse aprisionamento contemporâneo, Maria Luisa amplia a reflexão para a própria relação entre a cidade e o idoso, criticando a ideia de que este seria um indivíduo inútil e terminal. “Idosos têm mais tempo livre — o que não quer dizer que não têm o que fazer, especialmente porque há [em suas vidas] experiências acumuladas extremamente ricas e que podem ser compartilhadas”, diz. Restam agora os questionamentos: como a cidade pode “respeitar os limites para assegurar os cuidados que os idosos demandam?”, pergunta a professora.

Talvez motivado pelas mesmas dúvidas, o médico e gerontólogo Alexandre Kala, chefe do setor dedicado ao envelhecimento da OMS (Organização Mundial da Saúde), começou a delinear o que seria uma Cidade Amiga do Idoso. Em 2030, quando três a cada cinco pessoas morarão em cidades, como será envelhecer com todos estes problemas e dificuldades — a desvalorização do papel do idoso na sociedade, os cortes na aposentadoria, no plano de saúde, as calçadas esburacadas e até mesmo a falta de opções de lazer e cultura? Para tentar responder a esses questionamentos, a OMS lançou, em 2005, o projeto Global Age-Friendly Cities.
O Rio de Janeiro e mais 32 cidades de 22 países diferentes serviram como piloto para alavancar os aspectos positivos e os obstáculos com os quais os idosos têm de lidar no mundo urbano. Levantaram-se oito grandes temas: prédios públicos e espaços abertos; transporte; moradia; participação social; respeito e inclusão social; participação cívica e emprego; comunicação e informação; apoio comunitário e serviços de saúde. Depois dessa primeira sondagem, a OMS incentivou que outras localidades ouvissem seus idosos e profissionais, construindo a promoção de um bem-estar na cidade e um envelhecimento ativo.
As professoras Bibiana Graeff e Maria Luisa Trindade Bestetti selecionaram os bairros da Mooca e do Brás, também de São Paulo, para ampliar o estudo. Ouvindo grupos focais de idosos de 60 a 75 anos e outros com pessoas acima de 76 anos, fizeram um diagnóstico das barreiras que eles enfrentam no dia a dia, como falta de serviços especializados, de áreas de lazer, hospitais e bancos para poderem descansar. Construir uma cidade amiga do idoso — que proporcione ambientes de apoio, capacitando e compensando as alterações sociais e físicas do envelhecimento — é, no seu fim, buscar uma cidade para todas as idades e etapas da vida, de modo, a tanger os três pilares do projeto, que envolve administração pública, universidade e comunidade.
Atualmente, um milhão de idosos vivem em São Paulo. Idosos em casas, em pensões, em instituições. De acordo com a última Pesquisa Censitária de População em Situação de Rua, realizada pela Fipe – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a idade média de ida para a rua é 57,9 anos, indicando a dificuldade de manter um padrão de vida com a chegada da velhice e a consequente diminuição da oferta de emprego. Na rua, os idosos duplicam sua vulnerabilidade.
Rostos e histórias de vida em um centro de acolhida
Depois de trabalhar por anos como motorista de carreta e de ônibus, Humberto estava desempregado e separado. Sua única opção era a rua: morou por quase 3 anos no Jaçanã, dentro de uma perua velha. Hoje em dia, ele conta que o pior de envelhecer é a idade. “Tenho saudade [de voltar a dirigir], mas hoje não pega mais, já passei da idade. Rodei muito, o Brasil inteiro, com a carreta carregando feijão e arroz.“ Duarte Ribeiro, depois de ser demitido da fábrica de polimento de alumínio, estava na mesma situação. As primeiras 24 horas sem casa ele passou em um cinema e, depois, foi dormir na praça. “Não é viver, nem sobreviver: morar na praça é passar medo, frio e o cara querendo te assaltar”, ele conta. Sem dinheiro para comer, não achava digno pedir no farol; no final da tarde, pegava as frutas do resto de feira. Foi sobrevivendo — mas, quando chegou junho de 2009, o inverno estava rigoroso. “Teve uma hora que eu disse: ‘Ai meu Deus! Eu não vou aguentar, não’. Até que alguém disse que tinha um albergue ali embaixo.”
Tanto Humberto como Duarte estão dentro dos 70% dos idosos em situação de moradia institucionalizada em Centros de Acolhida Especiais para Idosos — para alguns, o chamado “albergue aqui embaixo”. O programa, administrado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS, prevê a permanência de 18 meses. Tatiane, assistente social do Centro de Acolhida na Zona Norte, destaca que o serviço tem caráter temporário e é destinado para o idosos com autonomia e nesse local exclusivamente para homens. No entanto, o temporário, muitas vezes, torna-se permanente.
Seu Cícero puxou uma mesa que estava embaixo da escada. Foi ao banheiro, pegou papel toalha e a limpou. No meio de um ex-galpão fabril — hoje, Aconchego Boracéia — estava uma mesa, os moradores e eu. Cícero, já está morando no local há dois anos. Questiono-o se ele gosta. “É, gostar [a gente] não gosta, né? Estamos aqui por necessidade”, respondeu. Duarte acrescentou: “Isso aqui me manteve vivo; se eu não encontrasse aqui, já era eu.”
Entre uma UBS e uma AMA, um portão e um muro azul chamam a atenção, no final da rua. Ao entrar, encontramos um pátio, ainda com bandeirinhas de Festa Junina remanescentes, bancos espalhados, idosos caminhando e conversando. No meio, um galpão com dois andares, inúmeras camas de solteiro, dois banheiros, um sofá de couro preto e uma televisão. No momento em que os moradores do Aconchego contavam suas histórias, Rafaela Silva ganhava o ouro olímpico para o Brasil no judô. O Centro de Acolhida funciona como um serviço 24h, oferecendo serviço de café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar. “Como se fosse uma residência mesmo”, disse Tatiane.
A refeição é a principal reclamação dos moradores. Para Noberto, a alimentação foi uma “decepção total”. Mas ele salienta: “Dentro das limitações da vida da gente, melhor pouco do que nada. Pelo menos eu não estou tomando chuva”. Depois de ser vendedor da Eletrolux, com direito a jantar com clientes suecos no Terraço Itália por conta da firma, Noberto aproximou-se do jornalismo, trabalhando com a assinatura do jornal de Sorocaba. Até pensou em seguir na profissão; mas, pensando um pouco melhor, descobriu que gostava mesmo de ler a Bíblia. Hoje, enquanto mora no Aconchego, ele sai três vezes por semana para cursar teologia dentro da igreja.
Foi depois de separar-se da mulher que Noberto foi levado ao Centro de Acolhida, após ficar dois dias na Rodoviária, sentado num banco, sem destino. Desavenças familiares e alcoolismo são os principais motivos que levam os idosos para situação de rua. Para Tatiane, que também relata o aumento no número da procura por esses serviços de acolhimento, o principal motivo é isenção de responsabilidade por parte da família. “Tem muitos idosos que têm família, mas essa não quer saber. Não quer saber porque não quer mesmo ou porque esse idoso quando era jovem deu muito trabalho para a família, devido ao álcool ou drogadição ou até caso de violência doméstica. Tem essa pedra, vamos dizer assim. Então é difícil”, diz a assistente social.
Diferentemente dos lares de idosos privados, os moradores do Centro de Acolhida têm liberdade de sair quando quiserem e são financeiramente autônomos, cuidando do próprio benefício. ”A gente não tem acesso a nada, o máximo que fazemos é auxiliá-los”, reitera Tatiana. Por conta disso, não é apenas para fazer uma caminhada e respirar a cidade que os idosos saem do lar: a maioria dos moradores não recebe aposentadoria, apenas o BPC (Benefício Assistencial ao Idoso), quantia insuficiente para sobreviver. Assim, buscam formas de complementar a renda. Bicos surgem como única opção.
“Tô esperando o verão para vender sorvete”, conta seu Ademir. Já José Roberto, outro morador do Aconchego, aposta na venda de salgadinhos na rua como fonte de renda. “Eu trabalho da seguinte forma: vendo o almoço pra comprar a janta. Entendeu o ponto de vista?”, olha para mim, questionando. José Reitera:“Eu vendo alguma coisinha hoje, para depois comprar outra. Não é giro de capital, é giro de mixaria. Capital não é. É mixaria”. Durante 11 anos, José trabalhou no ramo de hotelaria no Rio de Janeiro, fazendo drinques e coquetéis. Chegou até a formar-se na área pelo Senac. “Mas chegou a idade, minha filha, e ninguém mais quis me dar emprego,” ele explica. Hoje, em São Paulo, José ainda tem que lidar com o “rapa” ao vender mercadorias na rua: já teve sua venda apreendida duas vezes em menos de um mês. Pergunto se ele não sente falta de nada na casa. Ele endireita o corpo, desvia o olhar rapidamente e volta: “Posso falar uma verdade para você?”. Afirmo positivamente. “Eles aqui exigem o respeito para e com os funcionários, mas esse respeito não é mútuo, não. Não é mútuo deles para com nós. Não estou generalizando, não são todos, alguns”, completa. Na noite anterior à entrevista, após um dia inteiro de trabalho, José pegou o corriqueiro ônibus lotado, somado ao mais típico engarrafamento de sempre — e, quando chegou ao Aconchego, faltando cinco minutos para acabar o horário da janta, largou sua mercadoria em um canto e foi correndo para o refeitório. Olhando novamente o relógio, três minutos. Em seguida, ouviu a voz da instituição: já havia acabado o horário.
Sentada àquela mesa, no centro de um ex-galpão que virou lar, sete idosos sentaram na cadeira da frente para conversar comigo. Eram sete histórias diferentes: Cicero, Oswaldo, José Roberto, Humberto, Noberto, Duarte, Ademir, Lúcio e Joaquim. O estigma do idoso, resumido ao velho pronto para morrer, não existia naqueles homens, flagelados por vícios e pelo fim de laços afetivos. Invisíveis pela sociedade e pelas próprias famílias, descansavam suas cabeças no banco da praça, no travesseiro do Centro de Acolhida, do lar de idosos, de uma pensão. Vivos.