Sonho com uma vida futura onde possamos expressar todas as emoções e desejos sufocados durante nossa vida: uma vida futura onde estaríamos finalmente livres para sermos nós mesmos. (Maryse Condé)
Janelle Monáe, Tássia Reis, Karol Conka. O que essas três mulheres têm em comum, além de estarem cada vez mais presentes na mídia? Todas, de sua maneira, têm algo de afrofuturista em suas composições. Mas o que é afrofuturismo, afinal?
O afrofuturismo surgiu nos anos 1960, em paralelo ao fortalecimento da cultura Beatnick – uma amante dos ritmos afroamericanos. O movimento se constrói, em essência, a partir da união entre elementos hi-tech e traços de ancestralidade africana, utilizando a arte para resgatar a história do povo negro.
Numa época em que, principalmente após a Lei dos Direitos Civis, nos Estados Unidos, começava-se a falar em fortalecimento e valorização da cultura negra, surge o poeta, compositor de jazz e filósofo cósmico Sun Ra – pseudônimo utilizado por Herman Poole Blount, nascido em Birmingham, no Alabama –, um dos pioneiros do afrofuturismo. Quando adotou o nome pelo qual é famoso, com “Sun” relacionado a “poder” e “Ra” ao deus da mitologia egípcia que representa o Sol, o artista passou a acreditar que havia sido abduzido e que, na verdade, era de Saturno. Ele dizia ser um anjo, não um ser humano.
Frutos de uma experiência alucinatória ou não, suas declarações eram extremamente profundas e repletas de referências à espiritualidade. Essa visão de mundo influenciou sua obra, que invoca as ideias de espaço e futuro inúmeras vezes, mas sem perder sonoridades que remetem às raízes africanas. O resultado é uma obra eclética e experimental, que combina esses traços mais específicos ao jazz e, por vezes, ao pop. Ainda que o primeiro álbum de sua discografia em que já se identifica a temática afrofuturista seja The Nubians of Plutonia, lançado em 1966, foi com Space Is The Place, de 1973, que o afrofuturismo do artista de fato ganhou forma. Em uma atmosfera transcendental, misturando jazz com ficção científica, Sun Ra consegue fazer o eventualmente cacofônico soar genial.
Há quem diga, no entanto, que o afrofuturismo só passou a ser considerado um movimento cultural em 1994, com o escritor norte-americano Mark Dery. Ele levou o tema para um ensaio chamado Black to the Future, criando o nome afrofuturismo. Porém, o protagonismo atribuído a Dery, um homem branco, é alvo de problematizações. O que o escritor fez, afinal, foi apenas rotular o que artistas negros como Sun Ra, falecido em 1993, já estavam fazendo há décadas. Esse é também o caso de escritores como Octavia Butler e Samuel Delany, por exemplo, que já estavam produzindo obras afrofuturistas muito antes do movimento receber esse nome.
Até hoje o afrofuturismo não se restringe à cena musical: ele está também na moda, nas artes plásticas, no cinema e na literatura. Ele é, acima de tudo, um movimento artístico, que projeta as possibilidades futurísticas de um povo cujo poder cultural foi silenciado ao longo dos anos. Dessa forma, resgatar a mitologia e as histórias africanas é materializar o empoderamento negro. Porém, o afrofuturismo é apenas uma dentre as inúmeras representações da cultura negra – que possui uma formação extremamente rica e ampla. O próprio afrofuturismo não se encaixa em um padrão e por isso abrange inúmeros artistas, bastante diferentes entre si.
Ao longo dos anos, por onde passou a música afrofuturista?
Considerando que muitos afirmam que o afrofuturismo surgiu, inicialmente, na música, é esperado que ele tenha uma grande força dentro desse campo das artes. Atualmente, muitos artistas, mesmo do mainstream, são considerados afrofuturistas, o que confere maior visibilidade ao movimento. Mas tudo começou com o próprio Sun Ra e a influência que Space is the Place exerceu sobre os artistas que vieram em seguida.
Um desses artistas foi George Clinton, líder dos grupos Parliament e Funkadelic – que depois foram reunidos em um só grande coletivo musical – cuja atuação se deu na década de 70. Ambos, o Parliament e o Funkadelic, contavam com os mesmos integrantes e faziam funk, mas de um tipo diferente, que foi classificado por Clinton como P-Funk, ou Pure Funk, que seria feito por “afronautas transcendentais capazes de funktizar galáxias”. Com uma sonoridade que une o funk mais clássico americano a sintetizadores, teclados, trechos com narração robótica e elementos do pop e do R&B, os grupos trouxeram inovações para o cenário musical e foram responsáveis por apresentar uma nova faceta do afrofuturismo.
Vale ressaltar também a estética única dos grupos, tanto nas roupas usadas nas apresentações – muitos acessórios dourados e prateados, chapéus e óculos de sol em formatos diferentes e maquiagens e pinturas corporais características – quanto nas capas dos discos, com artes psicodélicas e montagens que incluíam personagens negros em cenários espaciais. Todos esses elementos contribuíram para deixar a marca dos grupos na história. Mothership Connection, disco de 1975 do Parliament, está na lista da revista Rolling Stones dos 500 melhores álbuns de todos os tempos e é considerado uma grande influência para o jazz, rock e dance music. Para George Clinton, a importância desse trabalho em específico está em seu conceito de “colocar negros em situações que ninguém imaginou que eles pudessem estar, como na Casa Branca ou no espaço”.
No final dos anos 70, outro nome começou a se destacar no cenário musical norte-americano: Grace Jones. A jamaicana erradicada nos Estados Unidos juntou sua voz poderosa e estética andrógena a traços fortíssimos de afrofuturismo e lançou três discos de grande sucesso de público. Musa de Andy Warhol, Jones protagonizou diversos clipes que parecem saídos de filmes de ficção científica, mas com um toque freak e performances conceituais, características de seu trabalho. Sua sonoridade, ainda que definitivamente mais pop do que as de seus antecessores afrofuturistas, traz elementos interessantes, como a presença de instrumentos de percussão e sintetizadores e influências do reggae.
As letras de suas músicas também são bastante significativas e representam bem a temática do afrofuturismo. Na faixa This is, Grace canta “this is a voice/ these are the hands/ this is technology/ mixed with the band/ are you going into the light?/ are you free of fear today?” (esta é a voz/ estas são as mãos/ esta é a tecnologia/ misturada com a banda/ você está indo para a luz?/ você está livre do medo hoje?). Em Slave to the Rhythm, palavras que remetem à ancestralidade negra e ao histórico de escravidão, relacionados a uma nova situação: axe to wood/ in ancient time/ fires burn, hearts beat strong/ sing out loud, the chain gang song/ never stop the action/ keep it up, keep it up. (machado na madeira/ em um tempo antigo/ fogueiras queimam/ corações batem forte/ cante alto/ a canção dos prisioneiros/ nunca pare/ continue, continue).
Mais recentemente, vários artistas vêm trazendo elementos afrofuturistas a seus trabalhos, ainda que de forma distinta de como isso se apresentava nas décadas anteriores. Esses artistas são essenciais para entender como o afrofuturismo se dá hoje. É o caso de Janelle Monáe, por exemplo. A cantora chamou a atenção do público e conquistou grande popularidade com a colaboração com a banda Fun, na faixa We Are Young, lançada em 2012. No entanto, antes mesmo da banda surgir ou do hit estourar em todas as rádios mundiais, Janelle já estava produzindo música e se destacando no meio. Em 2010, lançou seu primeiro disco, The ArchAndroid. Se o título já não é elucidativo o suficiente por si só, a arte da capa do CD deixa clara a presença do afrofuturismo. O conceito por trás da produção também é significativo: o andróide do título é Cindi Mayweather, alter-ego da cantora que habitaria a Terra por volta dos anos de 2700.
Monáe explicou, certa vez, o simbolismo por trás de Cidi. Segundo ela, “o andróide é só mais uma maneira de falar sobre ser o outro, e eu me considero como sendo parte do outro apenas por ser mulher e por ser negra. Ainda há certos estereótipos contra os quais eu tenho que lutar”. E é isso que a artista tenta fazer em sua música. Ao incorporar o pop, rock e outros estilos contemporâneos a gêneros surgidos da cultura negra, como o soul e o funk, Janelle Monáe mostra, na metáfora do andróide, do outro, que ainda há muitas dificuldades e preconceitos que a população negra tem de enfrentar, mas que é necessário buscar espaços e formas de empoderamento e de construção de novas narrativas que coloquem o negro como protagonista de sua história.
Mas não é só de norte-americanos que se faz a música afrofuturista. O cantor e compositor angolano Nástio Mosquito é um dos principais representantes do movimento nos dias de hoje. Suas canções têm a presença de ritmos tipicamente africanos e influências contemporâneas, e logo em seu primeiro disco, Se eu fosse angolano, de 2013, é possível notar um alto grau de experimentalismo e qualidade musical impressionante. Suas composições também merecem destaque. Nástio declara que é, acima de tudo, um contador de histórias, e que, para ele, o ponto de partida é sempre a palavra, característica que ele atribui à tradição oral africana que traz consigo. E com as palavras, o cantor pinta um retrato de um país que, após anos mergulhado em uma guerra civil sangrenta, tenta se reconstruir, mas não deixa de lado as críticas sociais ao mesmo tempo que oferece a visão de uma África menos estereotipada. Os clipes do artista, que são visualmente interessantes, também contribuem para isso. Neles, apresenta-se uma estética futurista, muitos tons metalizados e efeitos de dupla exposição, que parecem brincar com o novo e tecnológico em contraste com o antigo e natural.
https://www.youtube.com/watch?v=LtilW_f6EyQ&list=PLgBcs9nBScyEPxMCrV3MOY7rU9NCrcqoD
Outro destaque do movimento afrofuturista atual é o duo franco-cubano Ibeyi. Queridinhas no universo indie, as gêmeas Lisa-Kindé e Naomi Diaz misturam jazz e batidas eletrônicas, instrumentos africanos e trechos cantados em Yorubá, um dialeto da Nigéria, resultando em músicas cool, mas com raízes muito fortes na ancestralidade negra. A religiosidade também não fica de fora das influências de Ibeyi. Uma de suas canções mais conhecidas é Oyá, nome que remete à divindade da água e ao rio da Nigéria onde são realizados cultos religiosos. A música, cantada em inglês francês, é uma espécie de prece à divindade e às foças da natureza: even if I feel the sun on my skin everyday/ If I don’t feel you/ even if I see the most beautiful thing up in the sky/ if I don’t see you/ take me Oya (mesmo se eu sentir o sol em minha pele todos os dias/ se eu não te sentir/ mesmo se eu vir a coisa mais bonita no céu/ se eu não te sentir/ leve-me Oya).
Mas e o afrofuturismo brasileiro?
No Brasil, o número de artistas que se consideram afrofuturistas cresce cada vez mais. Um dos principais nomes é o Senzala Hi-Tech, grupo musical que mistura batidas de hip hop a ritmos herdados da cultura africana. Ainda que coloquem a África no centro de suas produções, o coletivo segue uma linha afrofuturista que não o faz de maneira estática. Em entrevista ao Sala33, o Senzala Hi-Tech disse idealizar o que é “ser África hoje”, com a herança deixada aos povos ameríndios e afrolatinos, projetando seu futuro. “E esse modo de pensar, agir e fazer arte faz parte da nossa luta, pois vai totalmente contra esse projeto que o status quo racista sempre teve para o país”, dizem.
O resultado é uma música multifacetada, com referências da música eletrônica, do jazz eletrônico experimental, do dub, do samba, da bossa nova e até mesmo de músicas temas de filmes japoneses. A construção dessa sonoridade rica em diversidade, eles contam, foi muito facilitada pela internet e pela possibilidade de pesquisar mais a fundo sobre temas que chamam a atenção do coletivo, cujos membros têm formações bastante diferentes entre si. O Senzala Hi-Tech se completa em suas diferenças.
A principal faixa de seu EP foi lançada em 2015 e se chama Baile da Meia Noite. A melodia, a letra e o clipe respiram afrofuturismo. O enredo cria essa atmosfera, que começa em um dia comum e conduz a uma imersão na ancestralidade, misturando um clima de terreiro com pista de dança. O vídeo se torna ainda mais interessante e rico quando se descobre que uma das locações de filmagem foi a Fazenda Roseira, em Campinas. Trata-se de uma fazenda de café fundada em 1850 – espaço que é hoje utilizado como casa de cultura. “Nas mãos dos descendentes dos negros escravizados, a casa grande agora segue os rumos ditados pela própria comunidade negra, que descobriu sua força e capacidade de criar suas próprias narrativas”, diz o site da banda. É isso que ocorre em Baile da Meia Noite, com uma equipe totalmente formada de pessoas negras. “Além da ancestralidade e energia que se põe à mostra a cada passo que você dá dentro dos espaços da fazenda, já conhecíamos também o caráter socioeducativo e o forte papel de resistência cultural negra que o local representa. Então tudo isso deu todo o clima que precisávamos”, contam.
Outro expoente do afrofuturismo brasileiro é a rapper Tássia Reis. Cantando que “a revolução será crespa”, criticando a sociedade patriarcal e a desigualdade social, ela deu origem em 2016 ao álbum Outra Esfera – uma verdadeira explosão de afrofuturismo, para além da capa com toques de psicodelia. Tássia consegue alternar uma voz suave (e bastante poderosa) e um tom incisivo, que canta rap com crítica social. Tal maleabilidade, quando combinada com a diversidade de ritmos em suas canções, faz a excelência e singularidade de seu trabalho.
Ouça-me, canção do disco de 2016, é um bom exemplo da identidade de Tássia Reis como artista e demonstra sua face afrofuturista. Ela se inicia com sons eletrônicos, que logo se misturam a instrumentos de percussão. A voz da cantora aparece em evidência, com um rap feminista que reconhece e reafirma a cultura negra e sua força:
Eu fui até o pelorin pra entender
O que já nasci sabendo mas preciso comprovar pra crer
Que todo axé que faz minha pele tremer
É a força que me trará transcender pra acender
Uma fagulha ou um pavio que transforma em uma revolução
Um lacre primaveril
É engraçado mas não é brincadeira, viu?
Não toleramos mais o seu xiu
Acima de tudo, resistir
Como movimento de resistência, o afrofuturismo se constrói em torno da necessidade de projetar um futuro em que o protagonismo negro se faça presente. Há pelo menos 40 anos em atividade, a arte afrofuturista tem encontrado cada vez mais espaço nas mídias, principalmente com a internet. A busca de identidade que caracteriza o movimento se traduz em sua diversidade, trabalhando a ancestralidade negra de forma multidisciplinar – não somente com arte, mas com tecnologia, ciência e história. Na concepção do Senzala Hi-Tech, o afrofuturismo “é desconstruir um passado que nos foi imposto e construir um presente longe das amarras eurocêntricas estabelecidas”. E não é só para eles. Todos os músicos que fazem parte do movimento, sejam por meio de sua sonoridade, estética ou letras, trabalham para criar uma arte que reconheça e resgate a história das comunidades negras. Através dela, buscam construir um cenário de valorização cultural, no qual a população negra tenha sua voz verdadeiramente ouvida.
Para conhecer mais da música afrofuturista, ouça a playlist que o Sala33 criou no Spotify:
Por Mariana Rudzinski e Laila Mouallem
marianarudzinski71@gmail.com
lailaelmouallem@gmail.com