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‘Agora já pode ser preso’: Lei Maria da Penha completa 18 anos

Iniciativas de mútua ajuda entre mulheres já existiam antes da promulgação legal, mas ganharam força nos últimos anos devido às premissas postas na LMP
Por Júlia Sardinha (jusardinha.eca@usp.br)

Você se lembra como a legislação e a sociedade brasileiras lidavam com os casos de violência contra a mulher antes da Lei Maria da Penha (11.340/2006)? No dia 7 de agosto, completam-se dezoito anos desde a sua implementação, marco para o sistema judicial que busca a preservação da vida das mulheres. 

A lei teve repercussão internacional e trouxe mudanças importantes em países da América Latina. No Brasil, a constitucionalidade da LMP foi acompanhada por outras promulgações, como a Lei 13.104/2015, do feminicídio, e a sanção da Lei 13.642/2018 — popularmente conhecida como Lei Lola e a primeira a definir o termo “misógino”.

De volta ao passado

O artigo 226 da Constituição Federal coloca sob responsabilidade do Estado a proteção da família.

O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

Art. 226, parágrafo 8° da Constituição Federal

Porém, demorou até que mecanismos efetivos fossem instaurados. Regina Célia Barbosa, co-fundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha (IMP), destaca que o contexto legal brasileiro antes de 2006 não era o mais favorável à proteção feminina. Em 1995 — doze anos após Maria da Penha ter sido agredida com um tiro nas costas que a deixou paraplégica —, a violência contra as mulheres passou a ser considerada como um ato de “menor potencial ofensivo” pela Lei 9.099. O texto definia a intensidade das agressões a partir da gravidade das lesões provocadas nos corpos das vítimas. No período, o discurso alegado pelos agressores era o da “legítima defesa da honra”, de acordo com Regina. 

Logo do IMP em tons de preto e vermelho
Fundado em 2009, o IMP é uma organização sem fins lucrativos. Porta-voz na luta no combate à violência contra a mulher, a organização estimula a aplicabilidade efetiva da lei. [Imagem: Reprodução/Instituto Maria da Penha]

As conquistas recentes em leis de proteção são resultados de reivindicações antigas. “Sempre existiram lutas pelos direitos das mulheres no Brasil”, declara Rute Alonso, presidente da União de Mulheres do Município de São Paulo. Segundo ela, desde a proclamação do Ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1975, o feminismo brasileiro ganhou força nas manifestações pela garantia dos direitos civis, sexuais e políticos das mulheres.

Mesmo com anos de petições pelo mundo, Regina acrescenta que a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a reconhecer a violência contra a mulher como uma questão de saúde pública apenas em 1996.

Em 2016, a ONU Mulheres passou a nomear as mortes femininas como femicídio — termo cunhado pela ativista sul-africana Diana Russell que exprime o assssinato de mulheres devido ao seu gênero — ou feminicídio — conceituado pela antropóloga Marcela Lagarde como um ato consequente da omissão do Estado. De acordo com Regina Célia Barbosa, a medida parte como uma estratégia para sensibilizar outras instituições e o corpo social sobre a ocorrência e a gravidade desses crimes.

Os dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, divulgados pelo DataSenado em 2022, mostram que, mesmo após dezoito anos da constitucionalização da Lei Maria da Penha, a frequência de crimes letais cometidos contra as mulheres não é bem definida entre os que foram, de fato, homicídios e os que foram decorrentes de atos de feminicídio. 

Faces da violência contra a mulher

A Lei Maria da Penha não trata apenas de casos de violência corporal. Pelo contrário, abrange uma série de medidas contra atos de violência verbal, física, emocional, sexual e outras. Por esse motivo, Regina Célia Barbosa afirma que “a Lei Maria da Penha não é uma lei perfeita, é uma lei completa”.

Na visão das ativistas entrevistadas, Maria da Penha, após sofrer agressões do seu ex-marido, foi violentada por dezenove anos e seis meses pelo sistema judicial brasileiro. Rute caracteriza o período entre 1983 — quando Maria ficou paraplégica — até 2006 — quando a lei foi sancionada — como um emblemático episódio de violência institucional contra as mulheres. Segundo Rute, essa agressão, estruturada pelo Estado, é caracterizada pela dificuldade no processo de acesso às políticas públicas. Para Regina, a demora na promulgação da LMP representou uma descredibilização da eficácia das ferramentas legais do Estado brasileiro.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), após uma denúncia feita pela própria Maria da Penha em conjunto com o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e com o Comitê da América Latina e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), condenou internacionalmente o Brasil por violência doméstica, em 2001.

A CIDH recomendou que o Brasil desenvolvesse uma legislação referente à violência doméstica. Em 2006, após a repercussão da decisão, a lei foi promulgada e recebeu o nome de Maria da Penha, uma vítima da omissão do poder público, segundo a Comissão.

Antes de recorrer à lei, hoje existente, a população feminina por vezes é acometida por atos de violência doméstica e de violência intrafamiliar, segundo Regina. “A violência intrafamiliar é uma violência que é vivenciada e praticada por qualquer membro da família”, explica. “A violência doméstica é quando qualquer membro da íntima relação de afeto da mulher direciona a ela atos violentos, o que não limita esse tipo de violência ao ambiente doméstico.”

“Culturalmente, nós [sociedade] temos inserido a violência no cotidiano.”

Rute Alonso

Dados também divulgados pelo DataSenado mostram que as notificações de violência ocorridas contra as mulheres aumentaram cerca de 21% entre 2021 e 2022. Os índices podem indicar que o aumento do número de denúncias representa uma maior confiança por parte das mulheres vítimas de violência em denunciarem os seus agressores aos órgãos competentes.

O efeito (Lei) Maria da Penha

Anos antes da conquista da Lei Maria da Penha, a União de Mulheres do Município de São Paulo trouxe às paulistanas a oportunidade de terem acesso gratuito à uma educação focada em direitos das mulheres. O projeto é denominado Promotoras Legais Populares (PLPs) e desde 1994 propõe a capacitação legal e a ampliação do conceito de cidadania. 

“O Estado deveria garantir o mínimo [uma vida sem violência para todas as mulheres] e, a partir disso, nós [PLPs] pediremos mais políticas públicas, principalmente as de proteção às mulheres.”

Rute Alonso

Logo da organização Themis
O projeto das PLPs surgiu no Peru, na década de 1980. No Brasil, o primeiro curso foi realizado em 1993, pela organização Themis - Gênero e Justiça, no Rio Grande do Sul. [Imagem: Reprodução/União de Mulheres do Município de São Paulo]

Projetos de ajuda mútua já aconteciam desde antes de 2006, mas ganharam notoriedade nos últimos anos devido à aplicabilidade da LMP. A irmandade Mulheres que Amam Demais Anônimas (Mada), por exemplo, existe há 30 anos no país. Segundo Valéria (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada), mada em recuperação, o grupo se baseia nos 12 passos originais dos Alcoólatras Anônimos (AAs) e acolhe desde mulheres vítimas de violência até aquelas com dependência emocional severa. 

A proteção feminina recíproca também é uma discussão que se fortaleceu com a luta protagonizada por Maria da Penha. No trâmite da Constituição de 1988, Rute destaca a existência do denominado Lobby do Batom, união plural de mais de duas mil mulheres — formada por legisladoras, ativistas, acadêmicas, trabalhadoras, domésticas, professoras e freiras — em prol de um país com maior autonomia para elas. O grupo redigiu a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes com mais de 70 reivindicações, entre elas a inclusão do substantivo “mulheres” no texto da Carta Magna, das quais 80% foram incorporadas à redação final. 

Após a institucionalização da LMP, outras medidas direcionadas à proteção feminina foram conquistadas, como a conscientização educativa. Regina destaca o livro Lei Maria da Penha em cordel, escrito pelo músico e arte-educador, Tião Simpatia. O projeto busca tratar a violência contra a mulher por meio da simplificação dos principais artigos que compõem a lei.

Regina acrescenta a importância do desenvolvimento de formações de voluntariados no combate à violência contra a mulher. Incentivados pelo IMP, são programas de extensão nas faculdades que buscam esmiuçar as diferenças entre a violência doméstica e a violência intrafamiliar para os estudantes. “O curso busca um ensino mais lúdico e menos teórico, com um encontro da opinião com a ciência”, declara.

Nessa expansão do conhecimento pela defesa dos corpos femininos, Regina ressalta a importância de se manter uma formação consciente, contínua e, sobretudo, permanente. No artigo 8° da Lei Maria da Penha, algumas iniciativas são especificadas, como a “promoção de estudos e pesquisas sobre a violência contra a mulher para a sistematização de dados nacionais”. Além disso, o trecho prevê  “a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher”. 

Mas as medidas preventivas de violência contra a mulher, como especificadas por Regina, devem ser contínuas. Sob esse pretexto, o artigo 35° da LMP declara os órgãos públicos como provedores da criação de “centros de educação e de reabilitação para os agressores”. A medida, de acordo com ela, é um exemplo da garantia dos direitos básicos ao cidadão que, após devidamente punido pelos crimes cometidos, tem o direito de retornar o convívio social de modo mais consciente. 

“A Lei Maria da Penha não veio punir os homens, ela veio punir os homens autores de violência.”

Regina Célia Barbosa

Logo do Grupo Reflexivo de Homens
Grupo Reflexivo de Homens (GRH) é um programa idealizado pelo Núcleo Judiciário da Mulher (NJM) inserido no conjunto de Medidas Protetivas de Urgência mensuradas na Lei Maria da Penha. [Imagem: Reprodução/Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios]

Além disso, foram desenvolvidas as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM). A primeira delas foi criada no estado de São Paulo em 1985 — dois anos após a agressão sofrida por Maria da Penha. Mas foi apenas em 2023 que a Lei 14.541 determinou o funcionamento ininterrupto dessas delegacias especializadas. 

Uma dor compartilhada

Em 2003, a TV Globo exibiu a novela Mulheres Apaixonadas, de Manoel Carlos.  Além da história da protagonista Helena (Christiane Torloni), a narrativa paralela da personagem Raquel (Helena Ranaldi) cativou o público. A personagem era agredida pelo seu companheiro, Marcos (Dan Stulbach), em um cenário nacional pré-Lei Maria da Penha. A sequência de eventos, na ficção, que levaram Raquel a denunciar Marcos contribuiu no processo de criação da LMP devido ao aumento de denúncias feitas por brasileiras que viviam em situações de violência semelhantes ou iguais às da personagem. 

Prestigiado por tratar de temas sociais considerados polêmicos para o início do século, Manoel Carlos também apresentou o grupo Mada aos telespectadores de Mulheres Apaixonadas. A personagem Heloísa (Giulia Gam) nutria um amor possessivo e doentio pelo seu marido Sérgio (Marcelo Antony). No caso da personagem, “amar” significava “dor”, característica básica de uma mulher que ama demais e que pode estar relacionada ao receio de denunciar uma violência sofrida — caso que não se enquadra na história de Heloísa. 

Graças à novela, Ana (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada), mada em recuperação, passou a identificar o que era a violência cometida contra a mulher e conheceu a irmandade Mada pela primeira vez. Filha de um alcoólatra e de uma mãe que aparenta ter dependência emocional para com seu pai, Ana cresceu em uma família disfuncional e agressiva. Em um ambiente como este, ela avalia que teria um futuro conturbado, reflexo da relação destrutiva que observava em casa. 

Ainda adolescente, Ana se casou com um dependente químico, de quem se divorciou após ir às reuniões da irmandade. Durante esse relacionamento, a mada descobriu, de fato, o que era ser uma mulher que ama demais e também o que era ser uma mulher violentada.

“Ele [meu ex-marido] me afastava dos meus amigos e minha família. Me culpava pelo seu vício nas drogas e uma vez, socou o meu notebook, me empurrou forte na parede e tentou me enforcar.”

Ana, mada em recuperação

Quando adolescente, Ana foi sexualmente violentada. Mais velha, apesar de ter sido alvo de agressões físicas de seu ex-marido apenas uma vez, sofreu dele constantes violências verbais e emocionais. Do seu pai, com quem afirma não ter nenhum vínculo afetivo, ela foi agredida de forma patrimonial, ou seja, com a retirada de seus recursos financeiros — premissa imposta na lei, mas pouco conhecida por grande parte das brasileiras.

Logo de Mada em tons de roxo
Mada é um grupo gratuito de ajuda mútua para mulheres que desejam evitar relacionamentos destrutivos. A irmandade representa um ‘novo ciclo’ à vida de mulheres como Valéria e Ana. [Imagem: Reprodução/Mulheres que Amam Demais Anônimas]

Valéria também veio de uma família disfuncional — seu pai era uma pessoa agressiva com sua mãe e o divórcio entre seus pais, apesar de oficializado, nunca foi colocado em prática. Nas suas relações românticas, essa infância se refletiu: a maioria dos parceiros de Valéria eram dependentes químicos. “Eu achava que era ‘dedo podre’ [que escolhia mal]”, diz. 

Há pouco menos de uma década, Valéria se reconhece como mada e frequenta os encontros para continuar a sua recuperação de uma vida conturbada. Ela declara que nunca foi vítima de agressões físicas — nem das cometidas pelo seu pai nem durante o seu complicado casamento. Porém, reconhece que a convivência com o seu ex-marido era sustentada por manipulações, vitimismos e falta de comunicação  para a colocar como a culpada pelo insucesso do relacionamento. 

“Nunca sofri violência física, mas, hoje, olhando para trás, eu vejo algumas violências psicológicas que sofri por parte de parceiros.”

Valéria, mada em recuperação

Uma luta sem fim

Em dezembro de 2023, Marco Antonio Heredia Viveros, o agressor de Maria da Penha, apelou por uma segunda revisão do processo criminal. A justificativa utilizada pelo autor da tentativa de homicídio é antiga: o tiro que acertou as costas de Maria teria sido resultado de um assalto — alegação já provada inverídica pela Justiça. 

O desarquivamento do caso simboliza, de acordo com Regina, uma retomada da cultura machista e misógina no Brasil. A situação também é vista por ela como um processo de desqualificação da luta das mulheres, em especial, da luta da própria Maria da Penha. Para ela, a descredibilização direcionada à Maria ocorre desde 1983 e, hoje, mesmo que os recursos digitais ajudem a comprovar a veracidade de sua história, ela continua a ser alvo de discursos de ódio.

“Até hoje, é questionada a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Até hoje, o Brasil questiona se pode ou não ter uma lei que proteja as mulheres.”

Rute Alonso

Resultados da pesquisa do DataSenado de 2024 indicam que cerca de 51% das brasileiras acreditam que a Lei Maria da Penha protege apenas em parte as mulheres contra a violência doméstica e familiar no Brasil. Para Rute, esse número simboliza mais do que a percepção da população sobre a eficácia da lei: ele levanta discussões quanto ao status constitucional da LMP e implica em debates sobre novas propostas de alterações jurídicas

Rute observa que mudanças na lei não são, necessariamente, positivas à proteção feminina. De acordo com ela, possíveis sanções podem trazer insegurança às vítimas de violência, uma vez que passam a impressão de uma lei não conclusa, que ainda precisa de ajustes. Rute coloca a proposta de aumentar as punições aos agressores como um exemplo de má implementação de novos recursos, pois acredita que a intensificação das penas não está relacionada a medidas preventivas eficazes.

Porém, a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, publicada pelo DataSenado 2023, aponta que a opinião das entrevistadas difere da de Rute quando a discussão é sobre qual seria a melhor forma de diminuir a violência contra a mulher.

Quanto a Valéria e Ana, as percepções delas sobre as políticas direcionadas ao público feminino são semelhantes. Ambas veem a lei como uma ferramenta jurídica e social que, quando bem aplicada, é capaz de funcionar. “Eu acho que depois da Lei Maria da Penha, as mulheres perderam um pouco do medo e da vergonha de se expor. Antes, a mulher que apanhava achava que a culpa era dela [principalmente uma mada], então ela não tinha coragem de ir denunciar ou procurar alguma ajuda”, diz Valéria.

Hoje, as formas para denunciar quaisquer atos de violência são diversas. Entre elas, a Revista AzMina desenvolveu um aplicativo — chamado PenhaS — para facilitar a realização de uma denúncia segura e rápida pelas mulheres que precisam de ajuda. Ou Ligue 180 para ter acesso ao serviço de enfrentamento à violência contra a mulher. 

[Imagem de capa: Reprodução/Wikimedia Commons]

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