Por André Martins e Henrique Votto
17 de Junho de 1992. 105 mil pagantes, Morumbi lotado. Apesar do apinhado de torcedores, um silêncio angustiante – e ensurdecedor para os são-paulinos – pairava no ar. Ninguém presente conseguia reunir palavras para falar. E nem tentavam, tamanha era a ansiedade e aflição. Apenas observavam, atentos e inquietos, a cobrança do último pênalti pelo argentino. Momentos antes do desfecho, um homem, com o filho nos ombros, olha para Antonio, e grita com força “Essa é para o meu filho, essa é para o meu filho!”. E foi…
Mas comecemos pelo princípio. O São Paulo, em 1990, tinha feito uma campanha pífia no Paulista, que inclusive gerou a polêmica de que o clube havia caído para a segunda divisão do estadual. Telê Santana assumiu como técnico em outubro do mesmo ano e iniciou o trabalho que acarretou na mudança da realidade do clube. Logo em seus primeiros meses no comando, levou o São Paulo à final do Brasileiro, torneio que acabou perdendo para o Corinthians. Era o segundo vice-campeonato do Tricolor seguido.
A partir do ano seguinte, deu-se início à hegemonia são-paulina no cenário nacional e internacional. A equipe faturou o Campeonato Paulista – em cima do rival Corinthians – e o Brasileiro de 1991, que garantiu ao clube a participação na Libertadores de 1992. Os primeiros passos da trajetória tinham sido dados.
O São Paulo compunha o grupo 2 da Libertadores junto com o também brasileiro Criciúma e com as equipes bolivianas San José e Bolívar. Acompanhar os jogos do Tricolor na fase de grupos do torneio não era uma tarefa simples na época. “É preciso destacar que vivíamos num mundo sem internet, e a televisão não dava atenção a certos campeonatos de futebol, principalmente na sua fase classificatória. Como eu podia acompanhar o jogo? Unicamente pelo rádio”, conta Antonio Marcos de Menezes Reis, o Bibo, morador de Aparecida, que tinha 18 anos na época e trabalhava como motoboy.
Cabe lembrar que a própria competição não tinha o mesmo prestígio e ‘peso’ que tem atualmente. Denúncias de escândalos e corrupções, acusações de favorecimentos e a ausência de exame antidoping prejudicavam a imagem da Libertadores até então. Somados à um calendário complicado (dejavu?), que praticamente forçava os clubes a ‘escolherem’ uma competição em detrimento de outra(s). O próprio técnico do São Paulo não queria focar no torneio organizado pela Conmebol. A diretoria, porém, estava levando a sério o “Projeto Tóquio” e sua posição era a oposta: prioridade é Libertadores.
O primeiro adversário foi o conterrâneo Criciúma. “O pequeno e ‘desconhecido’ Criciúma”, como lembra Bibo, mas que havia conquistado a Copa do Brasil no ano anterior e que, portanto, não seria um adversário fácil. Logo de cara, 3 a 0 para a equipe de Santa Catarina. O Criciúma fez juz à sua vaga e decepcionou a massa de torcedores são-paulinos, que esperavam uma vitória de sua equipe. O São Paulo precisaria de tranquilidade para assimilar o golpe e recomeçar. Recomeçou.
Em seguida, vieram os jogos na ‘altitude desumana’ das cidades de Oruro e La Paz, na Bolívia. A qualidade do departamento de preparação física do São Paulo foi determinante. Os jogadores foram preparados de acordo com simulações de situações e condições atmosféricas semelhantes às da altitude que enfrentariam. “O Tricolor confirmou a qualidade de sua estrutura física e praticamente nem sentiu a altitude. Ganhou o primeiro jogo contra o San José por 3 a 0 e empatou o segundo, contra o Bolívar, em 1 a 1, recuperando a autoestima e a condição de grande candidato ao título”, recorda-se Antonio, que acrescenta: “Para nós do interior não era possível acompanhar esses jogos nem pelo rádio. Só sabíamos do resultado no dia seguinte”.
No jogo de volta, em casa, contra o Criciúma, o Tricolor queria a revanche. E teve. “ O time deslanchou. Demoliu o fantasma do ‘petulante’ pequeno-gigante de Santa Catarina. Um show de bola! 4 a 0 categórico mostrando que a linha de ataque com Muller, Palhinha e Raí, e às vezes o incansável Cafu, era irresistível quando jogava bem. O time de Telê Santana mostrava uma engrenagem que realmente assustava quem duvidava dele e que, poderia sim, chegar longe na competição”, remonta Bibo.
No embate contra os bolivianos, o São Paulo repetiu em casa os resultados que conquistou na Bolívia. Uma vitória e um empate, mas invertendo as equipes; empatou com o San José e ganhou do Bolívar. Naquela edição, a vitória contava dois pontos, o empate um e a derrota nenhum. O Tricolor paulista somou 8 pontos e terminou na segunda colocação do grupo, um atrás do Criciúma.
Com a classificação ao mata-mata, veio junto uma empolgação maior da torcida pelo futebol apresentado pelo Tricolor. “Pegaríamos o tradicionalíssimo e perigoso Nacional de Montevidéu nas oitavas, um confronto que realmente mediria nossas forças”, comenta Antonio. O São Paulo avançou de fase, ganhando com autoridade os dois jogos: na ida, no Uruguai, e na volta, no Morumbi. O momento era propício e empolgante. “Já não era possível ignorar o São Paulo. O São Paulo realmente impressionava com sua gana de ser campeão e pela qualidade do futebol apresentado. Telê conseguia montar um time com muita rapidez e técnica no ataque, aliado a uma garra e disposição na marcação”, analisa.
Nas quartas, o Criciúma novamente. O já não mais pequeno time de Santa Catarina também tinha chegado às quartas com personalidade e era um adversário difícil de ser batido. O primeiro jogo aconteceu no Morumbi, com uma visibilidade maior da mídia que transmitiu (com direito à narração de Galvão Bueno pela Rede OM) o duelo na televisão. O São Paulo venceu o jogo por 1 a 0 com gol do atacante ‘simprão’ Macedo. Um gol de vantagem apenas. Pouco. Na partida de volta, o estádio do Criciúma parecia um caldeirão efervescente, como lembra Antonio. “O São Paulo jogava pelo empate e demonstrava certa apatia. O estádio deles explodiu quando o Criciúma saiu na frente! Galvão Bueno foi à loucura na transmissão demonstrando clara imparcialidade. Mas o Tricolor reagiu bem, sofreu mas manteve-se. Num rápido ataque e envolvente troca de passes, Palhinha fez um golaço num potente chute”, relembra o fanático torcedor. Ele estudava à noite e, junto com um amigo, acompanhava os jogos pelo walk-man. Na hora do gol, conta que gritou em plena sala de aula, causando espanto e divertimento nos demais colegas e levando seu amigo à loucura.
Depois do triunfo na ‘primeira final’, o São Paulo passou para as semis com status de favorito. Iria enfrentar o ‘despretensioso’ Barcelona de Guayaquil. Em casa, o Tricolor envolveu o adversário e obteve uma vitória contundente por 3 a 0, com direito ao centésimo gol do atacante Muller pelo clube (vídeo abaixo, com transmissão da Rede OM). A classificação já era dada como certa. “Quem ousaria atrapalhar a saga são-paulina rumo a glória inédita de conquistar a América?”, indaga Antonio. Entretanto, a equipe do Equador mostrou-se não ser tão modesta e venceu, em seu território, o São Paulo por 2 a 0, com direito à ‘frango’ do goleiro Zetti.
https://www.youtube.com/watch?v=xHjYVh1iTIQ
Apesar do nervosismo e da apreensão experimentados pelos são-paulinos nessa derrota, havia um alívio e um êxtase ao término do jogo: o São Paulo estava na final! “Esse ‘mix’ de emoções da partida, típico da Libertadores, deu o tempero certo para a nação Tricolor”, afirma o fanático torcedor.
Newell’s Old Boys. Newell’s Old Boys? A ‘desconhecida’ equipe argentina com nome de banda era o grande adversário do São Paulo. Marcelo ‘El Loco’ Bielsa era o técnico rival. “Só sabíamos que era um time argentino e que estava jogando bem. A excitação e a ansiedade pelo São Paulo estar prestes a ser campeão da Libertadores trazia medo”, desabafa Bibo. Era uma final com direito à todo o script da disputa Brasil contra Argentina. “Apesar da grande rivalidade, parecia que todos estavam torcendo por nós, por aquele feito assombroso reservado a poucos predestinados. E era verdade. O São Paulo era o Brasil. Ainda mais contra um time argentino. O futebol brasileiro procurava uma redenção após vergonhosos fracassos nas Copas de 1986 e 1990, com o futebol medíocre apresentado que desonrou nossa estirpe e escola. O São Paulo, e ainda mais o São Paulo de Telê Santana, seria a redenção do futebol tupiniquim na raçuda, violenta e desleal Libertadores da América. E Telê teria uma triunfante ‘volta por cima’ na sua fama de pé-frio”, relata.
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