Percorrer diversas épocas pela visão de personagens complexos não parece uma tarefa fácil. A premissa de Atlas de Nuvens (Companhia das Letras, 2016) é mostrar vidas distintas que estão interligadas ao longo do tempo e espaço, seguindo uma lógica que pode ser comparada àquela da reencarnação espírita, mas que dá um passo além para assumir o corpo de uma mistura convincente de metafísica, ficção científica e antropologia.
Se o básico do romance já parece desafiador, este aspecto toma proporções gigantescas quando percebemos que o autor se dispôs a traduzir os tempos em todos os meios possíveis: cada ponto de vista — as histórias das personagens são contadas por meio de capítulos intercalados, que devemos conectar para entender o enredo geral — é escrito de acordo com a gramática da época, tanto daquelas que são conhecidas como dos futuros idealizados por David Mitchell. Temos um total de seis tramas: a de Adam Ewing (um marinheiro inglês do séc XIX), a de Robert Frobisher (um compositor na Bélgica, anos 30), a de Luisa Rey (jornalista californiana, década de setenta), a de Timothy Cavendish (um escritor, tempo presente), e as futuristas de Sonmi~451 e Zachry.
O reconhecimento da densidade da trama torna sua confecção — e trabalho de tradução, realizado com maestria (e provavelmente dificuldade considerável) por Paulo Henriques Britto — ainda mais admirável, porém não mais fácil para o leitor: este livro não foi feito para ser lido rapidamente e nem de forma leve. O linguajar antiquado e o tribal de duas personagens em particular — além da torrente de informações difusas que se espera que o leitor seja capaz de juntar — exige uma perseverança acima da média
Apesar disso, a ambição do projeto é envolvente e, de certo modo, um tanto compreensiva com aquele que o espera do outro lado: a trama pesada de Sonmi~451, androide que foge de condições de escravidão de uma Seoul futurista, é intercalada pelo ar cômico das memórias de Thomas Cavendish, um autor que foi colocado num asilo contra sua vontade e se une a outros moradores para escapar. Seus protagonistas não estão apenas unidos por laços metafíscos como por conexões mais palpáveis: Luisa Rey encontra composições de Robert Frobisher, que, por sua vez, têm possessão do diário de Ewing; Zachry vive num mundo onde Sonmi~451 é tida como algo próximo a uma divindade.
Ao mesmo tempo que corremos para acompanhar e montar o quebra-cabeça que é colocado na mesa, também somos impactados pelas reflexões delicadas da narrativa sobre a natureza humana e a marca que cada um deixa no mundo, na medida em que as personagens aprendem algo maior e, por meio de seus registros, têm suas reflexões levadas à frente e aprofundadas pela visão das gerações e indivíduos do futuro. O grande arco, ao fim, deixa clara a ambiguidade inerente à existência: nossa insignificância em meio a imensidão de todas as populações que já viveram e ainda viverão, e a importância inegável das experiências de cada uma dessas pessoas para a produção de (auto)conhecimento da humanidade como um todo.
Por Bárbara Reis
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