O chá surgiu na China e, na mitologia chinesa, sua descoberta deveu-se ao acaso: por volta de 2.737 a.C., o Imperador Shen Nong descansava embaixo de uma árvore quando algumas folhas caíram na água que ele tinha o costume de ferver para beber. Ao experimentar a água, apaixonou-se por seu sabor refrescante e sua predileção pela bebida fez com que ela se espalhasse pelos quatro cantos do país. Especialistas e historiadores, no entanto, atestam que Shen Nong nunca existiu. O primeiro consumo de chá, resultado da infusão — imersão e extração em água quente — de folhas da planta Camellia sinensis (o arbusto do chá), data, na realidade, da Dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), quando os monges budistas o utilizavam para ficar acordados durante períodos de vigília. Séculos depois, durante a Dinastia Tang (618 – 907), o chá deixou as salas de meditação e conquistou a aristocracia e, enfim, o cidadão comum. A expansão do alcance da bebida teve forte influência de Lu Yu, autor de C’ha Ching (chamado no Ocidente de The Classic of Tea), primeiro livro sobre o tema.
Lu Yu foi criado por mestres budistas e era notável por identificar os níveis de pureza de águas com diferentes procedências. Segundo relatos históricos, nem mesmo seus discípulos mais aplicados conseguiam preparar chás tão saborosos quanto os seus. Seu livro documentava os melhores componentes para a preparação e a degustação de um bom chá, como o local adequado para o plantio e a qualidade necessária da água para a infusão.
Apesar de a abordagem histórica superar em credibilidade o mito, o chá nasceu entre monges e, por isso, sua origem está também envolta por simbolismos. “Logo no seu início, o chá foi atrelado às práticas xintoístas e taoístas, principalmente o Tao, na China. Por o Tao ter o conceito de você fazer parte de uma natureza maior, eles acabam colocando o chá como uma bebida que faz o canal entre o místico e a realidade no nosso dia a dia, transformando-o também em uma ferramenta de melhoria”, afirma a especialista em chá Yuri Hayashi, fundadora da Escola de Chá Embahú.
Desde que monges japoneses trouxeram o chá ao seu país depois de etapas de estudo na China, o Japão fez da bebida uma tradição entre seus habitantes. Yuri, que vem de família japonesa, esteve habituada a beber chá desde pequena e foi desse costume que surgiu a vontade de ministrar cursos. “Comecei a estudar por conta própria e, para me incentivar, montei um blog, mesmo que não tivesse leitores. Com o passar do tempo, começaram a aparecer pessoas. Quando me mudei para São Bento do Sapucaí, SP, em 2010, já estavam me pedindo cursos”. A formalização da Escola de Chá Embahú veio em 2015, dois anos depois dos primeiros cursos ministrados por Yuri. A sede é sua casa, em São Bento do Sapucaí.
Nos anos 2000, a comunidade brasileira em torno do chá era tímida e a nomenclatura usada ainda era “chás gourmets”, e não “chás especiais”, como postulam as escolas de chá de hoje. Como o chá é resultado da imersão e extração em água quente das folhas da Camellia sinensis, toda e qualquer bebida preparada com outras plantas é chamada de infusão, nome também dado ao processo de preparação da bebida: o “chá” de camomila, por exemplo, não é chá, mas sim uma infusão.
Da Camellia sinensis é possível produzir seis tipos de chás: branco, verde, amarelo, oolong, preto e escuro. O que gera essa diversidade é o processamento, em que uma mesma folha pode adquirir cores, texturas e gostos diferentes. A cerâmica — tanto em relação ao material quanto ao formato —, assim como as condições de plantio e a água da infusão também modificam o gosto do chá preparado.
Do Oriente ao Ocidente
O primeiro registro oficial do contato dos europeus com o chá data de 1559, em uma troca comercial entre um cidadão italiano e um mercador persa chamado Haji Mahomet. Nessa época, as naus portuguesas e de outros países europeus, como Espanha e Holanda, já avançavam em direção ao Oriente em suas expedições marítimas. Em 1606 houve o primeiro registro oficial de um carregamento de chá, trazido para a Europa pela Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Nos anos seguintes, Portugal e Holanda dominavam o comércio da planta e difundiram a bebida pelo Ocidente. No início, o chá era comercializado como medicamento, a preços muito altos — alguns gramas valiam o salário mensal de todos os empregados de uma casa aristocrática. Portanto, somente as classes mais altas, em especial a nobreza, podiam dispor de seus efeitos curativos — acreditava-se que possuía efeito tonificante, dando vigor ao corpo.
Aos poucos, a bebida passou a ser apreciada como acompanhante de refeições, por seu gosto e sua estética. Após o casamento da portuguesa Catarina de Aragão com o rei Charles II, a estética do chá fez sucesso na Inglaterra. Enquanto nos países britânicos o chá era só um remédio, em Portugal Catarina já era familiarizada com o consumo diário da bebida. No século 17, era comum que as mulheres da corte imitassem a rainha; tudo o que ela fazia — as roupas que usava, a mobília que escolhia — virava tendência, e isso também ocorreu com o chá. Logo, além da planta, peças de porcelana e diversos utensílios começaram a desembarcar na Europa, o que gerou uma competição para saber quem tinha as xícaras mais bonitas.
Na Era Vitoriana, Anna, duquesa de Bedford, foi quem instituiu o chá da tarde, ou o afternoon tea. Na década de 1840, até mesmo a rainha Vitória já recebia convidados para seu chá da tarde formal, cuja mesa posta tinha, além do chá, tortas, biscoitos, sanduíches e queijos.
Eloína Telho, especialista em chá, embaixadora da Escola de Chá Embahú e colunista no Portal Gastronomix, entrou no mundo do chá justamente a partir de um clássico inglês, o livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. “A minha mãe tem uma grande amiga, que é cientista e bibliotecária e, quando eu tinha três para quatro anos de idade, ela me deu o livro. Isso me encheu os olhos e eu sempre brincava de chá, de montar a mesa e colocar as bonecas”. Quando adolescente, Eloína fez um intercâmbio para Oxford e lá conheceu o chá da tarde original. “O meu momento mais precioso do dia, que era um momento de afeto, era quando eu voltava da aula e a Sue, minha mãe da Inglaterra, me esperava com chá e biscoitos”. Em 2012, já adulta, sua viagem à Índia e seu contato com o chai — típico chá indiano — despertaram a vontade de estudar o assunto de maneira mais séria e ela criou, em 2016, o Chazeira (@chazeira), perfil no Instagram para documentar suas experiências com a bebida.
É impossível desvencilhar a Inglaterra da cultura do chá. O que se iniciou na aristocracia conquistou as classes mais baixas e, hoje, o consumo de chá supera o de café e faz parte do cotidiano de praticamente qualquer cidadão inglês. Sobre essas adaptações culturais, Yuri diz: “O chá da tarde é a cerimônia de chá dos ocidentais e conquistou todo o Ocidente. Nos Estados Unidos, é o chá gelado. Então, cada um foi se descobrindo de uma forma. Acho que isso é ótimo, pois tem uma justificativa cultural, tradicional, e o país desenvolve aquilo”.
Assim como Yuri, Eloína ressalta que os caminhos do chá são vários e cada país, cada povo, pode escolher o seu: “O chá foi uma grande moeda na Antiguidade e ele moveu o mundo de muitas formas: reconfigurações geográficas, políticas, grandes guerras. Então, considero que não só a planta faz chás diferentes, ela de alguma forma impacta culturas e essas culturas acabam se refletindo nos chás que elas produzem”.
Da perspectiva educacional, Yuri, como professora e degustadora, enxerga algumas diferenças entre os paladares chinês e japonês e o paladar europeu. Os ocidentais têm preferência por blends, misturas de chás entre si, ou com ervas, frutas e flores, e não costumam beber chás puros. O Earl Grey, um dos chás mais apreciados da Inglaterra, é um blend: chá preto aromatizado com óleo de bergamota. “É engraçado que hoje em dia você já vê uma adaptação até mesmo dentro dos mercados deles [China]. Eles vêem que precisam fazer algumas adaptações para conquistar o mercado externo. A medicina tradicional chinesa, por exemplo, usa muitas infusões, mas para tratar sintomas, e não para colocar dentro do chá. Mas eles já viram que o chá verde aromatizado com flor de jasmim é um sucesso mundial, então eles produzem aos montes. Quando você, ocidental, chega na China, vão te ‘empurrar’ o chá verde com jasmim, porque eles já perceberam que nosso paladar é um pouco diferente”, relata Eloína.
Existe cultura de chá no Brasil?
Yuri, que viu a comunidade de interessados em chá na internet crescer, percebe que, nos últimos cinco anos, há um resgate de seu consumo devido ao movimento de valorização da gastronomia brasileira. Apesar disso, não há dúvidas: no Brasil a cultura é da infusão, e não do chá. “Essa cultura da infusão herbal é fruto da nossa colonização e da herança indígena. Portugal era disso, de fazer infusão medicinal, e trouxe para cá e juntou com os indígenas, que já faziam”.
A cultura brasileira da infusão não impediu que plantações de chá se estabelecessem no país. O rei D. João IV trouxe para o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 1812, mudas de Camellia sinensis e, dois anos mais tarde, centenas de trabalhadores chineses para atuarem no plantio. As mudas não se adaptaram e foram substituídas por café, que até hoje é a bebida quente mais comum no país. Só no século 19, com a imigração japonesa, o Brasil viu o chá florescer: A cidade de Registro, no interior de São Paulo, é considerada a capital brasileira do chá e isso se deve à grande quantidade de colonos japoneses que lá se firmaram.
Cursos de análise sensorial, como o oferecido pela Escola de Chá Embahú contribuem para perceber as particularidades do paladar brasileiro. “A gente faz uma análise visual das folhas, notas de folhas secas e folhas úmidas, uma análise visual do licor — chá pronto, com folhas coadas e separadas —, de gostos básicos, de sabores encontrados e a gente também faz a análise do chi do chá, que é a energia vital em relação ao seu corpo, se ele te excita, te acalma, se a energia dele é neutra”, explica Eloína. Segundo Yuri, o Brasil não passou pela evolução do paladar, pois, de modo geral, brasileiros tomam chá pelos efeitos medicinais e não por prazer. Ela afirma que, nos primeiros anos de curso, os alunos têm dificuldades para identificar gostos básicos e que isso indica falta de treinamento do paladar.
Mesmo quando o chá é tomado por prazer, a exemplo dos europeus, os consumidores brasileiros preferem blends e infusões, na maior parte das vezes adoçadas com açúcar ou mel. Bianca Luz tem 22 anos e, desde que se mudou para o Rio de Janeiro na infância, adquiriu o costume da avó e toma chá com frequência: “Meus chás preferidos são as misturas. Eu gosto muito de misturar chá preto com frutas vermelhas e cítricas também”. Ela substituiu o café pelo chá de manhã e não costuma bebê-lo durante a tarde. Guilherme Andrade, de 19 anos, é descendente de ingleses e suas preferências limitam-se ao chá preto com leite. A convivência com sua avó fez com que as pausas para o chá fossem sagradas: “O chá salva vidas em dias estressantes. As pausas do chá são muito necessárias, até mesmo aquelas pausas só para uma leve procrastinada”.
Os chás modernos
Tanto Bianca quanto Guilherme integraram o chá em suas rotinas por influência de suas avós. E esse parece ser também o cenário na China e no Japão atuais. “O chá é algo muito tradicional. Antigamente houve o ápice e, como todo ápice, ele decai. Hoje, em ambos os países, é visto como uma bebida de pessoas idosas”, afirma Yuri. Por consequência, os mercados tentam se adaptar ao público mais jovem e as casas de chá milenares foram substituídas pelas mais modernas. “O panorama que vejo tanto na China quanto no Japão é um pouco parecido, de tentar reconquistar essa tradição. Se você me perguntar o que hoje tem de mais expressivo na China, são os chás modernos. Chás tipo Starbucks, já num copo descartável, aquele bubble tea, que vem com as bolinhas de tapioca”, explica a especialista.
Seguindo a história do chá, percebe-se que os ideais taoístas definiram em torno dele uma cultura pacifista e, por isso, as releituras culturais e de mercado são bem aceitas e válidas. Para ambas as especialistas, seja bubble tea, seja chá em sachês, blends ou chás especiais, o importante é experimentar e apreciar a bebida. “É um jeito de você aproximar a bebida de um público jovem, que acha que fazer chá num bule é coisa de vó. É uma forma de trazer as pessoas para dentro de uma cultura milenar e que, se você não fizer algo, pode se perder”, argumenta Eloína.