por Gabriel Lellis
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O Flamenco é uma dança tipicamente espanhola. Surgiu de forma hibrida a partir das influências da cultura árabe e da cultura cigana que conviveram juntas durante muito tempo na Península Ibérica. É sempre acompanhada pelo som de violões, castanholas e vozes que parecem de lamento. Por trás de movimentos rígidos há um jogo de sedução entre os bailarinos no qual a mulher tem um papel de destaque, representando a força das mulheres da Espanha.
A obra cinematográfica do diretor Carlos Saura é uma homenagem e uma representação da cultura flamenca espanhola. Suas películas são filmadas ora com o ritmo do dedilhar de uma castanhola, ora com o choro de um lamento cigano. Os filmes de Saura, dentre toda a obra de diretores espanhóis, são a mais pura declaração de amor à Espanha e sua cultura tradicional.

A vida antes da obra
Carlos Saura nasceu em Huesca, na Espanha, no ano de 1932, pouco tempo antes do inicio da guerra civil. Sua terra natal foi palco dos mais sangrentos conflitos do período (que vai de 1936 até 1939), obrigando sua família a percorrer o país em busca de um local seguro para viver. Sob a sombra da opressão, fugiu para lugares como Valencia, Madrid e Barcelona. Escondidas em seus filmes estão diversas referências à guerra e a melancolia que causa. Em Elisa via mia (1997) há diversas tomadas que filmam muros e construções danificados que representam a necessidade de uma proteção contra o conflito e a lembrança da fuga contra o medo da morte.
Sua carreira começou com a fotografia. Aos 19 anos já realizava sua primeira exposição em uma galeria em Madrid. Durante anos foi repórter fotográfico, registrando a efervescência da dança e da música na capital.

Era impossível viver na Espanha nas décadas de 40/50 sem ser contagiado pela vida artística. Saura se apaixonou pela obra enigmática do pintor Goya, pela música cheia de imagens do compositor Albéniz e pelo cinema do surrealista Buñuel. E foi pela influência deste último que começou a fazer cinema.
Seu primeiro filme, La tarde de domingo estreou em 1956. Nove anos e três filmes depois alcançaria repercussão internacional com La caza ( idem, 1965), que lhe rendeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.
Posteriormente, Saura ganharia outros prêmios de destaque, como o Urso de Ouro, no Festival de Berlim, prêmio Goya de cinema, além de outros prêmios no festival de Cannes e duas indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro (com os filmes Mamãe faz cem anos (Mamá Cumple Cien anões, 1979) e Carmen (idem, 1983). Em toda sua carreira até hoje, lançou cerca de 40 filmes.

Ciganos, castanholas e espelhos
Toda a obra de Saura se destaca pelo refinamento estético. As cores fortes, a música e a constante presença da dança flamenca são os pontos principais de seus filmes.
Merece um destaque especial a Trilogia Flamenca, composta por três filmes cujo enredo é contado e conduzido a partir de bailarinos cuja própria vida se confunde com a dança. Bodas de sangue (Bodas de sangre, 1981), Carmen e Amor bruxo (El amor brujo, 1986) compõe a trilogia.
Carmen é o que melhor ilustra o estilo do diretor. O filme conta a história de uma companhia de bailarinos que resolve encenar a famosa ópera homônima de Bizet. A vida dos bailarinos se mistura com a dos personagens representados na dança e é contaminada pelos mesmos acontecimentos trágicos da obra que encenam. Essa simbiose provoca um questionamento no espectador: em cena está acontecendo a vida real ou apenas uma representação da ópera? O cinema entra em uma relação metalinguística com a dança. A arte discutindo sobe a própria arte.
As bailarinas levam para a dança toda a pulsão de suas rivalidades pessoais
Uma característica muito singular dos filmes de Saura é a constante presença de espelhos. Estes ampliam as dimensões do cenário como se denunciassem que uma mesma realidade pode ser vista de diversos ângulos. São os espelhos que denunciam os segredos da vida privada.
As sombras também têm um papel fundamental. São como extensões do corpo, reflexos de uma “aura” do indivíduo cuja existência é efêmera e dependente de um jogo de claro e escuro.
Cabe aqui ressaltar a importância do filme Iberia (idem, 2005), um grande espetáculo de dança em homenagem ao compositor Albéniz. Não há enredo, apenas danças criadas a partir das imagens fornecidas pela música. Cabe ao espectador criar a história. Vencedor do prêmio Goya de melhor fotografia, é um dos filmes de mais bela estética da história do cinema. Todos os elementos “saurianos” estão lá: os espelhos, o jogo de sombras, a figura de poder feminino, o lamento cigano, o ritmo das castanholas e do flamenco.
Cena do filme Ibéria. Além do jogo de sombras, há uma clara referência à cultura árabe que por anos ocupou a Espanha
Carlos Saura hoje continua vivo. Há algum tempo não produz filmes, mas ainda há uma esperança que sua “metalinguagem flamenca” renasça nas telas. O cinema ainda carece de diretores talentosos que saibam dirigir o filme como o ritmo perfeito de uma castanhola.