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“Como se eu não fosse capaz…”: Machismo e opressão são pilares do assédio no esporte feminino

Atletas e profissionais do esporte denunciam casos e apontam assédio cometido por torcedores, treinadores, comissão técnica e diretoria dos clubes em que passaram
Por Guilherme Bianchi (guifavaro240306@usp.br) 

Ariane Patrícia, Jenni Hermoso, Luciane Escouto, Ana Paula Henkel. Essas e muitas outras mulheres diretamente ligadas ao esporte dividem uma infeliz experiência: o assédio. Gestos obscenos, piadas ofensivas, intimidações, ameaças e importunação sexual são exemplos de agressões. 

Em pesquisa conduzida por Joanna Maranhão, ex-nadadora, 93% dos atletas brasileiros relatam já ter sofrido algum tipo de inconveniência. Destes, 64% são mulheres.

Afinal de contas, o que é o assédio?

Assédio é crime! Não é não!  [Imagem: Reprodução: Freepik]

Apesar de geralmente associado apenas ao inconveniente físico, o assédio pode ser categorizado por inúmeras violências, sendo elas psicológicas, sexuais e morais. Em março de 2024, a jornalista esportiva Camila Alves (Globo Esporte) entrevistou 209 jogadoras de futebol de diferentes clubes de todo o Brasil. O resultado da pesquisa revelou que 52,1% das atletas já sofreram algum tipo de assédio por parte de árbitros, torcedores, treinadores, comissão técnica e diretoria dos clubes por onde passaram.

No dia 21 de março, a equipe feminina de futebol da Ferroviária utilizou suas redes sociais para publicar uma nota de repúdio contendo uma denúncia de assédio sofrido por Ariane Patrícia Falavina dos Santos, coordenadora do departamento médico e de fisioterapia do clube. Segundo a equipe paulista, o acontecimento data do jogo entre Ferroviária x Real Brasília, realizado no dia 19 de março, pelo Campeonato Brasileiro Feminino.

Na ocasião, uma atleta da instituição de Araraquara e a vítima relataram à árbitra da partida “comentários indesejados” feitos por uniformizados do Real Brasília. Em súmula, Luciana Leite, autoridade de arbitragem do jogo, reportou: “Ao final da partida, com toda equipe de arbitragem no vestiário, a fisioterapeuta da equipe da Ferroviária SAF, a sra. Ariane Patrícia Falavinia dos Santos, relatou que, no final do segundo tempo, quando a mesma entrou em campo para atendimento médico de sua goleira, ouviu de membros uniformizados, porém não identificados, da equipe do Real Brasília Futebol Clube Ltda. as seguintes palavras: ‘Pode mandar ela vir para cá, ela é gostosa’. Informo que ninguém da equipe de arbitragem presenciou o fato relatado”.

Mais tarde, a equipe brasiliense, por meio de suas redes sociais, negou qualquer tipo de envolvimento no ocorrido, alegando falsas declarações do clube da Locomotiva. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol), posicionou-se em nota oficial, repudiando o episódio e saindo em defesa da profissional da equipe paulista.

A Lei nº 10.224/2001, de 15 de maio de 2001, prevê detenção de 1 a 2 anos por crimes de assédio sexual, porém, devido à não identificação dos criminosos e à negação do clube, nenhuma punição foi aplicada, restando apenas o constrangimento à vítima.

Ariane Patrícia Falavinia dos Santos no CT da Ferroviária [Imagem: Reprodução/Instagram: @arianefalavinia]

Chantagem, constrangimento e despreparo das equipes brasileiras

“Era uma melhora significativa no contrato financeiro e a condição era ceder aos caprichos de um homem, de um dos dirigentes do time. [Foi] descarado, falado em todas as letras. Eu tinha 18, 19 anos.”. É assim como Ana Paula Henkel, ex-jogadora de voleibol brasileira, relata o caso de assédio sexual que sofreu há quase 30 anos atrás. Na época, Ana Paula atuava na equipe do Gerdau Minas, popularmente conhecido como Minas.

Ana Paula Henkel, ex-atleta de voleibol brasileira [Imagem: Reprodução/Instagram: @anapaulavolei]

De acordo com o Tribunal Superior do Trabalho, o assédio sexual é definido, de forma geral, como o constrangimento com conotação sexual no ambiente de trabalho, em que, como regra, o agente utiliza sua posição hierárquica superior ou sua influência para obter o que deseja. Assim como Ana Paula, milhares de mulheres por todo o país sofrem com a violência do assédio.

Em 2019, o TST registrou que essa prática foi tema de mais de 4700 processos envolvendo o ambiente de trabalho das mulheres no Brasil. Já em relação às práticas esportivas, segundo especialistas, não há, no Brasil, um número oficial ou específico sobre casos de assédio, o que corrobora o silêncio ensurdecedor que envolve a agressão sofrida por atletas, sobretudo as mais jovens, e o despreparo das equipes para lidar com problemas desta ordem.

Machismo e Sexualização

Os recorrentes casos de assédio, em suas plurais maneiras, são manifestações de um problema enraizado na sociedade brasileira, o machismo. As consequências do preconceito desfocam o desempenho das atletas e levantam questões de gênero. São exemplos, a sexualização do corpo feminino, a discrepância nos salários e a falta de investimento nas categorias femininas.

Durante as olimpíadas de Atenas em 2004, Ana Paula Henkel, aos 29 anos e em sua terceira participação nos jogos olímpicos, foi novamente vítima de assédio. Dessa vez, o constrangimento foi provocado pela mídia brasileira após a eliminação da atleta na modalidade de vôlei de praia.

Ana Paula chegava às Olimpíadas como grande favorita devido à recente conquista do Circuito Mundial. No entanto, acabou sendo eliminada nas quartas de final no vôlei de praia, terminando na quinta colocação.

Ana Paula Henkel foi medalhista de bronze em Atlanta no vôlei de quadra [Imagem: Reprodução/Instagram: @anapaulavolei]

No dia seguinte à eliminação, a ex-atleta incomodou-se com a maneira com que o ocorrido foi noticiado, valorizando mais seus atributos físicos do que propriamente seu desempenho na competição: “Eu fiquei p… da vida de ver minha desclassificação na manchete e ‘a bunda mais bonita de Atenas se despede das Olimpíadas’”, lembra ela. “Eu tinha treinado três anos para estar ali, tinha chances de medalha”.

Essa denúncia reforça a visão machista que ainda cerca o esporte mesmo nos dias atuais, a qual promove a sexualização do corpo de mulheres e minimiza suas atuações como profissionais, fato esse que não é recorrente em modalidades masculinas.

Silenciamento e desvalorização: Os mecanismos do assédio moral

Silenciamento e assédio moral: Repressão é crime! [Imagem: Reprodução: Freepik]

O assédio moral é definido pelo Ministério da Saúde como uma conduta abusiva, frequente e repetitiva, que humilha, constrange e desqualifica uma pessoa ou um grupo. Entre as agressões, destacam-se o isolamento da vítima, a desvalorização e a repressão, geralmente associadas ao abuso de poder e preconceito.  

Comportamento historicamente normalizado no espaço esportivo, o assédio tem inoportuna presença no cotidiano feminino. Desde remuneração a visibilidade desiguais, o esporte contemporâneo mostra-se cada dia mais machista e excludente, visto que silencia precocemente as minorias e provoca uma necessidade desses grupos em “provarem seus valores” diante da falta de equidade. Em entrevista concedida ao Arquibancada, Rhayssa de Jesus (18), jovem atleta amadora de futebol, falou sobre a sua experiência em atuar ao lado de homens: “quando jogo com pessoas desconhecidas, me sinto insegura por falta de confiança deles. Já sofri muito preconceito, os meninos ficavam com brincadeiras ‘não precisa marcar a menina’, ou quando eu fazia algo impressionante para eles, ouvia risadas e comentários do tipo ‘pra menina?’, como se eu não fosse capaz”.

Brincadeiras desse tipo são cotidianamente aceitas e, por mais inofensivas que pareçam, geram danos irreparáveis. Caracterizado como assédio moral, o caso da jovem de 18 anos revela a desvalorização e a repressão sofrida por meninas desde as primeiras práticas esportivas, sejam elas no âmbito escolar, locais de lazer e até mesmo em casa.

Eliane Pimentel (35), professora de educação física na rede de ensino do Estado de São Paulo, relatou que presencia episódios de assédio moral contra meninas nas aulas práticas. “São frequentes as falas machistas que os meninos pronunciam. Vejo que para as meninas é extremamente desmotivador, muitas não praticam por se sentirem inferiores e até mesmo por terem medo de errar, para não serem xingadas e ofendidas pelos meninos”.

No Brasil, o projeto de lei 4742/01, que tipifica, no Código Penal, o crime de assédio moral no ambiente de trabalho, não se enquadra ao convívio público e social geralmente relacionado ao esporte, portanto, o assédio moral não é descrito como ilícito disciplinar e gera brechas na integridade pública.

Resistência feminina e a luta contra o assédio

Para combater tantas violências presentes no esporte e a perseguição sofrida por milhares de mulheres, a atuação de ONGs e projetos sociais são fundamentais como formas de resistência.

Entrevistada pelo Arquibancada, Leticia Ayumi Inoue (31), atleta amadora de voleibol, enxerga o investimento na educação igualitária e a desconstrução do machismo como alternativas: “Nossa sociedade ainda é machista, e para mudar essa situação acho que isso deve começar desde quando nascemos, nossa educação precisa ser baseada em igualdade. Um modo que, infelizmente, vejo como solução é a exposição do machismo. Ninguém gosta de ser exposto a uma situação ruim ou criticado, mas acredito que promover debates também pode ajudar”.

Como exemplo de resistência, o “Grupo Mulheres do Brasil”, fundado em 2013, responsável pelo Comitê Esporte, órgão dedicado à promoção da presença feminina no âmbito esportivo, fundamenta-se na iniciativa da ONU Mulheres para fazer do esporte um ambiente mais receptivo às atletas. O projeto tem como um de seus objetivos garantir ambientes livres das plurais práticas de assédio.

Rhayssa de Jesus acrescentou em seu depoimento a importância das atletas profissionais como referências às mais jovens: “Acredito que as atletas que lutam por igualdade no esporte influenciam muitas meninas que pensam em desistir do esporte por simplesmente ser dominado por homens. A maioria das escolinhas de futebol, por exemplo, só tem times masculinos, e se tem alguma menina, não se tem tantas oportunidades em campeonatos. Graças a algumas jogadoras profissionais que batalham por essa igualdade, temos alguns projetos como o “Em busca de uma estrela” da Cristiane, que oferece oportunidades para meninas que sonham em ter um futuro no esporte”.

Campanha Grupo Mulheres do Brasil São Paulo contra o assédio no esporte [Imagem: Reprodução/Instagram: @grupomulheresdobrasilsaopaulo]

O programa em questão tem como missão oferecer igualdade de oportunidades para jovens atletas por meio do futebol, realçando a equidade de gênero e o empoderamento feminino.

Ao utilizar o esporte como instrumento de transformação educacional e social e proporcionar a possibilidade de inserção das meninas no mercado esportivo, a iniciativa busca ser um fator de mudança e positividade para o próximo passo do futebol feminino no Brasil.

Campeonato feminino organizado pelo projeto “Em busca de uma estrela” [Imagem: Reprodução/Instagram: @embuscadeumaestrela]

Importância da denúncia

Se você sente que está sendo vítima de assédio, procure alguém de confiança para conversar e consulte orientação jurídica para te ajudar a decidir a melhor maneira de proceder. Colete a maior quantidade de provas possível: nome do agressor, testemunha, descrição dos fatos, local, data e horário das agressões.

Não é incomum que a vítima tenha vergonha ou medo de denunciar um crime de assédio – mas é de suma importância quebrar o silêncio, tanto para proteger a sua integridade física como para prevenir que o agressor prejudique outras vítimas.

Para o envio de denúncias de assédio moral ou sexual, o FalaBR, plataforma disponibilizada pela Controladoria-Geral da União, pode ser usada no caso de denúncias a serem encaminhadas aos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, bem como aos órgãos dos Executivos estaduais e municipais que adotam o FalaBR como ferramenta de ouvidoria. Além disso, operando 24 horas por dia, o Disque 100 – Disque Direitos Humanos – oferece um canal de comunicação confidencial e seguro para que pessoas em situação de violência possam buscar ajuda e denunciar abusos.

Por último, é importante frisar: a responsabilidade pelo assédio é única e exclusiva do agressor, e nenhum ato poderia justificá-lo.

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