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De princesas a feministas: as diversas visões dos concursos de beleza

O universo das misses reproduz ideias históricas do patriarcado, mas também é importante para dar visibilidade a diversas causas

Nas vésperas do Concurso Miss Universo Brasil 2021, Julia Gama, Miss Brasil 2020, foi “desconvidada” da edição, que ocorreu no início de novembro, fato que rompeu com a tradição de passagem da coroa de vencedora pela miss do ano anterior à atual. Sem entender o motivo, Júlia supôs em suas redes sociais que o posicionamento político distinto entre ela e a instituição do concurso de beleza seria a justificativa. Já a franquia do Miss Universo disse, em nota, que ela teria descumprido cláusulas relacionadas ao zelo da instituição, visto que se pronunciou contra algumas de suas regras, consideradas machistas por Júlia. Após o ocorrido, outras misses se pronunciaram contra a decisão, o que levou até mesmo à desistência de uma das juradas da edição, Raíssa Santana, campeã de 2016. 

Por outro lado, o Miss Alemanha, que, em 2022, coroou a brasileira Domitila Barros, redefiniu suas regras em 2020. A idade limite das candidatas aumentou em dez anos, a participação de mães e casadas foi liberada e o desfile de biquíni foi abolido. Assim, o concurso se afasta do viés machista e dá mais espaço às discussões sociais, motivo que levou Domitila a participar do Miss Alemanha.  

Esses são exemplos de como os concursos de miss geram controvérsias relacionadas às suas regras e até mesmo à sua existência. Essas discussões repercutem questões históricas sobre a visão das mulheres pela sociedade: de princesas, com rostos, corpos e comportamentos perfeitos; até feministas, com escolhas e desejos próprios. 

A reprodução de valores históricos

Para ser uma candidata a maioria dos concursos de miss, a mulher não pode ter filhos e nem ser casada. E esse segundo critério foi uma das críticas feitas por Júlia, que acredita que isso não afeta a profissionalidade das misses e é uma invasão de privacidade. Ela ainda comentou em entrevista ao portal g1 que o papel da miss é representar o país e suas causas, “e não ser um chamariz pra patrocinadores porque ela é solteira”. 

Maria Carolina Medeiros, doutoranda em comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisadora de narrativas sobre mulheres,  acredita que essa norma carrega consigo a ideia de disponibilidade da mulher, o que atrai o olhar — é o “chamariz” citado por Júlia. A pesquisadora explica que a feminilidade, historicamente, está associada ao casamento e à maternidade, assim, “a mulher que preenche estes ‘requisitos’ teria ‘completado’ essa performance, e não seria mais objeto de interesse”.

 

 

Essa regra fez com que Andrea Meza, Miss Universo 2020, quase perdesse a coroa após internautas encontrarem uma foto vestida de noiva em seu Instagram. Depois da acusação, a miss esclareceu que a fotografia fazia parte de uma campanha de promoção para casamentos. [Imagem: Instagram/Andrea Meza]

 

Já para Roberto Macedo, jornalista e missólogo, a explicação para essa regra é que o Miss Universo é um compromisso em que a mulher tem obrigações. “Então, ela é independente, livre para viajar, ir a programas de televisão, e a programas beneficentes [, por exemplo]. E ter filhos ou marido pode prejudicar essa agenda”, opina. 

A reprodução de valores conservadores, entretanto, vai além das restrições matrimoniais e maternais. O apelo pela beleza, como limitador das participantes do concurso, também reconstrói características do passado e pode ser exemplificado pelo Miss França 2021. A edição foi processada devido a exigências discriminatórias para participação das mulheres, como ter ao menos 1,50 metro de altura, não ter tatuagens ou mechas no cabelo e ainda poder ser multada caso sofra grandes mudanças físicas entre o período da inscrição e do evento. 

Esses requisitos não só contrariam a tentativa de mudança de outros concursos de beleza, como o Miss Alemanha, como também são um retrocesso às conquistas do feminismo, aproximando-se do significado que antigamente o espartilho carregava, ao moldar o corpo feminino e tentar o aproximar de um padrão. Joana Vilhena Novaes, psicoterapeuta e coordenadora do Núcleo de Doenças de Beleza da PUC-Rio, conta que, uma vez que a vencedora ganha mais visibilidade e compensação financeira, a ideia de que não há nada mais valioso para as mulheres do que a beleza se perpetua. Para a psicoterapeuta, essa importância dada à beleza manifesta toda a construção social do patriarcado: “esses concursos são emblemáticos dessa lógica, que não está restrita às misses: isso é aplicado a todo e qualquer sujeito feminino”.

Segundo Joana, com a exigência para as mulheres de um padrão de corpo, fato que é alimentado pelos concursos de beleza, há um adoecimento físico e mental em massa como sintoma social. Distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia que, por si só, são perigosos para saúde, ainda podem vir acompanhados de tentativas de suicídio. 

A psicoterapeuta também ressalta que, apesar dos concursos de miss representarem a busca por uma beleza padronizada, esse movimento é um sintoma cultural e histórico, e que, hoje, plataformas como TikTok e Instagram são as principais passarelas. Com o grande alcance dessas redes, inúmeras pessoas, usuárias ou não, podem ser impactadas por algum ideal de beleza criado digitalmente. 

A importância dos concursos de miss 

Na imagem, uma garota branca usando uma coroa de perolas, vestido verde-água e uma faixa amarela escrito Miss Recife 2021 que mostra que ela ganhou um concurso de beleza, posa.
Além de miss, Cinthya é estudante de engenharia naval, modelo e faz parte de uma ONG. Para ela, isso pode inspirar outras pessoas a seguirem seus sonhos. [Imagem: Reprodução/Instagram]
Cinthya Moura, Miss Recife 2021, conta que os concursos de beleza vão além do exterior. Para ela, mostrar essa visão menos estereotipada, muitas vezes, é o propósito de quem participa. “Queremos inspirar e influenciar, mostrar que vai além de uma competição, empoderar”, afirma.

A modelo ainda ressalta que os concursos de miss estão cada vez mais diversificados, o que os distancia de uma obsessão por padrões. “A beleza está associada a outras questões [atualmente], como [habilidade de] comunicação e [preocupação] social. Isso já é um sinal de que os concursos acompanham as evoluções sociais e se tornam um reflexo do que a sociedade anseia em ser e [em que tipo de pessoas deseja] se inspirar”.

Roberto, que já foi jurado de concursos de miss, concorda com a importância da comunicabilidade, que, junto à beleza, é um importante fator na hora da escolha da vencedora.

O missólogo também acredita que esse evento repercute características da sociedade, como comentado por Cinthya. Ele exemplifica isso com o Miss Mundo 1970, quando a África do Sul começou a levar duas candidatas para participar da competição: uma branca e outra negra, mudança que ocorreu durante o regime do Apartheid e foi uma forma da oposição ao regime se posicionar. “Tem tudo lá dentro: é uma aula de história, de política, de racismo”, finaliza. 

Apesar desses avanços, Thainá Simplício, Miss Ilha Grande 2021, acredita que há sim um predomínio de padrão de beleza — caracterizado tanto pela magreza

Na imagem, uma garota negra que ganhou um concurso de beleza posa sorrindo em frente a uma cortina lisa lilás. Ela utiliza um vestido azul escuro, uma faixa vermelha escrito Miss Ilha Grande 2021 e brincos verdes. Ela está com a mão esquerda na cintura.
Para Thainá, a representatividade é a característica mais importante dos concursos de beleza. [Imagem: Reprodução/Thainá Simplício]
quanto pela pele branca —, que pode gerar comparações e pressões relacionadas ao corpo, muitas vezes difíceis de se lidar. Foi isso que, por muito tempo, a afastou dos concursos: ela não se sentia representada. Apenas em 2020, um ano depois da vitória da candidata sul-africana Zozibini Tunzi no Miss Universo, Thainá teve coragem de participar do evento. 

A possibilidade de inspirar outras meninas é a maior motivação da Miss Ilha Grande: “deixar claro que uma mulher negra pode sim ocupar todos os espaços, que também são nossos por direito, e que minha voz pode e deve ser ouvida.” 

O espaço que as misses ganham para serem ouvidas, segundo Thainá, é muito importante, pois, assim, elas se tornam porta vozes de outras mulheres. Cinthya também acredita nisso: “concursos de beleza trazem consigo empoderamento, voz para causas que precisam de visibilidade”.

Nesse sentido, no Miss Mundo, é obrigatório que as participantes incentivem um projeto social — a representante brasileira de 2021, Caroline Teixeira, é embaixadora nacional da luta contra a hanseníase, por exemplo. 

De maneira semelhante, no Miss Universo é importante que as candidatas estejam engajadas em questões sociais. Esse posicionamento vem principalmente pela fase de entrevista com jurados e pelos discursos que ocorrem durante a competição, mas pode ganhar destaque também pelo desfile de trajes típicos. Na edição de 2020, a participante de Mianmar se mostrou contra as violências de seu país, que vive em um regime militar desde fevereiro de 2021. Ainda nessa edição, a modelo de Cingapura pediu o fim do ódio aos asiáticos, e a Miss Uruguai demonstrou o seu apoio à comunidade LGBTQIA+

 

O desfile de trajes típicos busca dar espaço para a cultura de cada candidata. As Misses Mianmar, Cingapura e Uruguai, além de exaltarem características culturais dos países que representaram, buscaram dar espaço a questões sociais. [Imagem: Reprodução/YouTube Miss Universe]

Além da importância social, Cinthya e Thainá acreditam que esse evento também é positivo para as mulheres que participam, pois garantem muitas oportunidades na vida profissional e pessoal. “Ser miss está me proporcionando conhecer diferentes pessoas, realidades e lugares, além de ter contato com diversos profissionais que só têm a acrescentar. Todas essas vivências vêm somando positivamente na minha caminhada, não só do mundo miss, mas da minha vida”, afirma Cinthya.

O futuro dos concursos de miss

Com tantas esferas profissionais que a mulher já conquistou, Maria Carolina não vê sentido nem benefício na existência de concursos em que elas são premiadas por sua beleza. Para a pesquisadora, mesmo ao analisar as questões sociais envolvidas no evento, não há justificativa. “Ao meu ver, o cerne dos concursos continua sendo a premiação pela beleza”, finaliza. 

Roberto ressalta que os concursos de miss fazem parte da indústria do entretenimento, assim como o futebol. Enquanto as mulheres e os países ainda se interessarem pelo evento e as pessoas assistirem, o concurso vai continuar a existir. 

Para Thainá, o mundo miss ainda pode evoluir. Ela cita o caso de Ieda Favo, Miss Guarulhos, que, no evento estadual, relatou casos de racismo que a teriam desfavorecido na competição. 

 

https://www.instagram.com/p/CUs1TnLlDZY/

 

Além dos preconceitos que circundam as votações, a Miss Ilha Grande também lembra que há muitos preconceitos dentro dos bastidores. “Tem muitos concursos que ‘ainda’ discriminam e tratam mal as candidatas. Acho que isso já passou da hora de mudar”.

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