Inúmeros são os programas infantis que marcaram gerações. Conheça um pouco mais sobre esses fenômenos midiáticos e mercadológicos, entendendo a razão de tamanho sucesso.
Por Fernanda Magalhaes (fernandademelom@gmail.com)
Infância e o mercado
A primeira idade nem sempre foi valorizada pelo homem. Na Idade Média, não havia sequer o reconhecimento de uma segregação das fases da vida de um indivíduo, de modo que as crianças eram consideradas apenas pequenos adultos improdutivos. A valorização da infância na forma em que a concebemos atualmente deu-se somente no século XIX, em que foi reconhecida a carência de cuidados especiais nessa fase e foi imposta aos pais a obrigação de garantir o bem-estar dos pequenos.
A situação é, agora, totalmente distinta do que fora em séculos passados da humanidade. Os primeiros anos são vistos como de importância extrema, e a criança é alvo de grande atenção e zelo. O surgimento desse quadro surtiu efeito também econômico. Uma série de indústrias, como a têxtil e a alimentícia voltaram suas produções para essa idade, fabricando objetos propícios para agradaram a filhos e facilitarem o dia a dia dos pais. Houve o surgimento de um novo mercado, que é explorado também pela indústria de entretenimento.
Afinal, quem é que não teve sua infância marcada por um personagem favorito? Por uma canção que desejava-se escutar repetidas vezes? Por trás dessas reminiscências aparentemente banais, mostram-se evidentes os artigos idealizados pelos produtores de lazer. São desenhos, CDs, filmes, séries e livros voltados para esse público. Os meios de comunicação passam a ter grande controle na divulgação e veiculação desses produtos, passando a influenciar o gosto e a opinião infantis, levando vez ou outra ao aparecimento de verdadeiros fenômenos midiáticos e mercadológicos.
Entretenimento que marcou época
Não são raros os fenômenos infantis que fizeram história e encantaram gerações, gerando um frenesi no público que movimentou o mercado do entretenimento de maneira impressionante. Alguns desses produtos são extremamente temporais, outros, no entanto, consagram-se na história, garantindo diversão inclusive na atualidade.
Um bom exemplo disso é da Turma da Mônica. Criados em 1959 por Maurício de Souza, as aventuras da turminha ainda conquistam leitores. Por meio de gibis e produtos licenciados, os personagens ficaram conhecidos em 40 países e em mais de 14 idiomas. Ilustram ainda campanhas educativas do ministério público e têm um Instituto Cultural que atua reforçando o lado social dos quadrinhos. Por fim, a contemporaneidade das histórias de Mauricio de Souza é comprovada pelo lançamento, em 2008, pela Editora Panini, dos gibis da Turma da Mônica Jovem.
Outro grande sucesso foi “Barney e seus Amigos”. A série apresentava dinossauros que dançavam e cantavam com crianças, estimulando a imaginação dos pequenos. Os episódios eram preparados com o auxilio de especialistas em desenvolvimento infantil, adequando-se à capacidade de compreensão de seu público. Algumas crianças ilustres participaram de Barney, como Demi Lovato e Selena Gomez. Criando em 1992, “Barney e seus Amigos” durou 17 anos, sendo extinto em 2009.
Para Leandro Teles, neurologista graduado na USP, esses fenômenos têm pontos bastante semelhantes, e sempre serão sucedidos por novos sucessos: “(…) mudam-se alguns temperos, trocam-se alguns nomes, mas a receita é sempre muito parecida. Sempre surgirão fenômenos midiáticos para todos os gostos e faixas etárias, utilizando conhecimentos de publicidade, tecnologia e neuromarketing”.
A Galinha dos ovos de ouro
Recentemente, houve o surgimento de um novo fenômeno infantil. Trata-se da série de três DVDs homônimos à sua protagonista, “Galinha Pintadinha”, que traz 42 clipes de canções infantis, divididas entre músicas inéditas e regravações de cantigas de roda clássicas. Na animação, crianças e animais compartilham tela, dançando e cantando a melodia, ou ilustrando os dizeres das letras.
O destaque é a personagem principal, a Galinha Pintadinha, que participa de pequenas histórias nas quais é descrita fisicamente e lida com o dia a dia da família juntamente com o seu companheiro, o galo Carijó. Mas também não passam despercebidas as remontagens a cantos tradicionais da cultura popular brasileira, como “A Barata”, “Pintinho Amarelinho” e “Atirei um pau no gato”. Há também, nos desenhos, uma pitada de bom humor, presente na mistura de elementos humanos a vida animal, entre outros, que cativa os pais. Galinha Pintadinha tem, ainda, a vantagem de adequar-se a padrões politicamente corretos, apresentado crianças das mais distintas etnias (negros, brancos, pardos, asiáticos e esquimós, entre outros) como personagens, e incorporando trechos educadores a versões tradicionais tidas como violentas, como “Atirei o pau no gato” em que se acrescenta “Não atire o pau no gato tô/porque isto tô/não se faz faz faz/ O gatinho nhô/ É nosso amigo gô/ Não devemos maltratar os animais jamais!”.
Apesar da elaboração simples, sem complexas técnicas gráficas e efeitos especiais, o modo com que “Galinha Pintadinha” envolve as crianças é impressionante. Mas não é só do público infantil que o fenômeno chama a atenção. O negócio é de gente grande. Desde que foi criada em 2006 pelos publicitários Juliano Prado e Marcos Luporini, a Galinha já vendeu mais de 1 milhão de cópias de DVDs, conquistou 3 discos de platina e mais de 500 mil visualizações no Youtube e teve shows prestigiados por públicos de 15.000 pessoas. São mais de 500 produtos licenciados, distribuídos entre 50 fabricantes diferentes. Existem, ainda, segundo a Bromélia, produtora do desenho, “projetos de tradução dos DVDs espanhol e inglês, conquistando mercados da América Latina, Estados Unidos e União Européia”. Foi, por isso, matéria de revistas de empreendedorismo, como a Revista Exame.
Saiba o que dizem Marcos Luporini e Juliano Prado a sobre o processo de criação da animação em entrevista à J.Press:
J.Press: Houve alguma inspiração para a criação da personagem “Galinha Pintadinha”?
Marcos Luporini e Juliano Prado: O cancioneiro popular brasileiro foi nossa primeira inspiração. A riqueza das cantigas infantis nos encantava, e a primeira música produzida foi “Galinha Pintadinha”. Foi por acaso que a personagem Galinha Pintadinha se tornou a principal da série. E nos DVDs seguintes houve uma mistura de músicas do cancioneiro e composições inéditas.
J.Press: Qual foi o propósito da incorporação de cantigas de roda tradicionais aos vídeos? Não houve o temor de que as canções fossem, por isso, consideradas ultrapassadas?
M. L. e J. P.: Queríamos dar uma repaginada nas canções, e, portanto, criamos os arranjos musicais dentro de um contexto atual. De fato, tínhamos dúvidas no inicio do projeto se as canções seriam bem aceitas e, para nossa surpresa, caiu no gosto da criançada.
J.Press: Qual foi a reação de vocês ao alcance e o sucesso da personagem?
M. L. e J. P.: Foi de muita alegria. Na verdade até hoje estamos surpresos com tudo.
A Neurociência por trás do fenômeno
Como explicar tamanho sucesso? Seriam somente canções e imagens agradáveis ao ouvido dos pequenos que gerariam tamanho encanto? A neurociência alega que há explicações maiores para tamanho alcance e fascínio sobre o público. É o que explica o médico neurologista Leandro Teles. Para o doutor, os desenhos da Galinha Pintadinha foram projetados especialmente para o cérebro infantil, sendo capazes de conquistar a atenção das crianças, e como ele brinca, realizam também a proeza de mantê-la.
O doutor alega que “São usados nas mídias infantis artifícios psíquicos que levam à manutenção da atenção infantil (…) Cores, ritmos, traços firmes e objetivos, contraste intenso entre objetos, personagens pouco articulados, cabeçudos e com grandes olhos, linhas concêntricas, excêntricas, ritmo marcante, voz de timbre feminino ou infantil, etc. Tudo isso encanta e faz sentido na cabeça de crianças de 0 a 6 anos, principalmente. Os pequenos ficam vidrados, na ânsia de ver o próximo quadro, e o outro, e o outro. Com isso, canalizam sua atenção como numa sessão de hipnose, esquecendo momentaneamente alguns dilemas da vida infantil, por isso com frequência ficam mais calmos e comportados diante dessas mídias” e explica ainda que “(os personagens) geralmente têm a cabeça desproporcionalmente grande em relação ao corpo, assim como olhos desproporcionalmente grandes em relação a cabeça. Outra boa sacada da percepção infantil. As crianças se afeiçoam precoce e intensamente a face, tendo os olhos como primeiro ponto de reconhecimento do outro. Os bebês mamam em posição apropriada para fitar os olhos da mãe”.
Os criadores da série reforçam essa hipótese: “Não necessariamente tudo foi criado levando à risca estes quesitos (psicológicos), porém esses conceitos e técnicas já são difundidos neste tipo de produção. De certa forma nossos desenhistas e animadores levam isso em conta na hora de criar.” Mas afirmam também que o alcance do desenho deve-se a um conjunto de fatores: “os arranjos musicais são divertidos e dançantes e os personagens são fofos, coloridos e carismáticos. Achamos que essa combinação atraiu a atenção de nossos fãs”.
Questiona-se, também, se a retomada de antigas canções de roda não favoreceria o envolvimento dos pais com o produto, o que exerceria, consequentemente, determinada influência sobre o apreço dos filhos “(…) outra sacada legal da equipe de produtores. Algumas músicas já são consagradas, batidas. Já estão cravadas nos cromossomos da população de tantas vezes que foram cantadas e tocadas. Isso traz um ar mais pueril, inocente e encanta os pais mais saudosistas, o que vem de encontro à modernização tão criticada das letras geradas para o público mais adolescente. Esse clima mais retro e politicamente correto ganha pontos na opinião pública”.
O médico vai além, e assegura que técnicas semelhantes são usadas em outros fenômenos midiáticos abordados anteriormente, como “Com certeza, existe muita similaridade na construção de personagens, ambientes, musicalidade, situações, diálogos, etc. Tudo compatível e coerente ao público alvo, pois o sucesso depende da paixão do consumidor, no caso, crianças pequenas e seus pais”.
Discute, também, polêmicas maiores que envolvem o tema, como, por exemplo, a importância da presença do politicamente correto em animações como essa, e na mídia em geral: “(…) nossas opiniões são fruto de aspectos conscientes e inconscientes, todas as vivências impactam, em algum grau, nossa percepção de mundo e nossa opinião com relação a ele. Imaginar que temos filtros cerebrais suficientes para não nos deixar levar por mensagens sutis passadas dentro de uma mídia de massa é muita inocência. Por isso gosto dessa adaptação, que deixa as mensagens mais positivas, menos preconceituosas ou violentas. Claro que sempre escapa alguma coisa aqui e outra ali que pode receber uma interpretação mais complicada”. E para alívio dos pais garante “Realmente não vejo problema nenhum com esse tipo de exposição (a TV), acho até um estímulo interessante e uma oportunidade para integração social, atividade física e musicalização precoce”, e reforça que “os malefícios da televisão só são reais quando a exposição é demasiadamente longa e substitui outras atividades essências para o desenvolvimento”.