Campo ainda muito pouco conhecido, os sonhos podem nos dizer muita coisa sobre a realidade
Por: Carolina Marins (carolinamarinsd@gmail.com)
Você está sentado em um parque, conversando com um velho amigo de infância. Em um primeiro momento tudo parece normal, mas você tem a sensação de que algo está errado naquela cena; de repente você olha ao lado e o seu amigo já não está mais lá, quem está ao seu lado agora é uma prima que mora em outro estado e você não vê há mais de um ano. Então tudo ao seu redor começa a se distorcer e você já se vê em um ambiente completamente diferente, talvez em um campo de batalha, talvez flutuando em uma nuvem. Na manhã seguinte aquele sonho ainda provoca, te faz pensar e querer entendê-lo. Afinal, o que foi aquele sonho?
A existência dos sonhos foi um mistério até por volta de 1900, quando Sigmund Freud lançou seu livro “A interpretação dos sonhos”. O que antes era considerado uma manifestação divina e atividades de premonição, recebeu uma interpretação psicanalítica nos estudos freudianos. A partir da publicação do livro, a interpretação dos sonhos se tornou fundamental nas terapias, pois proporciona mais informações sobre a vida inconsciente do indivíduo.
Sonhar é uma atividade essencial do corpo humano. A professora do Instituto de Psicologia da USP, Laura Villares de Freitas, especialista na Psicologia Analítica de Jung — seguidor de Freud nos estudos dos sonhos e primeiro presidente da Associação Internacional de Psicanálise — explica que sonhar é tão natural quanto respirar. Sonhamos todas as noites, muitas vezes temos mais de um sonho por noite, mesmo que não sejamos capaz de lembrar a maioria deles.
Laura começa alertando que a psicologia não trabalha com os sonhos propriamente ditos, mas com relatos de sonhos apresentados pelas pessoas. A atividade que ocorreu durante o sono não possui a coerência com a qual descrevemos, nosso cérebro é que faz associações que tornam aquelas cenas e acontecimentos coerentes a nós. Freud chama isso de “Elaboração Secundária”.
Tanto Jung quanto Freud acreditavam que os sonhos são uma maneira do ser consciente conversar com o ser inconsciente. “Eles imaginam que o ser humano não é só o que ele conscientemente resolve ou pode ser, ele sempre vai ter um outro lado que é o lado do inconsciente. A relação entre esses dois lados é muito importante e o sonho seria uma maneira deles conversarem” explica a professora. Isso explica porque muitas vezes acontecem situações irreais nos sonhos, como o amigo de infância se transfigurar na prima ou o ambiente se transformar várias vezes; o lado racional relaxa durante o sono e permite que a imaginação o invada, ou seja, enquanto dormimos, utilizamos situações da vida real, mas com subversões.
Porém, para Freud, ainda há algo mais. Além de diálogo entre os dois lados da consciência do indivíduo, os sonhos são manifestações dos seus desejos. Em seu livro ele explica que no inconsciente não há manifestações da moral, ou seja, as regras impostas na vida em vigília não são transportadas ao mundo onírico (dos sonhos), sendo assim, desejos reprimidos podem se manifestar durante os sonhos. Para ele, a frase “Não faria nem em sonho” não é verdadeira, seríamos capazes de muitas coisas em sonho que não faríamos na vigília.
Os pesadelos
Mas então, se os sonhos são manifestações de desejos, por que temos pesadelos? Não desejamos medo e angústia. Freud explica isso chamando de “recalque”. Por ser isento de moral, o inconsciente nos faria sonhar com coisas que poderiam nos perturbar, para isso existe o recalque, uma censura a pensamentos que a consciência rejeita. Porém, às vezes esse pensamento escapa, o que ele chamou de “sublimação” e pode nos causar uma sensação ruim após despertar, ou se não despertarmos, temos o sentimento de angústia durante o sono.
Esse efeito do recalque também explica porque não somos capazes de lembrar a maioria dos sonhos. A existência desses acontecimentos considerados imorais não permitiria a consciência suportar determinados sonhos, então a censura não nos permite lembrá-los. Quando ela permite, temos um pesadelo.
Já para Jung, Laura Villares explica, os pesadelos são sonhos interminados. Ele separa os sonhos em 4 fases: a fase da exposição, quando nos são apresentados os personagens e o ambiente; a peripécia, quando as situações começam a se desenrolar; as culminações, o ápice do sonho, quando os acontecimentos ganham forma, o que numa aventura poderia ser a fase da batalha; e por fim, a lise, que seria o desfecho. Acordar durante uma das três fases anteriores é o que poderia causar a sensação de ter tido um pesadelo; é o que ocorre, por exemplo, quando sonhamos que morremos ou estamos caindo, a não existência da conclusão é o que nos assusta.
A relação entre os sonhos e a realidade
Já aconteceu com todo mundo de obter algumas respostas por meio dos sonhos, às vezes vamos dormir com alguns problemas insolucionados e durante o sonho somos capazes de encontrar alguma forma de resolvê-los. Isso ocorre porque nossa mente é capaz de observar e absorver mais coisas do que a nossa memória, ou seja, às vezes, algum detalhe que não fomos capazes de perceber no momento — como um livro guardado na última gaveta do escritório que você não viu quando a abriu para pegar a carteira — se manifesta durante os sonhos porque ficou registrado no inconsciente — então você sonha com um suposto livro que poderia te ajudar na tese de mestrado e no dia seguinte o encontra na gaveta do escritório. Por esse motivo que às vezes sonhamos com episódios passados que não seríamos capazes de recordar durante a vigília.
A interpretação dos sonhos também apresenta manifestações fisiológicas durante a vida onírica. Freud fala que há teorias de que, se temos alguma doença — ele usa o exemplo de uma doença no fígado —, podemos sonhar com algo relacionado ao fígado. Talvez não lembremos disso depois, mas isso exemplifica a interferência do corpo na manifestação onírica.
Jung também fala dessa interferência. A Drª Villares explica que sonhar é uma atividade reguladora do corpo, assim como suar. O suor é necessário para controlar nossa temperatura corporal; sonhar é necessário para regular inúmeras atividades psíquicas. A vida psíquica depende de sonhar, por isso que privar as pessoas de sonhar foi utilizado como técnica de tortura. Privar os sonhos desequilibra todas as funções do corpo, “não sonhar é como não comer, não beber, não respirar, não urinar, não evacuar, não descansar, tudo isso e você entra num estado de desequilíbrio físico-psiquíco que é muito grave, então sonhar é importante”, completa Laura.
Além disso, o período da vida pelo que passa a pessoa pode facilmente se manifestar em seus sonhos. Para exemplificar, Laura conta sobre uma fase da sua vida em que sofreu um acidente de carro e precisou ficar seis meses acamada. Foram seis meses olhando para o teto e durante boa parte desse tempo ela sonhou que andava por uma estrada longa, apenas andava, sem nada ao redor. O fato de olhar apenas para o teto pode ter influenciado nesse caminhar sem fim dos sonhos.
Quando questionada sobre a capacidade dos sonhos de prever o futuro, a doutora afirma que essa capacidade pode estar mais ligada à intuição do que a uma previsão verdadeira. Por exemplo, sonhar que alguém está grávida e logo em seguida descobrir que ela de fato está, pode estar relacionado com a convivência com aquela pessoa e a intuição de que a gravidez poderia ocorrer. Além disso, essa previsão também pode estar relacionada com a capacidade de o inconsciente registrar mais coisas que a memória consciente.
Compartilhar os sonhos pode nos fazer bem
Havia a lenda de várias tribos que moravam próximas e continuamente estavam em guerra. Por diversos motivos, por terras, por comida, por água, o fato é que elas sempre possuíam um motivo para guerrear entre si. Exceto uma delas. Umas das tribos estava sempre em ótima paz. Foram tentar descobrir o motivo, viram então que, todas as manhãs, a tribo se reunia para compartilhar os seus sonhos.
Essa pequena história foi contada pela Drª Villares para exemplificar os efeitos benéficos de compartilhar os sonhos com outras pessoas. Claro que contamos apenas as associações, mas ainda assim, contá-los nos faz esforçar a memória e nos deixa mais alegre. Embora lembremos menos sonhos do que realmente temos, forçar a memória a lembrá-los faz com que consigamos exercitá-la e alcançar momentos da vida onírica até mesmo quando achamos que nem sonhamos.
Sendo assim, ela aconselha, todas as manhãs, a tentarmos lembrar o que nos ocorreu durante o sonho, aos poucos começaremos a lembrar com mais frequência, e sempre que possível, contá-los. Muitas vezes os sonhos influenciam com o humor que temos ao longo do dia e compartilhar isso pode contribuir para melhorar esse humor.