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Trauma: como as memórias podem permanecer no cérebro e gerar o transtorno de estresse pós-traumático

O transtorno de estresse pós-traumático atinge cerca de dois milhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Ele está diretamente relacionado com a permanência das memórias do evento traumático no cérebro, levando a consequências na vida do indivíduo
estresse pós-traumático
Por Tainá Rodrigues (tainad@usp.br)
“No flashback, às vezes a pessoa até perde um pouco a conexão com a realidade, (…) e ela revive com uma riqueza de detalhes tão grande que quase se desconecta do momento presente do lugar onde está e fica só presa a essa situação que se repete na cabeça dela.”
Álvaro Cabral Araújo, psiquiatra

O transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) surge após o indivíduo ter presenciado eventos traumáticos — como ameaças de morte, lesões graves ou violência sexual. O termo “trauma”, conhecido e divulgado amplamente de forma popular, indica vivências em experiências marcantes, que podem ocasionar transtornos psicológicos. 

Para que o TEPT seja descrito como uma doença, é preciso que o indivíduo preencha critérios pré-estabelecidos para ser diagnosticado, de acordo com o psiquiatra do Programa de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC/FMUSP), Álvaro Cabral Araújo. Afinal, pessoas podem passar por situações consideradas traumáticas e não desenvolver TEPT. 

De acordo com a psicóloga, professora, mestra em Psicologia Experimental e doutora em Neurociências e Comportamento, Joana Singer Vermes, o trauma é baseado em um episódio de risco de morte, exposição à ferimentos (risco à integridade física) e/ou violência sexual. Essas situações podem desencadear TEPT, que Singer descreve como “um diagnóstico que dá nome a um conjunto de sintomas decorrentes da vivência de um episódio traumático.”

Sintomas do transtorno do estresse pós-traumático 

Os sintomas que podem caracterizar o TEPT estão divididos em grupos: exposição, revivescência, evitação, alterações negativas na cognição e no humor e hiperativação adrenérgica. 

Para diagnosticar alguém com esses sintomas, é necessário que ela tenha sido exposta a um trauma. Essa exposição pode ocorrer de maneira direta, quando o indivíduo é a vítima ou testemunha do evento traumático, ou de maneira indireta, quando o indivíduo não participou diretamente do evento, mas obteve conhecimento de forma detalhada de um trauma vivenciado por outrem muito próximo. O diagnóstico se faz necessário, uma vez que cerca de 10% das pessoas que vivenciam um episódio traumático desenvolvem TEPT, de acordo com o psiquiatra Cabral. 

O sintoma de revivescência do evento traumático é caracterizado por lembranças que vêm na mente do indivíduo sem que ele consiga controlá-las. São sintomas intrusivos, o que significa que a pessoa pode não estar pensando ou falando no trauma, mas algum estímulo externo a faz reviver o episódio traumático, como se estivesse passando pelo evento novamente. Esses sintomas podem acontecer quando a pessoa está acordada, durante o dia ou também na forma de pesadelos, como também de forma dissociativa, como flashbacks. 

“No flashback, às vezes a pessoa até perde um pouco a conexão com a realidade, tem uma sensação de que está no outro momento, como se o evento estivesse acontecendo de novo, e ela revive com uma riqueza de detalhes tão grande que quase se desconecta do momento presente do lugar onde está e fica só presa a essa situação que se repete na cabeça dela.”, diz o psiquiatra Cabral. 

Os sintomas evitativos são expressos pela tentativa do indivíduo de não ter contato com nenhum estímulo que possa estar associado com o evento traumático. Então, por exemplo, alguma mulher foi abusada sexualmente e evita ter relações sexuais após o evento, a ação de evitar o sexo é um indício de sintoma evitativo. Cabral complementa que o critério de evitação envolve locais, pessoas, conversas e estímulos que de alguma forma estejam associados ao episódio traumático.

O critério de alterações na cognição e no humor é um sintoma que se relaciona com mudanças na forma em que o indivíduo sente o mundo em que está inserido. Sendo assim, pode ter uma postura mais negativa após o trauma, não se sentindo seguro em nenhum local e com a sensação de que não consegue se conectar efetivamente com outras pessoas, mudando sua forma de sentir e de pensar.  

O sintoma de hiperexcitação do sistema adrenérgico se manifesta por deixar o indivíduo em estado de alerta. Então, sintomas como insônia, irritabilidade e sobressaltos com sustos muito exagerados. Situações cotidianas fazem com que o indivíduo assustado sinta a necessidade de fugir. 

Para que seja diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático, os sintomas devem persistir por mais de 30 dias após o evento traumático.

Armazenamento do TEPT no Cérebro

O transtorno de estresse pós-traumático apresenta a característica marcante de estar na memória cerebral. Então, mesmo quando o indivíduo não está em situação de perigo ou falando sobre o trauma, algum “gatilho” pode desencadear suas lembranças sobre a situação que vivenciou. Os “gatilhos” funcionam como um estímulo que leva a uma rememoração dos eventos passados, pois estavam presentes no episódio traumático. 

As amígdalas cerebrais são relevantes para perpetuar a memorização desses eventos e o seu armazenamento. Para além disso, como o evento traumático traz uma resposta emocional enorme, há uma grande quantidade de liberação de noradrenalina, fazendo com que as memórias sejam fixadas de forma agravada. A região do hipocampo também é uma área importante na questão da memorização, e pessoas com TEPT podem ter redução no desenvolvimento dela.

Em termos de liberação de substâncias pelo cérebro, algumas pesquisas apontam para uma modulação dos níveis de adrenalina e cortisol. Na hora do evento traumático, o cérebro libera adrenalina, ao mesmo tempo em que existe uma baixa liberação do cortisol, não sendo tão expressivo como deveria. O cortisol seria importante para encerrar a fase de alerta e a resposta da adrenalina. Sendo assim, com o baixo nível de cortisol e com a alta da adrenalina, existe uma consolidação maior das memórias. 

TEPT em Situações de Violência e Abuso Sexual

As amígdalas cerebrais são áreas responsáveis pela resposta defensiva às situações de ameaça, e em crianças essas respostas cerebrais podem levar a algumas alterações. A partir disso, o psiquiatra Cabral explica: “Alguns estudos de neuroimagem demonstram que essa região pode ter um aumento de tamanho e até um aumento da função, seria um marcador de resposta a ameaças”. Ele também conta que existem pesquisas demonstrando que o hipocampo, que é uma área muito importante para memória, pode sofrer com um hipodesenvolvimento, ou seja, com a redução do volume no desenvolvimento.

Com isso, existem diferenças no desenvolvimento cerebral de uma criança que passa por situações de violência em relação àquela que não está exposta a violência. O hipocampo do cérebro também é importante para o processo de aprendizagem, logo, crianças que vivenciam situações traumáticas de violência podem apresentar dificuldades escolares, na sua aprendizagem e no seu desenvolvimento acadêmico. 

As crianças conseguem formar memórias com uma idade entre 5 e 7 anos. Sendo assim, memórias mais detalhadas demoram mais para surgirem. Quando a criança sofre violência antes dessa idade, ela pode desenvolver outros transtornos ou alterações na personalidade. Assim, mesmo não se lembrando exatamente do que passou, ela pode desenvolver respostas de defesas mais sensibilizadas, o que pode torná-la mais ansiosa. 

O TEPT não ocorre em todos os casos e a grande maioria das pessoas, após vivenciarem um evento traumático, conseguem se recuperar sem desenvolver o transtorno. Entretanto, dependendo do evento em que o indivíduo está inserido, existem probabilidades maiores de desenvolver TEPT. 

“Tortura e sequestro têm uma chance de quase 70% de desenvolver [TEPT], e violência sexual em torno dos 40%. Então a chance é maior, mas o fato é que tem pessoas que desenvolvem e outros que não desenvolvem, e isso pode envolver desde características biológicas genéticas até a história de vida de situações que ela já enfrentou e a rede de apoio familiar”, explica Cabral. 

Em relação à questão de abuso sexual, as vítimas que desenvolvem o transtorno de estresse pós-traumático apresentam diferentes formas de reagir. Alguns indivíduos podem passar pela possibilidade de retraumatização, como por exemplo, casos em que a vítima busca voltar aos locais em que sofreu o abuso, de forma a tentar recuperar o controle da situação que vivenciou. 

“Observamos que tanto aparece repulsa por sexo em casos de traumas ligados à violação sexual, como muitas vezes acontecem ações compensatórias da pessoa se expor, de forma às vezes até perigosa, e correr o risco de retraumatizar numa tentativa de reconstruir aquela história”, destaca a psicóloga Singer.  

Além disso, estudos apontam uma nova forma de adquirir TEPT, que envolve questões genéticas durante o período gestacional. “Tem estudos mais recentes até apontando para alterações epigenéticas. Quando uma mulher que está grávida passa por algumas situações de ameaça e de risco, isso pode impactar na forma como a criança que vai nascer lida com situações de ameaça e de medo por uma modulação genética”, explica Cabral. 

Tratamentos 

Existe a possibilidade de o indivíduo superar o TEPT, de maneira que ele consiga ressignificar sua vivência, mas sem deletá-la definitivamente, de acordo com os especialistas. Entre as possibilidades de tratamentos, existe a psicoterapia e o uso de medicamentos. 

Apesar da dificuldade de lidar com os eventos traumáticos vivenciados, a psicoterapia pode ajudar o indivíduo de forma que ele consiga, aos poucos, falar sobre o assunto, podendo abordar o que viveu sem reviver o acontecimento. 

“Com o tempo pode ser importante, sim, falar sobre o episódio traumático. O ideal é que isso seja feito quase que numa imersão, de falar dentro de uma técnica psicoterápica chamada exposição prolongada. Na qual a pessoa fala muitas vezes, repetidas vezes, tendo a oportunidade de passar por um processo de habituação, que ela consiga de fato se ouvir falando tantas vezes, por tanto tempo, que ela aprenda com ela mesma, que ela seja capaz de falar sem aquilo a destruir ou fazer com que ela se sinta de novo ali no episódio traumático.”, explica a psicóloga Singer. 

Pessoas que não conseguem se recuperar de maneira espontânea de um evento traumático podem requerer um tratamento mais específico para além da psicoterapia, mas que envolvam o uso de medicamentos também. 

“Quando possível a associação tanto do tratamento medicamentoso quanto com a psicoterapia parece ter melhores resultados. A psicoterapia tem várias formas de intervir, mas o que a gente ainda considera como “padrão ouro” no tratamento é principalmente terapia comportamental ou terapia cognitiva comportamental, através de protocolos de exposição. Então, um profissional tem um protocolo bem estabelecido e cuidadoso para que a pessoa entre em contato com pequenos detalhes dessas memórias de uma forma gradual, até que ela consiga responder de uma forma diferente as lembranças do trauma. Do ponto de vista medicamentoso, nós temos alguns medicamentos que podem ser utilizados, em geral, como primeira linha, nós damos preferência aos antidepressivos”, afirma Cabral. 

Com isso, embora o TEPT não possua, de fato, uma forma de encerramento do transtorno, existem meios que podem ajudar o indivíduo a ressignificar sua vivência. As lembranças podem se tornar menos destrutivas com os tratamentos. O diagnóstico de TEPT é importante para que a pessoa consiga reagir ao quadro do transtorno e para que não desenvolva outros possíveis transtornos, como ansiedade ou depressão.

É importante que, após a vivência de um episódio traumático, o indivíduo busque ajuda psiquiátrica para conseguir lidar com as consequências do evento. As memórias perduram de uma maneira invasiva, fazendo com que a pessoa tenha constantes contatos com o que vivenciou, e devem ser tratadas o mais rápido possível.

*Imagem de capa: Freepik

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