Por Leticia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)
Os conceitos de esporte e competição são frequentemente associados no imaginário popular. De fato, na contemporaneidade, os torneios esportivos mais populares tem a disputa entre equipes ou indivíduos como propósito, como as próprias Olimpíadas ou provas de modalidades específicas.
Porém, essas vertentes andaram lado a lado por diferentes razões durante a história. Antes do processo de profissionalização dos esportes, a competitividade era um sentimento tratado como propulsor da diversão. Anteriormente, ela só fazia parte das práticas físicas por impulsionar outras questões humanas. Esses e demais aspectos são destrinchados por Leonardo Nunes, professor de história e psicanalista, em entrevista ao Arquibancada.
O esporte como função social durante a história
Nunes explica que, na Antiguidade ocidental e no começo da Idade Média, principalmente em Grécia e Roma, o esporte tornou-se extremamente relevante na convivência da população devido ao papel religioso que exercia. Nesse contexto, os jogos eram uma maneira de agradar o Divino, de cultuar os deuses em que acreditavam.
Além de simbolizar a trégua entre povos, as Olimpíadas foram criadas na Grécia Antiga como forma de adorar Zeus, rei dos deuses [Reprodução/Wikimedia Commons]
Por volta de 776 a.C., na cidade de Olímpia, localizada no sudoeste da Grécia, as Olimpíadas tiveram sua primeira e prematura edição, já que, na verdade, só um esporte definia a competição. A modalidade oficial era o atletismo ou “stadium”, que consistia num percurso de aproximadamente 192 metros.
Nesse ano, o ganhador foi Coroebus, consagrado como o primeiro campeão olímpico da história. O prêmio era o recebimento de uma coroa de oliveira dentro do templo de Zeus, já que os jogos serviam como culto ao deus do trovão. A cerimônia da vitória simbolizava a supremacia moral e espiritual do indivíduo coroado.
“Então os homens competiam, mas principalmente para atingir algo metafísico dentro deles mesmos”, comenta o historiador. Nesse cenário, a principal coligação era entre religiosidade, masculinidade e esportes, uma vez que o sexo feminino era proibido de participar dessas atividades — seja como espectadoras ou como atletas.
Já em meados da Idade Média, os esportes e a rivalidade atingem uma característica de nobreza. Eles se desprendem das camadas populares e do intuito divino e passam a reproduzir as estruturas de poder da sociedade. “A criação dos jogos de xadrez, por exemplo, se deu pela representação da disputa que existia entre reinos do Ocidente”, diz Leonardo.
Com a Revolução Industrial, a vida dos cidadãos adquiriu uma dinâmica totalmente nova na organização social: a dinâmica citadina. Segundo o professor, ao mesmo tempo em que os indivíduos se deslocaram e passaram a viver nas cidades, as classes social e financeiramente elevadas desenvolveram um tempo livre em sua rotina que precisava ser preenchido.
Consequentemente, as práticas esportivas competitivas atrelaram-se às classes sociais mais baixas, composta por trabalhadores. A partir disso, há o desdobramento e a popularização maciça de jogos mais simples e baratos. Para o especialista, o protagonista dentro deles é o futebol, que ganhou regras formais durante o século 19, na Inglaterra.
“Os operários da época criaram regras para o futebol e começaram a disputar entre si para ocupar seu tempo ocioso e extravasar”, reforça. Foi desse modo que os primeiros times da modalidade nasceram, justamente no país pioneiro no processo de industrialização. Os gigantes Manchester City e Manchester United, por exemplo, iniciaram-se como clubes de operários.
Apesar do pontapé inglês, historiadores acreditam que os primeiros indícios do futebol se deram na época taoísta da China, em que os guerreiros jogavam com crânios de inimigos [Reprodução/Wikimedia Commons]
A competição dentro da mente humana
O princípio da competitividade dentro das práticas esportivas tem como um dos vieses a análise a partir da história. Leonardo Nunes, também formado em psicanálise, cita como base de pesquisa o livro escrito por Yuval Noah Harari Sapiens: Uma breve história da humanidade (L&PM, 2011).
Em sua obra, o autor explora o surgimento do espírito de competição nos seres. Há especialistas que creem que esse sentimento seja inato aos indivíduos, e há outros que creem na perpetuação dele entre diferentes gerações e espécies. No segundo caso, a disputa entre pessoas seria uma de suas reações instintivas a fim de lutar pela sua sobrevivência.
Para alguns estudiosos, as primeiras comunidades do mundo rivalizavam principalmente por recursos naturais, como água, terra e fertilidade. Porém, levando o tema para o lado dos esportes, essa competição varia bastante de cultura para cultura, conforme Nunes.
Nas civilizações africanas, o ideal dos jogos era pautado no compartilhamento de experiências. Já nos povos Maias, os jogos chegavam ao limite da existência humana, em que a cabeça do perdedor era cortada pelo vencedor. “O ser humano retira essa violência de conflitos bélicos e a extravasa dentro dos esportes”, afirma.
O jogo de pelota ou jogo de bola era praticado pelas comunidades mesoamericanas, em que os vencedores sacrificavam os perdedores [Reprodução/Instagram/@povosmaias]
Mais profundamente, a psicanálise ainda identifica a competitividade desde o nascimento de uma pessoa. Ao crescer, ela compete para ganhar a atenção dos pais, compete por preferência e privilégios quando um irmão nasce e compete para se sentir parte de um grupo. “Nós [psicanalistas] pensamos que os seres humanos se estruturam pautados nesse processo competitivo de olhar para sua própria imagem e perceber que não são necessariamente aquilo que esperam deles”, reflete o professor.
O inconsciente incentiva a competição
Na prática, essas emoções que passam pelas áreas psicológica e física podem se manifestar de variadas maneiras em diversos indivíduos. As vivências de cada ser não se dão somente pela biologia, mas sim junto a fatores sociais.
Na experiência pessoal de Kauê Ferreira, estudante de Educação Física na Universidade de São Paulo (USP) e professor da mesma modalidade, o seu espírito de competitividade é inato e atinge diversos aspectos de seu dia a dia. “Eu não consigo me dedicar totalmente para algo que eu não estarei competindo”, conta ao Arquibancada. “Se eu acredito que é só uma competição amigável, eu não dou o meu melhor inconscientemente, porque eu sei que, no fundo, não está valendo nada.”
Ao ingressar na USP no ano de 2022, Kauê entrou para o time de voleibol de seu instituto (EEFE). Segundo ele, a disputa já começava a partir do momento em que pisava na quadra para treinar com sua própria equipe, já que seus colegas eram “os melhores atletas da faculdade”. “Na minha cabeça, eu tinha que ser melhor do que os meus companheiros de time. Então, eu já tinha que me esforçar antes de estar jogando contra os adversários”, afirma o aluno.
Ele pausou sua jornada no esporte universitário no início de 2024, fazendo com que a musculação se tornasse sua principal atividade física. Kauê relata que precisa se concentrar de forma extrema na academia devido à ausência de um time ou um grupo que irá fazê-lo atingir o marco que deseja. “Quando eu sento num banco para começar uma série, eu tenho que me desligar de tudo de fora. Precisa ser eu me fazendo atingir o melhor desempenho e mais ninguém pode fazer isso por mim”, reforça.
A fim de suprir a falta da competição em seu cotidiano, ele passou a jogar, com mais frequência, videogames no modo ranqueado, em que o jogador precisa superar os demais para ganhar pontos e atingir o ranking mais alto possível. Mais do que apaziguar a vontade de disputar, o estudante reflete que grande parte da sua competitividade vem do intuito de se sentir pertencente a um grupo que necessita dele para atingir seus objetivos.
Para além das vivências como atleta, ele também é professor de Educação Física para alunos da educação infantil, em que a competição marca presença, mas nasce de uma diferente fonte. De acordo com suas observações, as crianças, de modo geral, não gostam de perder. Todavia, esse sentimento surge do medo de serem humilhadas pelos colegas ou de não terem aprendido a como lidar com derrotas ainda. “A criança é competitiva, mas não porque ela quer ganhar, e sim porque ela não sabe perder”, ressalta Kauê.
A rivalidade pode gerar momentos emblemáticos
“A competição também pode ter seus lados positivos”, diz Leonardo Nunes. Nesse panorama, o psicanalista ressalta uma cena histórica icônica: o jogo de futebol entre soldados ingleses e alemães na noite de Natal de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Registros apontam que os combatentes haviam interrompido todas as hostilidades de guerra para disputar uma partida amistosa, evento que ficou conhecido como “jogo da trégua”.
A “trégua de Natal” ganhou estátuas de homenagem por vários países da Europa. Além do jogo, os guerreiros trocaram alguns presentes e canções natalinas [Reprodução/Wikimedia Commons]
No Brasil, nas Olimpíadas Rio 2016, o saltador Thiago Braz atingiu seu recorde pessoal e conquistou uma medalha de ouro para a nação brasileira na prova de salto com vara graças a sua competitividade. Pouco antes de seu último tiro, seu adversário francês havia atingido a altura de 5,98 metros, quebrando um recorde olímpico. Contudo, segundo palavras de Braz em reportagem para a Globo, o competidor “comemorou antes da hora”.
“Eu fiquei indignado. Não acredito que ele estava querendo ‘se achar’ dentro do nosso país”, conta o atleta. Foi aí que ele subiu o nível da prova para a altura de 6,03 metros, que ele nunca havia passado antes. Nesse momento, mais do que o preparo técnico, o que fez o francês perder a disputa pelo ouro foi o jogo psicológico imposto por Thiago, de acordo com especialistas.
Após sua medalha de ouro, Thiago Braz não voltou a atingir a marca de 6,03 metros de altura ou alguma superior em nenhuma vez. Ainda assim, ganhou a medalha de bronze nas Olimpíadas de Tóquio 2021 [Reprodução/Instagram/@thiagobrazpv]