Por Ana Santos (anacferreira@usp.br)
Em 2024, a Lei dos Direitos Civis dos Estados Unidos completou 60 anos. Essa legislação entrou em vigor após sucessivos movimentos sociais contra a segregação e proíbe a discriminação com base em raça, religião, nacionalidade, cor e sexo.
Desde 1877, com as leis Jim Crow, a ideia de supremacia branca acentuou a segregação racial nos direitos dos cidadãos norte-americanos. Elas separavam o acesso a lugares públicos entre pessoas brancas e negras, de modo que pessoas de etnias distintas frequentavam escolas e estabelecimentos diferentes, tinham assentos de ônibus separados e locais de moradia específicos.
A partir de protestos e manifestações por parte da população, essa legislação caiu em 1964, ainda que seus resquícios se manifestem hoje. Em entrevista à Jornalismo Júnior, Sean Purdy, professor de História com ênfase nos Estados Unidos da Universidade de São Paulo (USP), comenta que a separação de espaços frequentados por negros e brancos ainda ocorre. “A segregação residencial, na qual existem bairros completamente negros ou completamente latinos, é algo que existe até agora e que acaba em segregação no sistema educacional.”
Histórico
O processo de segregação racial nos Estados Unidos remete ao período de colonização do país. Ele foi um dos principais desencadeadores da Guerra Civil Americana, ou Guerra de Secessão, em 1861, pela contradição de ideias entre os estados do Norte e do Sul.
Enquanto eram colônias da Inglaterra, as terras estadunidenses se desenvolveram de maneira diferente umas das outras, tendo relações comerciais e produtivas distintas. O Norte era formado por uma população urbana, industrializada e defensora do trabalho livre, enquanto o Sul atuava em um sistema agrícola e escravista.
Com a independência dos Estados Unidos e o avanço para ocupar terras a oeste do país, em um movimento conhecido como Marcha para o Oeste, Norte e Sul discordaram sobre qual modelo de organização social deveria ser implantado nos novos territórios dominados. A desaença desencadeou a Guerra Civil (1861-1865) e acentuou a segregação racial, especialmente nos estados do Sul. O Norte ganhou o embate e o Sul se separou da União para formar os Estados Confederados da América. Nesse período, o grupo extremista Klu Klux Klan surgiu, sendo formado por membros defensores das práticas racistas no país.
Movimentos
Ao longo do século 20, diversos movimentos e protestos pela aplicação dos direitos civis aos afro-americanos ganharam força, ainda que muitos já fossem mencionados na constituição do país ainda no século 19. ”As demandas contra a segregação já foram estabelecidas logo depois da Guerra Civil. Essas novas leis da década de 1960 foram reforços”, comenta Sean.
Em 1863, foi proclamado o fim da escravidão, e teve início o processo de Reconstrução Nacional (1867-1877), que determinou alguns direitos à população negra. A Décima Quarta Emenda (1868) garantia o direito à cidadania a todas as pessoas nascidas ou naturalizadas no país e a sua proteção de acordo com a lei. E a Décima Quinta (1870) garantia o direito ao voto de todos os cidadãos.
Entretanto, esse período foi formado por uma instabilidade política entre as ações iniciadas pelo presidente Abraham Lincoln, até ser morto em 1865, e a defesa do vice, Andrew Johnson, da autonomia dos estados sulistas em estabelecerem o próprio governo, inclusive na desintegração do negro à sociedade. Foi assim que surgiram os Black Codes (Códigos Negros, em português) no mesmo ano, como uma maneira de restringir o acesso da população negra à propriedade e ao trabalho.
“Há uma contrarreação feroz de adeptos da segregação racial porque ela é uma estrutura de domínio e de supremacismo. A segregação é a estrutura de criação de privilégios por parte das pessoas beneficiadas por esse sistema”, diz Jerry Dávila, professor de História na Universidade de Illinois. Ele completa que quem adere a essa ideologia não desiste facilmente dos privilégios de dominação que possui.
Dessa forma, o acesso da população afro-americana a direitos civis básicos permaneceu restrito mesmo após o período de Reconstrução. De acordo com Sean, foi no século seguinte que a defesa deles se tornou forte, embora tenha se restringido ao embate político. “A legislação conquistada na década de 1960 foi limitada em muitos aspectos, porque foi somente no nível de direitos políticos formais, e não em termos de ganhos econômicos”, comenta. Ele completa que o movimento não alcançou metas como emprego, acesso à educação e moradia.
Em 1909, foi fundada a Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), que realizava protestos não-violentos contra a discriminação racial. A NAACP posuía, na época de sua fundação, sete integrantes brancos e um negro, o sociólogo William Du Bois. Diferente dessa organização, o partido Panteras Negras, criado em 1966, já adotava uma posição de defesa do armamento dos negros, lutando, em especial, no combate à violência policial.
Em 1954, saiu a decisão do caso Brown vs Board of Education, no Kansas, que determinava a segregação na escola como inconstitucional por ser contra a Décima Quarta Emenda. A deliberação foi de encontro à política do “separados, mas iguais” estimulado pelas Leis Jim Crow ao não dividir os espaços públicos entre pessoas negras e brancas.
Em 1955, as ações ganharam força popular quando Rosa Parks, membro da NAACP de Montgomery, se recusou a ceder seu lugar no ônibus para pessoas brancas sentarem no Alabama. “Ela responde publicamente que estava cansada, o que tem um duplo sentido: por um lado, cansada da jornada de trabalho; por outro, cansada da segregação”, diz Jerry. Rosa foi presa, o que desencadeou o boicote aos ônibus da cidade. O movimento foi apoiado pelo pastor Martin Luther King, que hoje é referenciado pela luta dos direitos civis e pela liderança na Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, de 1963, também conhecida como Grande Marcha.
Essa manifestação determinou os rumos para a consolidação das Leis dos Direitos Civis no ano seguinte. Com isso, outras conquistas também aconteceram, como a Lei do Direito ao Voto (1965) e a Lei do Direito à Moradia (1968). As lutas tiveram grande apoio da igreja, das pessoas da base, de cidadãos brancos e de líderes de organizações.
“Havia [na época] uma coalizão na qual as igrejas batistas e metodistas tinham um papel muito forte. Boa parte da liderança de Martin Luther King era formada por pastores, mas depois o movimento começou a se diversificar”, completa Vitor Izecksohn, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além de organizações formais, o apoio à luta segregacionista também era manifestado por meio da música, com letras que denunciavam a violência sofrida pela população afro-americana e estimulavam as pessoas a agirem por mudanças. As mensagens eram transmitidas, principalmente, pelo estilo de blues, que surgiu em comunidades negras, e serve de influência para outros gêneros, como o rock e o pop. O jazz e o gospel também atuaram na promoção da voz negra.
Sessenta anos após a Lei dos Direitos Civis de 1964, os protestos da década de 1960 continuam sendo lembrados pelo impacto que tiveram na luta contra a discriminação racial. O embate persiste em ações como o Black Lives Matter, que buscam combater a violência e a injustiça racial.
O movimento surgiu em 2013 e repercutiu em 2020 com a morte de George Floyd por um policial. A situação gerou apoio internacional e fomentou o debate sobre a violência policial contra pessoas negras. “A luta contra a brutalidade da polícia persiste porque é muito racista. O racismo não é uma questão pessoal, mas estrutural”, ressalta Sean.