Jornalismo Júnior

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Vale a pena ver de novo: como as novelas dos anos 2000 moldaram o Brasil

Com sucessos e fracassos de audiência, personagens inesquecíveis e cenas marcantes, as telenovelas ajudam a traçar o perfil do país e dos brasileiros no começo do século 21
Personagens icônicos de novelas dos anos 2000, enfileirados, em fotos frontais que mostrem dos ombros/peito pra cima. Especificamente: Petruchio (Eduardo Moscovis em O Cravo e a Rosa, 2000); Camila (Carolina Dieckmann em Laços de Família, 2000); Jade (Giovanna Antonelli em O Clone, 2001); Darlene (Deborah Secco em Celebridade, 2003); Preta (Taís Araújo em Da Cor do Pecado, 2004); Nazaré Tedesco (Renata Sorrah em Senhora do Destino, 2004); Natasha (Marjorie Estiano na 11° temporada de Malhação [a da Vagabanda], 2004); Bia Falcão (Fernanda Montenegro em Belíssima, 2005); Foguinho (Lázaro Ramos em Cobras & Lagartos, 2006); Roberta (Dulce Maria em Rebelde, 2006); Flora (Patrícia Pillar em A Favorita, 2008) e Maya (Juliana Paes em Caminho das Índias, 2009).
Por Daniela Gonçalves (danielagsilva@usp.br) e João Victor Vilasbôas (joaovilasboas.jvvp@usp.br)

A curiosidade para saber o que vai acontecer no próximo capítulo com mocinhos e vilões. A repetição de bordões que passam a fazer parte da vida das pessoas. A reflexão sobre temas de interesse social. Esses são alguns dos hábitos que as telenovelas criam no dia a dia do público brasileiro desde a sua criação, em 1951. Do drama à comédia, ao longo dessas sete décadas, a TV emplacou muitos sucessos — de Beto Rockfeller (1968 – 1969) e Irmãos Coragem (1970 – 1971) a Roque Santeiro (1985 – 1986), Vale Tudo (1988 – 1989) e A Próxima Vítima (1995).

Quando se fala das tramas clássicas, com grande repercussão, não podemos esquecer daquelas veiculadas nos anos 2000. Marcadas pela transição para a resolução HD e pelo início da distribuição na internet, as longas novelas desse período obtiveram altas audiências e geraram grandes impactos na sociedade — influenciando até a criação de leis e estatutos no Congresso Nacional.

Onde ficção e realidade se encontram

As tramas do começo do século têm características que se destacam. Segundo Lucas Martins Néia, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, as novelas exibidas entre 2001 e 2010 foram as da fase mais acentuada da “mescla entre ficção e realidade”. Durante a Ditadura Militar (1964 – 1985), a censura impediu a retratação de temas que contrariassem a visão do regime. Com a redemocratização, a produção cultural pôde aproximar as obras do cotidiano do público. Para Néia, autor de Como a ficção televisiva moldou um país: uma história cultural da telenovela brasileira (1963 a 2020) (Estação das Letras e Cores, 2023), “a novela debate temas que estão em pauta na esfera pública, dentro de uma narrativa ficcional, e isso se acentua a partir dos anos 90 e nos anos 2000”.

Bastou o início dos governos civis democráticos da Nova República, em 1985, para as novelas abordarem explicitamente questões sociais. Segundo o pesquisador, “a telenovela brasileira se caracteriza por essa aproximação com o cotidiano, especialmente nas grandes cidades, mas também nas representações do interior”. Para ele, é justamente essa capacidade de retratar a realidade do público que determina o impacto dos folhetins dos anos 2000.

“A telenovela é um dos agentes dentro do tecido social, que aciona o debate público.”

Lucas Martins Néia, em entrevista ao Sala 33

Durante essa década, a televisão consolidou o conceito de merchandising social,  atualmente conhecido como ação socioeducativa. Por meio das personagens das novelas, os autores retratam situações específicas da realidade, sobretudo nas telenovelas das nove — à época, das oito —, que apresentam narrativas mais realistas. As temáticas representadas são diversas — desde doenças com tratamentos pouco conhecidos até os efeitos do preconceito, como o racismo e a homofobia, para as minorias sociais. Isso permite ao telespectador compreender, de forma didática, o impacto de suas ações na vida em sociedade, além de rever seus posicionamentos estereotipados.

Jaque Joy (Juliana Paes) e Darlene (Deborah Secco) na novela Celebridade
Nas novelas, o humor é utilizado para fazer críticas sociais, como acontece em Celebridade (2003) com as personagens Jaque Joy (Juliana Paes) e Darlene (Deborah Secco) que retratam a busca pela fama [Imagem: Divulgação/YouTube/TV Globo]

Dentre os exemplos mais conhecidos do período, estão as campanhas de conscientização promovidas por Glória Perez em suas obras. A primeira ação dela nos anos 2000 foi sobre as drogas ilícitas, com a personagem Mel (Débora Falabella) em O Clone (2001 – 2002). Essa novela se tornou célebre, também, por falar de clonagem humana e da cultura muçulmana. O sucesso das danças típicas dos árabes e de expressões do seu vocabulário chamou atenção por acontecer nos meses após os ataques de 11 de Setembro, nos Estados Unidos, promovidos pelo grupo fundamentalista islâmico Talibã. Enquanto a islamofobia aumentou ao redor do mundo, músicas muçulmanas e frases como “não exponha sua figura pela Medina” caíram na “boca do povo” no Brasil. Em reconhecimento ao seu trabalho de conscientização sobre as drogas em O Clone, Glória Perez recebeu em 2003 um prêmio do FBI — a polícia federal dos EUA.

Nos trabalhos seguintes, Perez conseguiu outros feitos importantes. Graças à novela América (2005), a discussão sobre a importância de cães-guia para deficientes visuais chegou a um público amplo. A falta de acessibilidade foi retratada na trama com a personagem Flor (Bruna Marquezine), que era cega. Já em Caminho das Índias (2009), a autora tratou sobre a esquizofrenia. Em julho de 2024, Bruno Gagliasso falou em um post do Instagram sobre Tarso, o emblemático personagem esquizofrênico que viveu na novela. O ator diz que há 15 anos, saúde mental não era um assunto discutido com frequência. “Com muita sensibilidade, Glória Perez fez o Brasil olhar para essa questão. Colocou em horário nobre, para milhões de brasileiros, todo o processo de diagnóstico e aceitação de uma condição como a esquizofrenia”, pontua o ator. Na trama, a mãe do jovem, Melissa (Christiane Torloni), demora a reconhecer os problemas de saúde do filho — o que agrava o sofrimento do rapaz.

Tarso, da novela Caminho das Índias
Durante a telenovela Caminho das Índias, o público acompanhou o drama de Tarso desde o diagnóstico até o tratamento [Imagem: Reprodução/Instagram/@brunogagliasso]

Crônicas que refletem o cotidiano

Outro autor reconhecido por tratar de questões sociais em suas telenovelas é Manoel Carlos. Suas tramas, crônicas do cotidiano, utilizavam personagens que viviam no bairro carioca do Leblon para fazer um paralelo com os dramas dos brasileiros no geral. Na década de 2000 por exemplo, Maneco, como é chamado, explicou para o público a importância da doação de medula óssea ao retratar Camila (Carolina Dieckmann), uma jovem que descobre estar com leucemia em Laços de Família (2000 – 2001). As etapas do tratamento foram mostradas ao longo dos capítulos e a cena em que a atriz raspou os cabelos impactou o público de tal maneira que as doações de medula aumentaram no país.

Além desse caso, Maneco conduziu debates sobre Síndrome de Down em Páginas da Vida (2006 – 2007) e tetraplegia em Viver a Vida (2009 – 2010). Porém, é em Mulheres Apaixonadas (2003) que encontramos a maior variedade de temas. Lucas Néia relembra que a novela debateu o relacionamento lésbico entre duas adolescentes, o alcoolismo vivido por uma professora e a possessividade de uma mulher em relação ao seu marido. “Essa novela discutiu temas como os direitos das mulheres e a situação dos idosos, influenciando debates que levaram a legislações importantes”, afirma. Entre tantas discussões, a abordagem da violência contra os idosos foi a que mais reverberou. Na história, a jovem Dóris (Regiane Alves) maltratava e agredia verbalmente os avós paternos, por não concordar em dividir a casa da família com eles. A repercussão desse núcleo da trama foi tamanha ao ponto de influenciar o Congresso Nacional a aprovar o Estatuto do Idoso, hoje chamado de Estatuto da Pessoa Idosa. A atriz Regiane Alves, inclusive, participou de uma das reuniões do projeto no Congresso.

Regiane Alves, da novela Mulheres Apaixonadas, com o então presidente do Senado José Sarney na aprovação do Estatuto do Idoso
Regiane Alves com o então presidente do Senado José Sarney na aprovação do Estatuto do Idoso, resultado de uma das mais célebres campanhas de conscientização das novelas [Imagem: Agência Senado/Reprodução]

Novela, o retrato de sua época

Néia aponta que o debate dessas questões no Legislativo só ocorreu porque a novela aborda temas que reverberam nas discussões do dia a dia. “As questões tratadas, como o alcoolismo e relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, foram discutidas amplamente nas escolas e nas rodas de conversa”, observa. Para ele, por mais que hoje algumas dessas abordagens sejam passíveis de críticas, é preciso enxergar as telenovelas como um produto de seu tempo. Segundo Néia, é necessário ter em mente que cada novela representa a época em que foi feita. Ou seja, deve-se olhar para as produções do passado com olhar crítico, mas com distanciamento histórico.

Nas reprises de novelas dos anos 2000, por exemplo, muitas são as críticas ao machismo das personagens masculinas de Manoel Carlos, como Pedro (José Mayer) em Laços de Família e as rivalidades femininas nas novelas de Gilberto Braga. Outro caso que “envelheceu mal” é a representação dos homens gays nos folhetins, principalmente nas novelas das sete. Entre elas, Da Cor do Pecado (2004) e Caras & Bocas (2009 – 2010) fizeram grande sucesso à época, mas atualmente geram debates por terem personagens mostrados como homossexuais que, ao final das tramas, se casam com mulheres — além de serem alívios cômicos na maioria dos casos. Para críticos de TV e telespectadores, esses enredos reforçam a ideia de “cura gay” e os estereótipos de que a homossexualidade é uma doença passível de tratamento — uma suposição falsa e preconceituosa, como confirma a Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1990.

Personagens da novela América
O beijo do casal Júnior e Zeca, de América, foi gravado para o último capítulo, mas não foi exibido e foi apagado dos arquivos da Globo, aumentando a pressão pelo 1° beijo gay da TV, que só veio a ocorrer em 2014 [Imagem: Divulgação/ TV Globo]

A falta de representatividade racial nas novelas da época é outra crítica atual que reverbera entre os noveleiros. Apesar dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já apontarem há décadas que a grande parte da população brasileira é negra (preta e parda), os elencos das novelas eram majoritariamente brancos — situação que se manteve até o início dos anos 2020. Os poucos atores negros escalados eram quase sempre empregados, pobres ou escravizados — caso de novelas ambientadas no período escravagista, como os remakes de A Escrava Isaura (2004) da Record e Sinhá Moça (2006) da Globo. Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro, foi a primeira trama com uma protagonista negra em uma novela urbana e contemporânea. A história se tornou a de maior audiência do horário das sete na década de 2000, com 43,6 pontos, e hoje gera discussões pelo título da trama, que associa a pele negra ao pecado — e ao nome da protagonista, vivida por Taís Araújo, que se chamava Preta.

Após Da Cor do Pecado, somente duas novelas da Globo tiveram protagonistas negras no decorrer dos anos 2000: Camila Pitanga em Cama de Gato, na faixa das seis, e a própria Taís Araújo em Viver a Vida, às oito — ambas exibidas entre 2009 e 2010. Na trama de Manoel Carlos, Taís foi muito criticada por sua atuação. O autor e o diretor Jayme Monjardim, que são brancos, também receberam reclamações pela forma equivocada como conceberam a mocinha negra. A atriz declarou que ficou traumatizada por anos após gravar a novela e que quase desistiu de atuar. Em julho de 2024, em entrevista ao Memória Globo, Taís declarou: “Eu vejo a novela também, agora com distanciamento e eu nem acho que foi tudo aquilo que eu falava na época. […] Ela deu certo em muitas instâncias e pra mim, talvez, tenha sido um grande trampolim, tenha sido a novela que me colocou pra cima”. A atriz também disse que ela e a equipe tiveram uma falsa imagem de que o país era uma “democracia racial”, algo que não acontecia na prática — classificando isso como ingenuidade da produção. “‘Se você tivesse a escolha de não fazer, sabendo tudo o que ia acontecer, você não faria?’ Eu faria”, pontua.

“Você não tem que justificar porque uma mulher negra é bem sucedida para aceitar que ela pertença a um lugar de destaque.”
Taís Araújo Ramos, atriz, ao Memória Globo

Sucessos que pararam o país — e as redes


Durante os anos 2000, a televisão aberta mantinha um protagonismo absoluto na mídia brasileira, embora a TV paga estivesse crescendo. “A TV aberta ainda tinha um papel crucial na formação de opinião e discussão pública”, explica Néia. Prova desse impacto é o índice de audiência das tramas. No período entre 2001 e 2010, foram exibidas as últimas novelas do horário nobre da TV Globo a alcançarem pontuação maior que 40 pontos. Caso de América (2005), Belíssima (2005 — 2006) e Celebridade (2003), que se encerraram com média de 49,1, 48,3 e 46 pontos. Belíssima, inclusive, foi a última novela a bater 60 pontos de média em um capítulo — em 15 de maio de 2006.

E os números impressionantes não se restringem às novelas das oito globais. Na maior emissora do país marcaram época a temporada 2004 de Malhação, Chocolate com Pimenta (2003 — 2004), Alma Gêmea (2005 — 2006) e Cobras & Lagartos (2006 — 2007). Durante essa década, o SBT obteve grande êxito ao adaptar textos latinos, como Pícara Sonhadora (2001), Marisol (2002) e Esmeralda (2004). Além destas, a emissora de Silvio Santos seguiu com as famosas reprises de novelas latinas, como A Usurpadora (1998), exibida três vezes entre 2000 e 2007, e Rebelde (2004), que se tornou um fenômeno juvenil com a banda formada pelos protagonistas da trama. Por sua vez, a Record, que voltava a produzir novelas após décadas sem fazê-las, conquistou sucessos que chegaram a rivalizar com a Globo. Prova de Amor (2005), por exemplo, repercutiu mais que a confusa Bang Bang (2005 — 2006) exibida pela líder de audiência.

Personagens das novelas Rebelde, Esmeralda e A Usurpadora
Queridas pelos fãs, Rebelde, Esmeralda e A Usurpadora foram alguns dos maiores fenômenos do SBT no início do século e ganharam várias reprises ao longo dos anos [Imagens: Divulgação/IMDb, SBT e Globoplay]

Além da audiência, as novelas dos anos 2000 foram as primeiras a lidar com uma forma de repercussão típica do século 21: a internet. Com a popularização dela e das recém-criadas redes sociais, como Facebook, de 2003, as tramas passaram a ser consumidas de outra maneira. No YouTube, cortes de cenas queridas pelos fãs passaram a ser publicadas, com muitas visualizações. E à medida que esses trechos viralizavam, surgiam os famosos memes. Senhora do Destino (2004 — 2005), a maior audiência do século, com 50 pontos, é o maior exemplo. As cenas da vilã Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) observando a cela em que estava, na cadeia, se tornaram a piada “Nazaré Confusa”, com fórmulas matemáticas passando pela tela.

Nem todas as tramas fizeram sucesso. Metamorfoses (2004) da Record e Esperança (2002) da Globo são alguns exemplos de novelas problemáticas do período. Porém, como destaca Néia, havia naquelas produções uma variedade de estilos e experimentações que já não se vê hoje. Para o pesquisador, a explicação é que, à época, a TV aberta não tinha concorrência com tantas plataformas como hoje — em que disputa pela preferência do público, entre outros, com o streaming, as redes sociais e a TV por assinatura.

Essa hegemonia da televisão aberta também permitiu aflorar a originalidade das narrativas. Caso da representação de culturas estrangeiras nas novelas de Glória Perez e da linguagem cinematográfica de João Emanuel Carneiro, que em A Favorita (2008 — 2009) revolucionou ao esconder do público quem era a vilã e a mocinha da história por um terço dos capítulos. Essas novidades, somadas à chegada da alta definição, com o formato HDTV, permitiram às novelas uma preocupação estética inovadora.

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