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Flamenco universal: feminismo, apropriação e história

Ícone da cultura espanhola, o flamenco se diversifica pelo mundo sem perder a tradição e a capacidade de expressar lutas políticas e a força feminina

Uma manifestação artística complexa, que reúne dança, canto, música, figurino e gestual – assim pode ser definido o flamenco. A manifestação cultural hoje está em diversos lugares do mundo e toca muitas pessoas, o que Giselle Ferreira, bailarina e diretora da Alma Andaluza Studio e Cia de Dança, acredita ser devido à passionalidade, à expressão dos sentimentos e ao olhar para si próprio que estão presentes no flamenco.

Todavia, apesar de uma origem miscigenada, a presença do flamenco em diversos espaços ainda causa atritos. Recentemente, a cantora espanhola Rosalía – vencedora do Grammy Latino em 2020 pelo álbum El Mal Querer – recebeu críticas por ser catalã e se apropriar de um ritmo andaluz. Ana Paula Campoy, professora e bailaora (dançarina de flamenco), acredita que as críticas à Rosalía são ultrapassadas: “De forma alguma ela está se apropriando de uma arte que não é dela”, afirma.

 

Flamenco: foto da cantora Rosalía, com cabelos escuros levemente ondulados (sob luz azul), brincos grandes, blusa vermelha e microfone
Rosalía, formada em cante flamenco, é original e deixa sua marca nas canções que misturam o flamenco com outros ritmos. [Imagem: Diario de Madrid/Wikimedia Commons]

Manifestação artística e rede simbólica 

Eleito Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2010, o flamenco é considerado um ícone da cultura espanhola – especialmente da região da Andaluzia – e tem influências árabes, judaicas e ciganas.

No estudo Arte Flamenca em São Paulo (2014), Ana Paula Campoy afirma que o flamenco não é “algo restrito ao folclore andaluz e, sim, uma soma de experiências coletivas que provocaram uma nova rede simbólica e que, em certos aspectos, mantém-se viva e adepta a influências e consequentes transformações”. Contudo, apesar das constantes mudanças, há uma essência que deve ser respeitada, de forma a evitar simplificações.

 

Flamenco: casal de bailaores em que a mulher traja um vestido claro, com babados na parte inferior, e o homem (com braços erguidos) traja colete e calça escuros
Casal de bailaores em apresentação tradicional em tablao na Espanha. [Imagem: Quincena Musical/Wikimedia Commons]


A música flamenca ocupa um espaço de grande destaque e admiração, devido à sua complexidade e, principalmente, à grande carga emocional exigida para sua interpretação. A
guitarra flamenca é considerada o principal instrumento no acompanhamento do cante (canto) e seu som difere muito do violão tradicional, apesar de apresentarem mesmo tamanho e forma.

O ritmo e a melodia dos cantes flamencos são marcados por estrofes e letras que apontam a importância da oralidade e da literatura nessa arte. As canções tratam de diversas temáticas e carregam uma grande carga étnica e histórica. Elas podem ser divididas em categorias como o cante jondo, que trata de temas como sofrimento, morte, religião e é profundamente emotivo, e o cante chico, que é mais leve, humorístico ou romântico.

A personalidade de cada artista, ao cantar, pode impor um novo palo (ritmo) flamenco. Por isso, existem inúmeros palos, como alegrías – originário de Cádiz, com compasso misto; bulerías – ritmo vivo e vibrante; seguirya – trágico, expressa sofrimento e dor; entre tantos outros. Há também outros instrumentos de percussão que acompanham o cante e a dança, entre os quais estão o cajón (caixa de madeira tocada com as mãos) e as castanholas (pedaços de madeira colocados ao redor dos dedos e tocados enquanto se dança).

Já o baile flamenco apresenta traços derivados de muitas outras danças, influenciado por elementos culturais indianos, árabes, mouros e também africanos e latino-americanos. Os movimentos que permitem que o bailaor assuma o papel de percussionista também são inspirados nos sapateados irlandês e americano. Na dança flamenca, os homens costumam enfatizar o movimento dos pés, como no zapateado e no taconeo, enquanto as mulheres destacam movimentos expressivos de mãos, braços e tronco. Contudo, Ana Paula destaca que “a mulher sapateia hoje com a mesma velocidade e precisão dos homens” e já não existe algo que as mulheres não possam fazer no baile flamenco.

A dança flamenca não se restringe a executar os movimentos, é preciso compreender os códigos de baile, como chamadas, arremates, cortes e mudanças de ritmos. O baile flamenco leva sempre em conta os cantes e as características musicais de cada ritmo, o que exige respeitar os limites das possíveis combinações. É destacado também o papel dos improvisos no baile flamenco, que ocorrem em tablaos (locais tradicionais onde ocorrem espetáculos de flamenco), ferias (festas populares que ocorrem anualmente em diversas cidades espanholas) e outros espaços informais, e são definidos como a verdadeira liberdade no flamenco.

Outro elemento relevante da rede simbólica é a vestimenta. A princípio, as roupas usadas pelas dançarinas eram simples, mas, com o passar do tempo, o figurino se transformou e hoje os trajes são caracterizados pelas cores vibrantes, babados e acessórios como leques, mantóns (xales) e peinetas (acessórios típicos de cabelo).

 

Flamenco: cinco bailaoras com trajes flamencos coloridos caminham pela Feria de Sevilla, de costas para a câmera
A Feria de Sevilla, também conhecida como Feria de Abril, é uma das maiores da Espanha. [Imagem: Sevilla Congress & Convention Bureau/Wikimedia Commons]


Apesar da origem incerta, o desenvolvimento do flamenco pode ser dividido em quatro momentos. A etapa Primitiva marca a presença do flamenco em ambientes restritos e familiares, durante o século 19. Na etapa dos Cafés Dançantes, que vai até a década de 1920, ocorre a profissionalização dos intérpretes. 

Já no período da Ópera Flamenca, que durou da década de 1920 a 1950, o flamenco é representado no cinema e alcança diversos países, sob a interferência da indústria cultural. Por fim, na etapa de Renascimento, que vai da década de 1950 a meados da década de 1980, são aprimorados os tablaos, surgem os primeiros festivais e são criados novos centros de estudos que visam o ensino e a difusão da arte para todos os interessados.

Ana Paula Campoy ressalta em seu artigo que, ao longo de sua trajetória, o flamenco também revelou resistências políticas de povos reprimidos que expressaram sua revolta frente às classes dominantes por meio da manifestação artística.

Expressão da feminilidade

Tradicionalmente, o flamenco foi – e ainda é – um espaço em que os homens têm grande destaque, especialmente na música. Contudo, novas vozes femininas têm surgido para cantar histórias que estão longe de serem baseadas no amor submisso. Entre essas artistas, destacam-se – além da já mencionada Rosalía – La Tremendita, Rocío Márquez, Silvia Pérez Cruz, entre outras.

“A mulher no flamenco busca uma assertividade e uma força”, afirma Ana Paula. A bailaora e professora conta que, ao longo de sua experiência no flamenco, percebeu que “a descoberta de que você é uma mulher com voz, que você pode falar, expressar todos os seus sentimentos, sem ter todos os padrões preestabelecidos” é essencial. Para ela, a busca por autonomia e por ser você mesma é uma das grandes características do flamenco. A professora ressalta que, apesar de a Espanha ser um país muito machista, “é muito forte o espaço que a mulher tenta conquistar como voz ativa e não apenas como uma imagem de beleza e sensualidade”.

Giselle e Ana Paula destacam que a questão da sensualidade no flamenco é central, apesar de se apresentar de uma maneira à qual não estamos muito acostumados. Tão importante quanto a força, a revolta e a conquista de um espaço, a sensualidade é explorada com a postura, a atitude, o olhar. “Isso é muito empoderador e trabalha a feminilidade nesse lugar distinto, que é um lugar de sutilidade e menor exposição”, afirma Giselle Ferreira. 

Hoje, percebe-se uma nova busca pelas marcas do baile feminino e Ana Paula Campoy comenta que é importante que a mulher “não tenha medo de se deixar ser vista porque está provocando um sentimento no outro, mas dançar simplesmente porque quer ter essa sensação do feminino natural”.

 

 

Há também uma grande gama de bailaoras que trabalham não apenas a questão do feminismo, mas também de todas as minorias. Existem coletivos de bailaoras negras, LGBTQ+ e de outros grupos. Giselle destaca que as pessoas mais conscientes sempre vão pensar se “sua arte vai dialogar com as questões sociais do momento, com o que está sendo dito e trabalhado”.

O flamenco fora da Espanha

“O flamenco não está preso na geografia”, afirma Ana Paula Campoy. A partir do século 21, essa arte começa a ser caracterizada por flamencólogos e estudiosos como uma cultura viva, em formação, com fusão e com influências de outras culturas o tempo inteiro. Assim, o flamenco, que já não estava mais restrito geograficamente à Espanha, também não se restringe mais a um povo. “Quando a gente entende esse contexto, vemos que existe a tradição, mas existe uma coisa que é viva. Então precisamos entender o que é a linguagem do flamenco, o que é o conceito, as peças que não podem se descaracterizar e o que pode ser contextualizado na sua vivência, no seu lugar”, completa Ana Paula.

“O próprio flamenco não tem um purismo em sua origem, ele é feito de várias culturas. Ele foi para o mundo e só vai agregando cada vez mais coisas” conta Giselle Ferreira. A professora acredita que a identidade de cada local começa a ser agregada e, por exemplo, no caso do Brasil não há como dizer que o flamenco feito aqui não é brasileiro. 

 


O flamenco chega ao Brasil através dos imigrantes e essa chegada também está fortemente ligada aos circuitos culturais dos países vizinhos com grande influência espanhola. Assim, cada estado e região tem sua própria história, mas na década de 1980 há uma grande difusão do flamenco no país com os filmes de Carlos Saura
Bodas de Sangue (1981), Carmen (1983) e outros – e com os shows de Paco de Lucia. 

Com a internet e a globalização, o flamenco fica ainda mais acessível. Nos últimos 15 anos, a expressão artística tem ganhado forte impulso e surgem cada vez mais oportunidades de atuação e formação de plateias. Ana Paula vê que é possível “reinventar, respeitando o eixo daquela cultura, desde que você estude-a em todos os âmbitos, inclusive históricos”, e Giselle acrescenta que a troca que existe entre profissionais brasileiros e espanhóis “é muito interessante porque eles, quando vêm aqui, também bebem da nossa cultura e isso vai reverberando no flamenco que eles fazem lá”. 

Por fim, Ana Paula Campoy destaca que a territorialização do flamenco, imposta no regime de Franco, teve como objetivo enfraquecer o povo; todavia, o flamenco é vivo e está em constante mudança. A bailaora acredita que argumentos de uma suposta apropriação cultural, como no caso da cantora Rosalía, estão indevidamente colocados: “Faz muito sentido ela usar o flamenco, porque tem tudo a ver com ela”, analisa. “O flamenco é flamenco por uma linguagem já universal, ele não está mais preso a um povo”, afirma Ana Paula.

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