Das origens da guerra civil ao trabalho altruísta dos profissionais de saúde no país
Por Giovanna Costanti (giovannacostanti@gmail.com)
O Iêmen, pequeno país ao sul da Arábia Saudita e a oeste de Omã, se encontra em uma das piores crises humanitárias que o mundo já viu. O país parece só resistir em razão de organizações filantrópicas que fazem o possível para atender com neutralidade a população. Em meio a bloqueios por mar e por ar, bombardeios aéreos e conflitos armados em terra, o “possível” muitas vezes não é o suficiente e a situação dos iemenitas torna-se ainda mais precária, vide relatórios produzidos pela ONU que apontam para um colapso do sistema de saúde e para a derrocada da situação econômica. Isso tem provocado um crescente surto de cólera e um cenário de desnutrição e fome que muito se assemelha ao que se viu na Etiópia dos anos 1980. “O povo do Iêmen não consegue sair do país. As pessoas se deslocam de grandes cidades para vilas, e então quando a guerra chega, elas procuram refúgio em outro local. É um grande desastre”, afirma Charles Schmitz, especialista do Instituto do Oriente Médio em Washington e professor da Townson University à J. Press. O professor Charles explicou o contexto geopolítico e as origens da guerra, esclarecendo questões importantes para o seu entendimento.
Contornos políticos
Segundo Charles Schmitz, a guerra estourou quando eleições presidenciais que deveriam ocorrer em 2014 nunca aconteceram. Em setembro daquele ano o governo é paralisado: um golpe foi dado pelas mãos dos rebeldes Houthis. No início de 2015, eles tomam uma das cidades mais importantes do norte do Iêmen, Sanaa, onde residia o então presidente Hadi, que fugiu para o Sul. Isso tudo aconteceu, segundo o professor, em decorrência de um processo que se iniciou na década de 1990, momento em que o Iêmen tornou-se um só.
A união entre Iêmen do Norte e Iêmen do Sul foi firmada em um acordo pelos líderes Ali Abdullah Salleh, do Norte e Ali Salim al-Beidh, do Sul. Pouco depois, Ali al-Beidh deixou o governo de unificação, o que enfraqueceu a participação do Sul em relação ao novo país. No ano seguinte uma guerra civil estourou entre lideranças das duas regiões. “O Norte venceu e tratou o Sul como um território conquistado. A incapacidade de Saleh em integrar efetivamente o Sul em seu regime foi uma das razões para o colapso do mesmo, em 2011”, explica Charles Schmitz.
Depois da unificação, o Sul, majoritariamente sunita, mais desenvolvido e mais urbanizado, manteve maiores relações com os países do Golfo em comparação com o Norte. O Iêmen do Norte é um território de organização social próxima do tribalismo. É nessa região militarizada, que faz fronteira com a Arábia Saudita, que, tradicionalmente, se concentram os Houthis, um grupo da religião zaidita, uma corrente do xiismo. Como um Estado rico, a Arábia Saudita poderia ser considerada um país-destino de uma provável onda migratória, tanto antes, quanto depois do início da guerra, principalmente. “Os sauditas consideram o Iêmen uma ameaça à segurança, tanto como um Estado pobre e caótico do qual ameaças como a al-Qaeda surgem, quanto como um Estado forte capaz de ameaçar a fronteira do sul da Arábia Saudita. Esse é o motivo pelo qual os Houthis atiram foguetes direcionados ao vizinho, eles querem assustá-los.”, explica Charles Schmitz.
Em 2011, a Primavera Árabe fez com que o governo de Saleh ruísse, principalmente pelas mãos da Resistência do Sul, mas também com as ações dos Houthis. O problema de integração com o Sul e a corrupção estão entre os principais fatores que levaram à sua queda, explica Charles Schmitz. O Conselho de Cooperação do Golfo, em um acordo, decidiu que o vice de Saleh, Mansur al-Hadi, seria presidente interino, de 2012 a 2014, até que as novas eleições, que nunca ocorreram, fossem feitas.
No âmbito político, participam da disputa os Houthis, o exército da Resistência do Sul e a Coalizão Saudita, essa última recebe apoio de governos internacionais, como os EUA. Esse apoio não se dá apenas politicamente, mas também por meio da venda de materiais bélicos, firmada sob acordos milionários entre a realeza saudita e as administrações estadunidenses. Segundo Charles Schmitz, interessa para a Arábia Saudita a participação na guerra, como forma de impedir que os Houthis e que Saleh assumam a governança do país. Esses, de acordo com o professor, não seguem a agenda saudita, portanto, seus interesses são conflitantes.
“Atualmente, existem dois ou três governos. O governo Houthi apoiado por Saleh no Norte, o governo de Hadi em Aden e Riyadh e agora o novo Conselho Transitório do Sul em Aden”, explica Charles Schmitz, sobre um país que, na teoria, se encontra unificado. Na prática, tanto analistas quanto profissionais da ajuda humanitária enxergam um futuro no qual o país pode tornar a ser dividido em Norte e Sul, visto que um governo central parece uma solução distante e complexa. As diferenças entre as duas regiões são profundas, envolvendo questões políticas, culturais e históricas.
Sobre uma possível solução para a situação política, Charles Schmitz comenta que é necessário um governo efetivo, independentemente de ser central ou não, e que o Estado de Direito seja instaurado. “O país tem um sistema de governo local e um de seus problemas é que chefes e personalidades poderosas controlam o conselho regional e o usam para seus próprios interesses, desviando recursos humanitários”, explica ele. O professor ainda cita o caso de diversos países que fazem grandes promessas de ajudar financeiramente o Iêmen, mas que não seguem com seu compromisso.
“Talvez estejamos perto de encontrar uma solução, todas as partes estão exaustas e nenhuma delas está ganhando”, comenta Charles. Apesar disso, para ele, as negociações de paz ainda deverão se estender por um longo período.
Os ataques aéreos
A Coalizão Saudita, formada por países árabes e dirigida, principalmente, pela Arábia Saudita, tem sistematicamente bombardeado, por meio de ataques aéreos, os Houthis e outros grupos armados aliados a Saleh. Frente aos bombardeios, os Houthis intensificaram seus já costumeiros ataques que tem como alvo o Sul e a Arábia Saudita.
Os ataques de ambas as partes têm frequentemente atingido hospitais, escolas, infraestrutura, instalações religiosas, mercados populares, estradas e fábricas locais e têm causado uma perda humana gigantesca. “Na guerra do Iêmen, há um padrão consistente das partes beligerantes de ferir e matar civis”, declarou a organização Médicos Sem Fronteiras. A assessoria de comunicação da ONG afirmou à J. Press que o princípio de precaução, que manda evitar ou minimizar os ataques a civis e às atividades protegidas pelo direito internacional humanitário, tem sido ignorado por ambas as partes do conflito.
A Human Rights Watch declarou ter investigado dezenas de ataques aéreos feitos pela Coalizão Saudita nos quais foram utilizadas armas fornecidas tanto pelos Estados Unidos, quanto pelo Reino Unido. “Governos estrangeiros continuam a vender armas para a Arábia Saudita apesar das crescentes evidências de que a Coalizão tem cometido ataques aéreos ilegais”, afirma a organização, que tem exaustivamente pedido o cessar das vendas frente ao calamitoso cenário que os bombardeios têm causado. Charles Schmitz diz estar pessimista com relação ao possível fim do fornecimento bélico.
O bloqueio saudita
Além dos bombardeios, a Coalizão tem mantido um forte bloqueio por ar e mar, além de conservar militarizada a fronteira do sul da Arábia Saudita.
“A obstrução deliberada da assistência deve acabar”, declarou, em abril deste ano, a Médicos Sem Fronteiras ao comentar a difícil entrada de suprimentos essenciais, como alimentos e medicamentos. A assessoria de comunicação da organização contou à J. Press que o porto de Hodeidah, com limitações, é chave para o acesso ao norte do país porque é o último sob controle dos Houthis. Além disso, não há voos comerciais para Sanaa, o que obriga as organizações a negociarem e fretarem voos que rumam ao país com suprimentos.
O bloqueio é também um entrave aos civis iemenitas que tentam escapar da situação de guerra civil. Essa é a razão pela qual não se escuta falar de refugiados iemenitas. Segundo Charles Schmitz, o conflito tem produzido uma massa de pessoas intencionadas em buscar refúgio em outros países, mas o bloqueio as impede de fazê-lo. Isso gera os chamados deslocados internos, que são refugiados em potencial, pessoas que se deslocam de cidades para cidades, de províncias para províncias, em busca de melhores condições de vida.
As missões humanitárias
Composta por estrangeiros e por locais, a ajuda humanitária se faz presente em situações emergenciais, em locais de conflito armado e bombardeios, em áreas nas quais falta assistência básica: cenários que parecem surreais para quem está distante da zona de conflito, mas que fazem parte do cotidiano de quem vive a guerra diariamente.
As brasileiras Tatiana Chiarella, que esteve no país de agosto a novembro de 2015, no início da guerra civil, e Ana Letícia Nery, que esteve no Iêmen entre junho e outubro de 2016, ambas profissionais da organização Médicos Sem Fronteiras, contaram sua experiência à J. Press.
Depois do norte do Iêmen, Tatiana ainda passou pela Líbia, Turquia e Iraque, país em que estava quando conversou com a J. Press. Enfermeira especializada em emergências, ela atuou na província de Anram, no norte de país, como responsável pelo treinamento da equipe de enfermagem de um hospital local que contava com o suporte da Médicos Sem Fronteiras. Já Ana Letícia, que é médica emergencial especializada em clínica geral, atuou como diretora de um hospital no sul do país, em Aden, uma famosa cidade portuária. Ela passou por outros países tais como Uganda, Sudão do Sul, Líbia e Iraque.
Ana conta que, durante três meses, toda sua experiência no país ocorreu dentro do hospital, lugar onde morou no andar de cima, com mais seis expatriados. Em decorrência disso, ela diz ter sentido falta do contato mais direto com a população local, como ocorrera nas suas missões anteriores. “Era uma rotina super claustrofóbica, altamente intensa, de vivência hospitalar contínua e, na verdade, eu gosto. Mas lá no Iêmen tinham muitas complicações”, explica.
Essas complicações, segundo Ana, só puderam ser enfrentadas com um serviço médico de qualidade e bem equipado, incluindo a presença de profissionais iemenitas, com os quais ela tinha reuniões frequentes. “A gente conseguia fazer cirurgias plásticas de reconstrução, procedimentos ortopédicos complexos, numa área insegura e com pacientes feridos de guerra, extremamentes complexos de se receber”, conta.
Desafios do trabalho humanitário na guerra civil
“O nosso sistema de saúde é aberto para todos os lados do conflito, muitas vezes a gente recebia pacientes tanto dos grupos que a gente chama de atores não estatais, que são al-Qaeda, Estado Islâmico e as milícias locais, quanto dos atores oficiais, que são o exército do Iêmen”, explica Ana . A Médicos Sem Fronteiras, como a Cruz Vermelha e tantas outras, trabalha com a neutralidade, atendendo ambas as partes dos conflitos.
Isso exige que os profissionais não tenham apenas a excelência médica, mas que também saibam lidar com a diplomacia, com o diálogo. Dessa maneira, também é de extrema importância que os médicos tenham conhecimento da geopolítica do conflito. “É um trabalho diário de negociação, de explicação. É ter um tanque parado na porta do hospital para buscar uma pessoa que é associada à al-Qaeda mas que está gravemente doente, e ter que ir lá e explicar que ali é um hospital e que tem que esperar o paciente ter alta”, relembra Ana.
Os bombardeios aéreos e os bloqueios são um dos principais desafios quando se trata de levar ajuda humanitária ao Iêmen, por isso são um dos tópicos das tentativas de acordos. Organizações que conseguem atravessar o bloqueio, como a Médicos Sem Fronteiras, só o fazem devido às negociações com as autoridades sauditas e com os Houthis. “É compreendido dos dois lados que a gente trabalha nos dois lugares, mas a segurança nunca é garantida completamente. Já fomos bombardeados no Iêmen mais de uma vez”, pontua Ana.
A segurança e a saúde psicológica em um contexto de intensa rotina hospitalar são extremamente importantes e em meio à guerra, tornam-se aspectos desafiadores. “Quando se está num zona de conflito sempre há risco. Quando estive no Iêmen, um de nossos hospitais foi bombardeado em Haydan, e nosso profissionais todos tiveram sorte e saíram a tempo. O hospital costumava ser o lugar mais seguro, hoje é imprevisível”, conta Ana, que diz sempre manter a calma em situações de estresse, conversando com os médicos locais, buscando pensar em como guiar seus colegas e onde buscar um lugar seguro.
Acesso à saúde e outros direitos básicos no país
Segundo a ONU, mais de 600 instalações médicas no país pararam de funcionar devido à guerra, afetando o acesso de milhões de pessoas a um sistema de saúde. “Além dos feridos de guerra, existe um problema subterrâneo e invisível que é a desestruturação de um sistema de saúde primário. As consequências do conflito são muito maiores que aquelas visíveis simultaneamente. A sociedade se desintegra em todos os níveis, e isso reflete na saúde também”, explica Ana.
Ela conta que, com as experiências na África e no Oriente Médio, pôde constatar que a situação das populações dessas regiões é bem diferente. Enquanto a África lida com epidemias e com doenças infecciosas, o Oriente Médio lida com problemas como infartos, diabetes e hipertensão, com as quais se pode conviver, mas que exigem um acompanhamento médico frequente e um competente sistema de saúde – impossível em tempos de guerra. “Eram pessoas que tinham a necessidade de uma atenção contínua que foi subitamente interrompida por causa da guerra. Eles estão morrendo, mas são vítimas invisíveis. Apesar de serem mortos de guerra, eles não vão aparecer nas contagens”, explica.
No país, o acesso a direitos básicos foi totalmente desestruturado. Com a escassez de alimentos e com a falta de renda enfrentada pela maioria das famílias, o preço dos alimentos e de outros itens essenciais, como combustível e eletricidade, disparou, segundo a Médicos Sem Fronteiras. A fome e a desnutrição são questões que vêm sendo levantadas desde 2015 e que continuam se agravando. A epidemia de cólera, que estourou em 2017, também é um grande desafio a ser enfrentado pelas equipes médicas, como conta Ana Letícia. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o total de casos registrados no país em 16 de maio era de 11.046. Relatórios da Oxfam apontam que a cólera tem matado um iemenita a cada hora.
Como o Sul é um aliado da Arábia Saudita, Ana Letícia explica que, atualmente, não é alvo dos bombardeios. Isso dá à região uma chance de começar a se reerguer, mas esse processo ainda é novo e lento. O Norte enfrenta outro cenário: uma epidemia de cólera fora de controle, um crescente quadro de desnutrição em uma área de origem tribal e um sistema de saúde sem recursos. Lá, onde prevalecem os bombardeios aéreos da Coalizão, ela diz que os Houthis lutam uma guerra ao mesmo tempo que governam um “país”. Tatiana, que vivenciou esse cenário, conta que o acesso a todos os tipos de necessidades básicas no Norte, durante sua época de sua atuação no país, era muito precário, assim como a situação da saúde pública. “Sendo o único na região, nosso hospital era referência para cidades vizinhas, mas as estradas nem sempre estavam inteiras, visto que uma das estratégias de guerra era cortar meios de transporte para bloquear a passagem de suprimentos”, conta. Além disso, ela relembra que as escolas estavam funcionando apenas como abrigos às pessoas deslocadas. As cidades careciam de coleta de lixo, o que contribui para a disseminação de doenças.
Ana conta que alguns médicos estão fugindo em decorrência da insegurança e da falta de pagamento, como relataram colegas que atuam em Sanaa. “Me falaram que no hospital principal o centro cirúrgico hoje tem, ao invés de parede, pedaços de papelão para fechar a porta. Não tem medicação para anestesia, equipamentos e esterilização. O banco de sangue não funciona mais”, explica.
As “casualidades de guerra” e os iemenitas
A situação de vulnerabilidade sofrida pelos civis faz com que se tornem refugiados dentro de seu próprio país. “Essas pessoas viviam em campos, em prédios abandonados, em escolas. A Médicos Sem Fronteiras organiza clínicas móveis para tentar atingir essa população”, conta Tatiana, médica que teve mais contato com os deslocados internos por conta da região onde atuou. Curiosamente, ela conta que atendeu muitos “acidentes domésticos” nesses casos. “Eles moram em barracas, e por conta de frio e chuva, cozinham dentro delas, ocasionando acidentes como incêndios”, explica.
Segundo relatórios da Médicos Sem Fronteiras e da Human Rights Watch, tanto a Coalizão Saudita quanto as milícias Houthis têm sido responsáveis por “casualidades de guerra” que não só têm desestruturado a infraestrutura social e os negócios iemenitas locais, como têm sido altamente custosas às vidas humanas. “Num contexto de guerra não são só combatentes que morrem e são feridos”, diz Ana.
O hospital em que Ana atuou contava com uma área de reabilitação voltada para a saúde mental, onde os pacientes recebiam ajuda de profissionais da psicologia. Ela conta que grande parte desses tipos de vítimas eram crianças. Muitas delas haviam tido algum de seus membros amputado pela equipe médica em razão de graves ferimentos causados principalmente por minas terrestres e ataques aéreos.
Apesar de ser muito difícil devolver a funcionalidade para as crianças, a médica se impressionou com a capacidade de adaptação e de resposta delas. “Os adultos têm questionamentos de justiça, sentimentos de vingança, de rancor. As crianças, ao contrário, aceitam sua condição com uma facilidade muito maior”, diz Ana.
Ela cita a história de um garoto iemenita que teve a perna amputada no início da coxa e que teve um procedimento complicado de colocação de prótese de perna inteira. Ana conta que os pais do garoto tiveram uma grande dificuldade em lidar com o ocorrido. Depois da cirurgia, ela teve uma surpresa: “Quando ele voltou da consulta de reabilitação já estava brincando, fazendo piada com a psicóloga”, diz ela. “E eu ficava pensando como é incrível. Ele sofreu a maior injustiça da vida dele, é uma vítima casual de uma guerra que ele não compreende, da qual os pais dele não participam. Ele está só seguindo em frente, é a única opção que ele tem”, conclui.
Contato com o staff nacional
As equipes de inúmeras organizações humanitárias não são só formadas por expatriados. A quantidade de médicos locais pode variar dependendo da localização, mas eles fazem-se presentes. “Nossos colaboradores são nacionais, ou seja, contratamos médicos, enfermeiros, motoristas, pessoal da limpeza e logística, todos locais. Trabalhar com eles foi incrível. Muito motivados e querem aprender sempre mais. E apesar das circunstâncias sempre nos convidam para almoçar e conhecer as famílias”, conta Tatiana, sobre a experiência com a equipe nacional ainda em 2015.
Os médicos locais vivem uma situação completamente diferente da do expatriado. Ana e Tatiana sabiam que suas famílias estavam seguras no Brasil, contudo, a equipe local tem que dividir os pensamentos entre os pacientes e a família, essa última, diretamente inserida num contexto de violência e vulnerabilidade. Assim como os expatriados, os profissionais locais, por medidas de segurança, ficavam por meses a fio dentro do hospital, o único contato com o mundo externo era feito por telefones celulares. “A gente coloca tanta atenção no expatriado que esquece que, na verdade, a maioria dos nossos projetos é feita pelo nosso staff nacional e o Iêmen é o maior exemplo disso. Eles fizeram coisas heróicas, surreais”, pontua Ana.
Tatiana narra uma experiência marcante que vivenciou no país: o hospital onde atuava recebeu duas vítimas de um ataque a tiros a um carro em uma ponto de checagem dos Houthis, ambos falecerem. “No momento que os recebemos, nem sabíamos quem eram”. Quando tudo terminou, a equipe ficou sabendo que se tratavam de profissionais iemenitas de outra organização. “O incidente ocorreu num ponto de checagem em que nossos carros haviam acabado de passar com meus colegas. Poderia ter sido qualquer um de nós”.
Várias são as histórias, como essa, relacionadas à equipe iemenita. Ana Letícia também relembra uma delas, quando um ataque do Estado Islâmico ocorreu a 400 metros do hospital, causando aproximadamente 200 mortes. A equipe médica recebeu pelo menos 120 vítimas, dos quais 60 já estavam mortos. “Foi um caos organizado, em 15 minutos o hospital estava absolutamente lotado”, conta ela. Enquanto trabalhava nos atendimentos emergenciais, um médico iemenita falava ao telefone, com uma estranha feição. Ana se lembra que ficou brava e foi questionar a atitude do médico, ao que ele explicou que sua esposa morava há 20 metros da explosão, estava grávida e sozinha e contava ao marido, pelo telefone, que o portão de onde residia havia sido destruído. Ana, surpresa, insistiu que o médico fosse para casa, mas a resposta foi negativa. Ele a tranquilizou e disse que precisava terminar seu trabalho, alguém iria ajudar sua esposa. “Foi um nível de altruísmo que eu nunca encontrei antes na minha vida médica profissional. E isso me ensinou muita coisa”, conta Ana, ainda incrédula com a atitude do colega de trabalho.
Ela conta que no dia do atentado, vários médicos se dispuseram a ficar no hospital, mesmo os que estavam em casa por não estarem trabalhando naquele dia foram ajudar, sem nenhuma remuneração. “Isso é voluntariado. É abandonar a sua família em casa, na guerra, na confusão, para ir para o hospital ser médico. O Iêmen é isso, é uma população que sofre muito, mas que tem uma noção de comunidade que é difícil para a gente entender”, conclui Ana.