A franquia Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012) foi responsável por trazer aos holofotes uma das personagens femininas mais conhecidas da atualidade: Katniss Everdeen, vivida no longa por Jennifer Lawrence. Adaptação da trilogia de livros escritos por Suzanne Collins, a história tem como pano de fundo um futuro distópico, no qual as pessoas mais pobres vivem divididas em Distritos e são subordinadas à elite, que vive na Capital. Como forma de controlar a população, a Capital organiza de tempos em tempos os Jogos Vorazes, no qual são sorteados jovens de cada um dos doze Distritos para competirem em uma arena até a morte.
É nesse cenário cheio de adversidades que Katniss surge e se desenvolve. Uma adolescente que muito cedo é forçada a lidar com grandes responsabilidades e que, em decorrência disso, torna-se uma personagem tão complexa. As raízes de sua história têm muito a dizer sobre a forma como sua personalidade é moldada. Ela perdeu o pai em um acidente nas minas do Distrito Doze, e esse acontecimento teve implicação direta na estrutura da sua família, uma vez que sua mãe ficou tão traumatizada que não conseguiu dar o suporte necessário para as filhas.
Com a mãe praticamente incapacitada em função da morte do marido, Katniss acaba se tornando a provedora da família. Passa a cuidar da mãe e da irmã e aprende a usar com maestria arco e flecha, se arriscando ao sair para caçar fora dos limites do distrito. Cada vez mais as situações pelas quais a protagonista passa vão exigindo atitudes que uma adolescente talvez não conseguiria tomar, e é aqui que entra a subversão dos clichês: grande parte dos posicionamentos de Katniss são condizentes com sua realidade.
Esse aspecto é um dos pontos centrais da franquia no que diz respeito à construção da personagem. Katniss é dotada de características que a humanizam e a tornam mais próxima de uma pessoa real, com atitudes reais. Isso pode ser visto, por exemplo, quando ela se voluntaria para ir no lugar da irmã Primrose (Willow Shields) para os Jogos Vorazes. Todos os conflitos que ela enfrenta são passíveis de empatia, o que faz com que o espectador se preocupe com os rumos da história.

Há uma quebra desse paradigma no final do primeiro filme, momento no qual sobram duas pessoas, Katniss e Peeta (Josh Hutcherson), e ambos decidem que é melhor que os dois morram em vez de apenas um sobreviver. Esse ato acaba fazendo com que eles sejam declarados os vencedores, entretanto essa afronta ao sistema totalitário da Capital acaba trazendo consequências que implicam em suas vidas pessoais.
Outro grande dilema enfrentado pela heroína diz respeito ao fato dela querer ajudar a população, que passa a vê-la como um símbolo de revolução contra a Capital, e ao mesmo tempo querer se salvar e salvar sua família. Esse questionamento surge a partir do momento em que o presidente Snow (Donald Sutherland) passa a ameaçá-la e a controlar sua vida. “São as coisas que mais amamos que nos destroem” diz Snow em uma das cenas mais simbólicas de A Esperança – Parte 1 (The Hunger Games: Mockingjay – Part 1, 2014).
Desde o segundo filme, Snow passa a usar isso como forma de desencorajá-la a instigar a população a lutar contra o regime desigual e totalitário da Capital. Em função disso, o medo acaba tomando conta de algumas de suas atitudes. Entretanto, em diversos momentos, seus pensamentos e emoções falam mais alto. Uma das cenas mais marcantes de Em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire, 2013) pode ser tomada como grande exemplo, na qual Katniss fala sobre sua amizade com Rue (Amandla Stenberg) e recebe o apoio das pessoas, que passam a expressar sua insatisfação com o governo vigente. Tomando uma posição ativa, Everdeen fala sobre como queria ter salvo Rue, que era jovem e não merecia morrer. Com um discurso carregado de emoção, ficam evidentes seus pensamentos acerca da situação miserável à qual a população pobre é submetida.

Revoltas, manifestações, afrontas. A voz da população, mesmo com a tentativa de ser silenciada e reprimida, grita. E esse grito é oriundo dos atos da protagonista. A partir daí que o conflito entre proteger a família e participar da revolução se acirra. Com a notícia de que o Distrito Doze foi completamente destruído, sua visão passa a se voltar para a guerra, em iminência de formação. Em A Esperança – Parte 1 ao visitar o Distrito dizimado, enxerga com os próprios olhos o que a Capital é capaz de fazer. Quase toda a população do Doze foi morta, e os poucos que conseguiram se salvar foram para o Distrito Treze.
Todos pensavam que o Distrito Treze não existia mais, porque no passado ele se rebelou e foi aniquilado. Entretanto, conseguiu sobreviver e se manter escondido durante anos, apenas esperando uma oportunidade para contra-atacar. A líder desse Distrito, Alma Coin (Julianne Moore), vê em Katniss um meio de unir o povo contra a Capital. E é exatamente nesse ponto da trama que a jovem sofre diversas tentativas de manipulação.
Subvertendo isso, não se deixa manipular facilmente e passa a se empenhar cada vez mais em ajudar os outros, não se contentando em ser apenas um símbolo. Surge uma necessidade de estar em ação, de ir para a guerra lutar. Uma força interna começa a aflorar, apesar de todos os danos sofridos. Ela vai para o Distrito Oito, local que está sendo atacado pela Capital. Lá, vê todos os horrores da guerra personificados nas mortes e nos feridos de um hospital precário montado às pressas. É nessa cena que todos enxergam que não estão lutando sozinhos, que a resistência não está sendo em vão, porque Katniss mostra-se presente para ajudar.


Além disso, a morte de amigos como Cinna (Lenny Kravitz) e Finnick (Sam Claflin) é algo que afeta diretamente sua vida. O principal preço pago é, sem sombra de dúvidas, a morte de sua irmã. Em A Esperança – O Final (The Hunger Games: Mockingjay – Part 2, 2015), Jennifer Lawrence emociona com uma atuação espetacular em uma cena na qual Katniss tem um surto ao se deparar com o fato de que Prim nunca irá voltar. Apesar de conseguir ser a chama de uma revolução responsável por unir um povo contra o totalitarismo, ela sai da guerra com muitas sequelas.

Essa luta contra a Capital e a forma como Katniss lida com a proporção de seus atos são o ponto chave da franquia. Em nenhum momento ela pediu para ser O Tordo, o símbolo da revolução. Não foi uma escolha. E graças a esse fato é que uma de suas principais e mais marcantes características é evidenciada: a grande heroína da história não é idealizada, e, como todo ser humano, apresenta falhas e defeitos. Todas essas características servem para mostrar ao espectador que Katniss não é uma heroína convencional. Humana e real, esses são os adjetivos que a descrevem perfeitamente.
por Marcelo Canquerino
marcelocanquerino@gmail.com