Imagem: Adir Sodré – Roberta Close
Uma vivência sociocultural nunca está desvinculada de uma afirmação individual e personificada. Nesse sentido, a sexualidade é um ponto essencial da nossa vivência. Mais que isso, não apenas representa uma demonstração daquilo que nos é mais íntimo mas, ao mesmo tempo, nos posiciona socialmente. A sexualidade é política, assim como é o corpo e como são as ideias que dele transpiram.
Claro que, da mesma forma, o sexo representa o sensual, o erótico, o desejo e a intimidade. Por isso, a produção cultural, que é um reflexo desses muitos aspectos que compõem a experiência humana, nunca deixou de contemplá-lo. Chega a ser, inclusive, uma das produções mais naturais e elementares do ser humano. Entenda-se sexualidade aqui da maneira mais ampla possível, transcendendo os limites do sensual e do gênero, entenda-se como expressão.
Quando um museu de importância nacional como o MASP se propõe a fazer uma exposição intitulada Histórias da Sexualidade, sua contemplação se expande a muitos possíveis focos. Ainda mais no contexto em que essa proposta surge: cada vez mais a ideia de sexualidade se vê reduzida e restrita. Para quem observa as discussões a respeito da exposição Queermuseu ou da performance do Museu de Arte Moderna de São Paulo, parece que o debate gira em torno de uma negação da existência de uma sexualidade diversa e até da sua exclusão do cotidiano.
Claro que o mérito se estende por diversos contextos sociais e políticos, podemos englobar nisso a heteronormatividade, a rejeição da feminilidade e a desvalorização de corpos e mentes não-binárias. A exposição do MASP explora a sexualidade de uma forma ampla, mas a direciona para uma tonalidade muito mais estética e erótica. “Histórias da Sexualidade” está espalhada por três locais diferentes do museu: uma sala de vídeo, uma galeria no primeiro subsolo e outra no primeiro andar, formada por nove núcleos temáticos: corpos nus, totemismos, religiosidades, performatividades de gênero, jogos sexuais, mercados sexuais, linguagens, voyeurismos e políticas do corpo e ativismos, este último no primeiro subsolo.
Os núcleos não são cronológicos, e tratam de um ponto de vista específico. Algo curioso é que cada um poderia ser analisado e visto individualmente mas, ao mesmo tempo, se encaixa no conjunto total da exposição.
Ao começar pela sala de vídeo (parte do núcleo voyeurismos) é possível perceber uma clara tonalidade erótica e direta nas projeções da sala. Essa será constante durante a exposição, mas atingindo níveis e contextos variados e direcionados. Nesse núcleo especificamente, mas não limitado a ele, tanto na sala de vídeo quanto no seu espaço na sala principal, poderia ser constrangedor para alguns espectadores a observação dos corpos expostos, ainda mais entendendo o que era retratado – voyeurismo é o ato de observar pessoas nuas, se despindo ou praticando atos sexuais. Obras presentes nesse núcleo abordavam a prática numa Tóquio dos anos 70, por exemplo, em que o conceito de sexualidade ainda era restrito e sua prática era pouco falada em público, tornando popular o voyeurismo em parques e praças da cidade asiática.
Na sala do primeiro subsolo, “políticas do corpo e ativismos”, a intenção é clara desde o começo e a abordagem é bem direta: se encarrega de contextualizar a sexualidade no campo político, principalmente relacionando-se com as minorias e suas ações em favor da reivindicação de direitos. Nesse sentido, a sala tem sucesso: apresenta diversas publicações editoriais relatando a resistência feminista e LGBT das décadas de 70 e 80, por exemplo, além de englobar também um pouco a atualidade. Algo interessante a se destacar é o foco dado ao Brasil e à América Latina, apresentando-se, por exemplo, obras de artistas bolivianas: um grafite em um mural inteiro escrito “Nosotras parimos, nosotras decidimos”.
A sala, porém, é mais efetiva nas suas sutilezas: são os pequenos detalhes das publicações que deixam uma mensagem mais marcante em quem está vendo. Um exemplo disso é um pequeno poema pendurado, escrito por Zoe Leonard, ativista e feminista, em 1992. O intuito era publicá-lo em uma revista LGBT que deixou de circular, o que motivou a sua reprodução e distribuição.
“Eu quero uma sapatão para presidente. Eu quero alguém com AIDS para presidente e uma bicha para vice-presidente e eu quero alguém sem plano de saúde e eu quero alguém que cresceu em um lugar onde a terra é tão saturada de resíduos tóxicos que não tiveram escolha ao contrair leucemia. (…) Eu quero alguém que esteve apaixonado e se machucou, alguém que respeite o sexo, que tenha cometido erros e aprendido com eles.”
I want a president – Zoe Leonard
Os outros núcleos estão concentrados em uma sala. Alguns são mais provocativos e delicados que outros. O núcleo corpos nus, por exemplo, traz à tona a noção de pluralidade obtida através do corpo. Por isso, traz representações distintas de corpos ao longo da história e por meio de obras também distantes tanto temporalmente quanto estética e estilisticamente. Isso é algo que permeia a exposição na sua totalidade: cada núcleo não se restringe a apenas um movimento artístico específico ou um tipo de obra. Todos têm manifestações diferentes, abordando pintura, escultura, fotografia, entre outros. Os corpos apresentados nesse núcleo questionam tanto a sua noção binária e trazem uma maior diversidade da forma como cada um pode se expressar.
Por outro lado, também fica evidente o direcionamento específico a corpos femininos, provando como o corpo feminino sempre foi foco de atenção na representação, permeando nessa diversos aspectos que envolvem diretamente a relação com a sociedade patriarcal e a inserção da mulher e do ‘feminino’ no geral nela.
O núcleo Religiosidades trabalhou mais com a relação de privação. Dessa forma, muitas das obras trazidas revelavam uma percepção mais restritiva da expressão sexual, muito vinculada à consolidação da Igreja Católica e à cultura de penitência associada a ela. A relação entre inferno/paraíso também era abordada e cabe destacar que muitos dos corpos expressamente nus estavam representados no purgatório e, nas telas que faziam oposição entre céu e inferno (em cima e embaixo) os corpos nus encontravam-se embaixo e os cobertos, em cima.

Outro núcleo mais provocativo e até cômico era o de Jogos Sexuais, que retrata diferentes formas de representação do sexo no seu sentido erótico e os diversos desdobramentos desse, como fantasias e as formas em que aparecem ao longo da história.
Alguns núcleos eram menos provocativos e mais expositivos, enfatizando a sua mensagem de outra maneira, como é o caso de Performatividades de gênero, que lida com diferentes formas de expressão da sexualidade e a amplitude a que essa pode chegar, afirmando inclusive uma certa tonalidade política. Ou o caso de Linguagens e Totemismos, em que encontrava-se uma abordagem menos explicitamente sexual e direta, substituída por uma mais tênue e diferenciada. O primeiro, contendo poesia concreta ou variações de grafia para palavras remetendo a órgãos genitais. O segundo, com representações associadas à escultura, peças primitivas e artes plásticas no geral.
A exposição escolheu um direcionamento claro: a noção romântica da sexualidade não era uma preocupação, dando prioridade a algo mais erótico e sexual. Possivelmente intencional devido às controvérsias envolvendo o tema nos últimos tempos, tendo o intuito de provocar. Por vezes, inclusive, a mostra parece se perder um pouco no seu objetivo geral, mas tem sucesso em mostrar diversidade gráfica e artística, trazendo diferentes tipos de abordagens do ponto de vista de movimentos, de corpos e pessoas. A exposição acaba por contar diferentes Histórias, que ajudam a compor uma melhor percepção e inclusive alterar aquela que se tem sobre sexualidade, esse termo que, em tempos atuais, merece cada vez mais expansão e menos barreiras.
Histórias da Sexualidade. Em exposição até 14 de fevereiro de 2018. Ingresso de R$ 30, sendo R$ 15 a meia e grátis às terças. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – Av. Paulista, 1578 – Bela Vista, São Paulo – SP, 01310-200

Por Daniel Medina
danieltmedina@gmail.com