Por Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
No último dia do 30º Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’, o público teve a oportunidade de assistir a uma aula aberta no Centro Cultural de São Paulo, ministrada por Luiz Bolognesi. Reconhecido internacionalmente por seu trabalho no audiovisual brasileiro, Bolognesi é jornalista de formação pela PUC São Paulo e, posteriormente, graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.
Segundo o cineasta, seus estudos em antropologia foram cruciais para a ascensão de sua paixão por documentários — e influenciaram completamente a forma como ele desenvolve esse trabalho nos dias de hoje. Isso porque suas produções frequentemente exploram temas sociais a partir de uma leitura questionadora e descentralizadora, buscando pluralizar as vozes da narrativa.
Entre os sucessos do início da sua carreira está o roteiro de O Bicho de Sete Cabeças (2001), estrelado por Rodrigo Santoro, que aborda luta antimanicomial. Apesar de fictícia, a trama é baseada na história real do protagonista Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008), símbolo de inspiração para a reforma no sistema psiquiátrico brasileiro que ocorreu no início do milênio. Apesar da distinção entre ficção e documentário, Bolognesi salienta que esta fronteira em seu trabalho sempre esteve fragilizada — ele mescla a arte e a realidade de forma a se confundirem no processo.
Na masterclass chancelada pelo SP Cine, o cineasta destacou a importância dessa iniciativa feita pela Prefeitura de São Paulo no processo de democratização do audiovisual nas regiões periféricas da capital paulista. Ele também prestou agradecimentos ao Festival por seu enfoque contínuo em renovar a linguagem cinematográfica brasileira, abrindo as portas para documentários fora do cenário maisntream que, muitas vezes, não encontram oportunidades nas salas de cinema tradicionais.
Ao longo do debate, Bolognesi abordou diversas questões que permearam o rumo de sua trajetória profissional. Ele também compartilhou as estratégias que empregou para desenvolver e distribuir seus longas mais relevantes no cenário atual, ressaltando principalmente o aprendizado que teve ao trabalhar com as comunidades indígenas. Para ele, quatro pontos principais são inevitavelmente enfrentados na produção de um documentário.
O papel da verdade no documentário
Apesar de derivar de um trabalho jornalístico — captação, entrevista, apuração e sistematização de informações de forma a construir uma narrativa coerente —, Bolognesi inicia a conversa apresentando uma polêmica: a fronteira entre documentário e ficção é tênue.
Para o público geral, o documentário é associado diretamente ao retrato de uma verdade absoluta. Porém, a obra é um recorte de uma temática geral proveniente da perspectiva da equipe que trabalhou para produzi-lo. “Nós, como realizadores ou como público, precisamos entender que um tema é inesgotável, e muito provavelmente esse mesmo tema, abordado por outra pessoa, resultaria em um outro filme”, comenta. Nesse caso, o cineasta sugere que até um mesmo personagem pode ser retratado como um culpado ou como um grande herói, a depender do ponto de vista que se deseja destrinchar.
“Aquilo que vemos não resume o tema, e nem é uma sentença. […] Tudo é verdade — como diz o nome do festival — mas também tudo é uma não-verdade, na medida em que alguém pode dizer o contrário sobre aquilo que você está fazendo”
A linguagem utilizada durante o processo de produção é uma ferramenta do cineasta para transmitir a sua verdade e se conectar com o espectador, mas a responsabilidade pelo que foi dito e pela forma como determinado cenário foi refletido também recai sobre o autor. O diretor ressalta que, mesmo em uma entrevista, ocorre uma montagem sobre o depoimento do entrevistado e um recorte do que se utiliza. Apesar de fluir de uma interpretação subjetiva, é necessário que o cineasta reconheça e se comprometa com a repercussão que seu trabalho causará na sociedade — e assim, Bolognesi adentra no espaço da ética.
Ética versus estética: a postura do cineasta
Ele opina que a ética e a estética estão intimamente interligadas, e é impossível discutir, analisar ou até mesmo perceber uma sem a outra. Para ele, não existe “apesar de”: filmes que empregam, durante a sua produção, dispositivos abusivos em relação às pessoas que estão sendo retratadas — seja para tornar a narrativa mais impactante ou sensacionalizar um evento da vida pessoal de uma personagem — se transformam por si só em um objeto a ser criticado.
“A imagem e a voz que são veiculadas têm um efeito muito importante na vida das pessoas que estamos documentando”, comenta o cineasta. Refletir sobre os preceitos de uma conduta verdadeiramente ética no tratamento do outro revolucionou sua forma de trabalho. “Na ficção, as pessoas partem do pressuposto de que aquilo é uma construção e não aconteceu de fato. No documentário, erroneamente elas partem de que aquilo é uma verdade objetiva; a percepção de recorte está no subtexto, mas muitas vezes a gente se encontra manipulando essa situação, e eu não considero isso um trabalho ético”.
Primordialmente no trabalho com povos indígenas, e nas intercessões deste com seus estudos de antropologia, Bolognesi relata que passou a valorizar o processo de produção da obra tanto quanto o resultado final. O respeito à intimidade, à privacidade e às vivências de culturas distintas da sua foi uma habilidade trabalhada continuamente na produção de Ex-Pajé (2018) e A Última Floresta (2021).
“Precisamos tomar decisões entendendo que nosso entrevistado talvez não tenha as ferramentas necessárias para avaliar as consequências que aquilo que ela disse terá quando foi colocado no território público”, reforça. Portanto, a responsabilidade de expor, ou não, questões de natureza delicada ou contraditória recai, novamente, sobre os autores da obra.
“Comecei a radicalizar no sentido de não fazer documentários sobre os personagens, mas com as pessoas retratadas”
Sobre Ex-Pajé e A Última Floresta
Na última década, Bolognesi utilizou os meios audiovisuais ao seu dispor para dar palco aos povos originários, cuja sobrevivência diária é uma forma de luta social e política. Trabalhando de forma imersiva, ele procura produzir em conjunto com as comunidades para disseminar conhecimentos sobre os quais sabemos muito pouco — e muito por lentes brancas.
Em 2018, Bolognesi dirigiu Ex Pajé, um documentário que retrata a evangelização sofrida pelos Paiter Suruí a partir do ponto de vista de Perpera, o antigo pajé de uma tribo que viveu sem sem nenhum contato com a população branca até 1969. A imposição de um projeto de supremacia cristã sobre esse povo afirma-se em uma visão fundamentalista como estratégia de dominação do território indígena.
A catequização implicou na substituição dos ritos sagrados, realizados pelos pajés, figuras fundamentais para a organização social, espiritual e religiosa do povo. “Mostramos, nesse documentário, esse processo como uma forma de etnocídio — ‘eles são mão de obra e são consumidores, mas não me interessa que eles sejam Paiter Suruí, eu quero que eles sejam corpos disponíveis para a exploração do capital”, comenta Bolognesi sobre o posicionamento dos grupos evangelizadores na comunidade indígena.
“Não podemos esquecer que essa foi uma estratégia decisiva para o processo colonial dos portugueses no Brasil, pois os Jesuítas já faziam isso em grande escala, e relataram que o principal impedimento era a resistência e a negação dos pajés”, realça. No período, a Inquisição perseguia e queimava os pajés por serem considerados aliados ao demônio.
Na história recente, termos como “missões transculturais” foram utilizados para driblar os impedimentos legais do respeito à autodeterminação conquistado pelo movimento indígena. Tais missões camuflaram seu viés religioso, apresentando-se como organizações vinculadas a universidades, formadas por “pesquisadores”, ou de assistência social.
Ex-Pajé teve o objetivo de retratar a fragilidade social indígena frente à dominação branca eurocêntrica e, após o sucesso deste trabalho, Bolognesi iniciou seu projeto seguinte. A Úlltima Floresta, de 2021, foi vencedor de duas grandes premiações: Melhor Filme na competição oficial do Seoul Eco Film Festival, e prêmio do público como Melhor Filme da Mostra Panorama do Festival de Cinema de Berlim.
O longa retrata o cotidiano do grupo Yanomami Kopenawa, que vive em um território ao norte do Brasil e ao sul da Venezuela há mais de mil anos. A proposta inicial era englobar os dilemas do garimpo e invasão ilegal, da demarcação do território e do descaso com a população indígena. O grande diferencial foi que Davi Kopenawa, pajé e escritor do livro A Queda do Céu, foi co-roteirista da obra. “Ele é um líder da comunidade e faz uma resistência muito forte, impedindo a entrada da Igreja nas Aldeias ligadas a ele”, conta o cineasta.
Bolognesi tinha um projeto muito bem determinado em mente, mas, ao se encontrar com Davi, houve uma reviravolta: o líder disse que não havia gostado de Ex-Pajé e não achava interessante neste novo projeto mostrar exclusivamente a vulnerabilidade e o sofrimento de um povo, reduzindo a realidade dos indígenas à apenas uma imagem de destruição e desmatamento.
O trabalho de Davi modificou completamente o rumo da produção, pois ele queria mostrar a força, a potência e a beleza dos Yanomami — cujos costumes representam, por si só, uma forma de resistência cultural. “A razão [ocidental] joga o pensamento mítico para o escanteio, e conviver com ele abriu minha cabeça”, comenta. “A fragilidade de Davi trouxe toda a diferença”.
Para Bolognesi, o principal aprendizado deste trabalho é a importância de abrir os olhos para ângulos inimagináveis durante o preparo do roteiro. Fórmulas de produção, que visam faturamento máximo e o engajamento do espectador, têm ditado cada vez mais as formas de contar histórias no cinema. Porém, ao abraçar as contradições do processo, abrem-se as portas para criar obras muito mais complexas.
“O frescor deste modo de fazer, em que o diretor perde completamente o controle da situação, pode fortalecer o princípio ético e a própria obra”, opina. “A possibilidade de encontrar novas abordagens é maior, quanto mais você estiver disposto a perder o controle e abrir mão das certezas com que você chegou”.
O momento de montagem
Para Bolognesi, o trabalho de montagem do documentário é crucial, pois o plot comumente se apresenta ao autor na mesma medida em que se apresentará ao público. “Em A Última Floresta, tínhamos cerca de 50 horas de material para trabalhar”, exemplifica. Na opinião do cineasta, o mais interessante é possuir apenas uma ideia geral do tópico que o documentário deseja tratar antes de sua gravação. A partir daí, é feita uma pesquisa extensa do tema, e o roteiro é construído de forma a deixar a narrativa em aberto.
Após realizada a gravação do material, chega o momento de revisitar tudo aquilo e encontrar o que traz real significado e relevância para a história que se quer contar, ou seja, o arco dramático do filme. “Precisamos ter estratégias durante a montagem para apresentar os elementos do conflito e manter a tensão aberta: um documentário que sempre está de um lado e tem razão […] é apenas previsível, e o que a gente ama no cinema é ver coisas novas”.
Retornando à fronteira com a ficção, Bolognesi explica que é possível utilizar dispositivos ficcionais durante a construção de uma peça documental. Ele exemplifica que a reconstrução de cenas do passado podem ser feitas pelos próprios personagens envolvidos. Essa forma de “encenação” pode ser lida como ficcional, mas dá profundidade à narrativa e representa um evento real da história daquele grupo.
“O que faz a diferença de um bom montador para um montador genial é quando ele também é um contador de histórias, pensando não só na sequência, mas no conjunto do todo, junto com o diretor”
A luta pela distribuição
A distribuição de um documentário pode ser o maior desafio para o autor da obra. Segundo Bolognesi, é preciso ter muita humildade e afastar-se do egocentrismo e do narcisismo de querer total controle sobre o filme. “Compartilhar a autoria fortalece o autor e a obra”, afirma.
Para ele, o desejo primordial não deve ser receber prêmios, mas fazer com que o maior número possível de pessoas assista seus filmes. Sua estratégia central é ocupar a sala de cinema — que representa o máximo da experiência de transcendência da obra, tanto no patamar de entretenimento, como de engajamento com o público.
Isso pode ser atingido por meio da promoção de debates sobre o tema, pré-estreias, buscando grupos associados à temática em diferentes locais do país ou buscando visibilidade em festivais. “É preciso lutar para atingir o público que tem ligação com o tema que você retratou para, a partir daí, aumentar o alcance”, sugere. “É no corpo a corpo que a gente faz o filme acontecer”, conclui.