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Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’ | “Cometeram uma série de equívocos”, diz Joel Zito Araújo sobre cineastas do século 20

Cineasta premiado esteve entre importantes diretores brasileiros em contato com o público no Sesc São Paulo
Por Catarina Bacci (cbmedeiros@usp.br)

O diretor, roteirista e produtor Joel Zito Araújo esteve presente no ciclo de palestras Especial 30! Encontros, parte da 30º edição do Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’. Figura marcante para o cinema negro no Brasil, Joel criticou em seu seminário a maneira como seus “mestres” representavam as dinâmicas raciais do país. Ele colocou que o cinema novo, apesar de marcante referência no repertório nacional, ignorava desigualdades experienciadas por pessoas pretas na sociedade brasileira.

Realizado em conjunto com o Sesc São Paulo, a parceria Especial 30! Encontros reuniu quatro profissionais do cinema documental brasileiro vencedores da mostra competitiva do festival. O objetivo dos seminários foi oferecer uma possibilidade de conhecer melhor a experiência artística e as obras direto da fonte: os próprios cineastas.

O É Tudo Verdade busca, desde sua primeira edição, propiciar o acesso ao cinema não ficcional brasileiro e internacional além da limitada visibilidade dessas produções no mercado. Ao longo de suas três décadas, o festival já trazia atenção global para as obras selecionadas em suas mostras e premiações. Mas, com o reconhecimento pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood como um festival qualificatório para o Oscar, os quatro filmes vencedores dos prêmios dos júris oficiais de Longas/Média-Metragens e de Curtas-Metragens são automaticamente classificados para apreciação à disputa pela estatueta.

Para Joel, o festival foi fundamental para sua geração de cineastas, porque o “possibilitava ser contemporâneo do próprio tempo”, como disse no ciclo de Encontros. Ele costumava frequentar o É Tudo Verdade em sua juventude, o que influenciou suas criações e serviu de guia estético e narrativo para seus filmes.

Da academia ao cinema

Seminarista em um dos Encontros, Joel Araújo é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Quando começou a fazer cinema, escreveu e dirigiu o documentário em curta-metragem Retrato em preto e branco (1993), sobre relações raciais no Brasil. Essa produção fez com que a Universidade do Texas, nos Estados Unidos, oferecesse a ele uma bolsa de estudos para concluir o seu pós-doutorado e conhecer o cinema negro estadunidense.

Em seu semestre no exterior, teve a inspiração para o seu primeiro longa-metragem após assistir o filme documental americano Color Adjustment (1991), que traça a forma como pessoas negras eram representadas na televisão dos Estados Unidos — o que lhe deu a ideia de fazer essa mesma análise, mas sobre o cenário brasileiro. Fruto de sua tese de doutorado, o longa e livro homônimo de Joel, A Negação do Brasil (2000), garantiu a ele a vitória em três categorias do É Tudo Verdade, seus primeiros prêmios do festival.

“Eu percebi que fazer um filme sobre o negro na televisão brasileira era muito mais complexo num país cuja população negra é mais de 50%, enquanto a parcela da população negra americana é bem menor”

Joel Zito Araújo

De acordo com o diretor, A Negação do Brasil foi o filme que o fez ganhar reconhecimento e o possibilitou começar a conhecer o continente africano. Em suas viagens, percebeu que sua obra incentivou os públicos do continente a relerem a influência que a mídia tem em provocar neles o desejo de serem negros. “Eu achava que a África não tinha o mesmo problema que a gente tem [no Brasil], e eu descobri que a África também tem o problema da ideologia do branqueamento”, pontuou Joel em sua fala no Sesc.

A (falta de) crítica racial nas telas

O documentarista admitiu que, no final da década de 1980, analisava muito o cinema brasileiro e se sentia “insatisfeito com meus mestres” e com a reflexão de Brasil que levavam para as telas. Para Joel, os cineastas nacionais da época eram influenciados demais pela leitura do país que o sociólogo Gilberto Freyre oferecia. Na interpretação do escritor, encontra-se a teoria da democracia racial. Nela estaria implícita uma ideia de supremacia do branco no processo de miscigenação brasileiro, que aconteceu, na realidade, como uma estratégia das elites para o embranquecimento populacional.

As produções publicitárias, cinematográficas e para a televisão teriam um papel na consolidação dessa visão no imaginário popular: as pessoas mais bonitas, as mais elegantes, o ideal era branco. Joel adiciona que seus mestres “cometeram uma série de equívocos ao longo de suas histórias”, apesar de gostar das obras de nomes como Nelson Pereira dos Santos. Ele destaca Santos, o diretor de Vidas Secas (1963) e Rio, 40 graus (1955), por gostar de sua interpretação racial do Brasil.

Além dos Encontros, aconteciam no Sesc as exibições dos documentários do festival [Imagem: Catarina Bacci/Jornalismo Junior]

A África nos cinemas

Durante o seminário, Joel reforçou seu ponto de vista da necessidade de fazer com que os filmes africanos tenham regularidade nas salas de cinema nacionais: “escapa à maioria das pessoas que gostam de cinema no Brasil a força narrativa do cinema africano”. Ele disse que o documentário dá muita possibilidade de conhecimento do mundo e que as produções cinematográficas da África são um patrimônio mundial, não pertencente a apenas uma raça.

Da perspectiva artística, os movimentos africanos oferecem, também para o diretor, uma jornada de aprendizagem e pesquisa estética e narrativa. Ele considera importante a maior facilidade de acesso a materiais audiovisuais por quem busca referências do continente. As obras da África merecem ser vistas para “nos dar mais informações e solidez para compreender algo que a maior parte dos brasileiros não compreendem” sobre as riquezas civilizatórias de lá — inclusive trazidas para o Brasil.

Como parte de suas circulações pela África, foi despertada a vontade em Joel de contar uma história e as suas reflexões sobre suas viagens pelos países. Com esse desejo e o contato com outros cineastas, ele recebeu a biografia de Fela Kuti, músico nigeriano criador do gênero musical afrobeat. A partir de suas pesquisas, ele dirigiu o documentário Meu Amigo Fela (2019), uma narrativa da vida do artista e de suas contradições pessoais, sociais e políticas: “Fela tem jornada de luzes e sombras”, completou.

Joel ainda descreveu a biografia de Fela como fascinante, que continha tudo que ele gostaria de mostrar sobre a África e a pungência da arte africana, especialmente na musicalidade. A jornada contraditória do músico impedia o diretor de fazer um filme de idealização do continente, ao mesmo tempo que permitia mostrar sua potência. A música diferente do nigeriano também permitiu a Joel experimentar com a estética e a estrutura narrativa do longa-metragem.

A pesquisa na não-ficção

O cineasta caracterizou a pesquisa como parte imprescindível do método de realização do cinema documental. Ela é fundamental para o amadurecimento dos trabalhos e para a segurança ao entrar no set de filmagens. No entanto, Joel levantou um argumento de que a pesquisa aprofundada demais é, às vezes, melhor no ambiente da ficção do que no meio documental. Nos documentários, é necessário ter cautela para a “profunda pesquisa não matar a descoberta que vem no processo de filmagem”.

Para demonstrar a importância de ir além das pesquisas prévias, Joel contou do momento do desenvolvimento de seu filme Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (2008), sobre o turismo sexual no Brasil e a mulher negra. Seu levantamento de informações o levou a gerar hipóteses sobre quais seriam as percepções raciais das mulheres que iria entrevistar. Ao dialogar com elas, descobriu que suas hipóteses estavam erradas. Assim, a estrutura narrativa do filme também é um jeito de contar a quebra das suas expectativas.

O diretor reforçou que a pesquisa deve ser uma bússola e ajudar a dimensionar a complexidade do que o documentarista irá abraçar, mas é um grande erro se ele aborda o documentário como maneira de reforçar suas hipóteses. “O que importa é ter um certo cuidado ao contar aquela história para não contar só a sua história”, Joel concluiu.

*Imagem de capa: Divulgação/É Tudo Verdade

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