Por Clara Viterbo Nery (claravnery@usp.br)
Há 40 anos, um dos cineastas mais aclamados do cinema deixava a vida com um legado criativo extenso. George Orson Welles, responsável por obras clássicas como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e O Terceiro Homem (The Third Man, 1949), construiu uma filmografia singular durante toda a sua carreira, mas, mesmo assim, deixou sonhos para trás. It ‘s All True (É Tudo Verdade, 1942), obra de Welles que foi filmada em território brasileiro, é conhecido mundialmente como o filme inacabado do diretor, com inúmeros registros desconhecidos pelo público — até agora.
Novos rolos de filmes das gravações feitas na década de 40 foram redescobertos na University of California, Los Angeles (UCLA), trazendo imagens inéditas dos episódios “perdidos” da obra de Welles. Os 200 mil pés de nitrato em filme encontrados pertencem à Paramount, que já revelou sobre o processo de revitalização e digitalização das imagens.
Em sessão de debate no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, Carlos Augusto Calil, presidente do conselho de administração da Sociedade Amigos da Cinemateca, e Catherine L. Benamou, a maior referência mundial sobre a produção de Orson Welles, conversaram sobre o legado do filme inacabado. Durante o debate, Catherine respondeu perguntas do público e esclareceu o que já é de conhecimento sobre as “novas” imagens.
O processo de revitalização dos rolos de nitrato, por decisão da empresa, não está passando pela etapa de cópia de segurança e, sim, indo diretamente para a digitalização. Catherine explica que esse processo seria essencial para a segurança da preservação da obra, mas espera que, pelo menos, as filmagens fiquem disponíveis para o público e não sofram prejuízos graves.
Dos 200 mil pés de nitrato encontrados, cerca de 8 mil já foram digitalizados, segundo Catherine. Já se sabe, embora ainda não estejam integralmente disponíveis para análise dos pesquisadores, que essas novas imagens trazem gravações íntimas do carnaval do Rio de Janeiro e da visita de Welles à Ouro Preto. Tais gravações seriam essenciais para reconstituir o percurso do diretor no Brasil e devem trazer uma nova perspectiva sobre a realidade que foi gravada na época.
A sessão de debate foi seguida pela exibição do documentário É Tudo Verdade – Baseado num Filme Inacabado de Orson Welles (It’s All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles, 1993), realizado por Bill Krohn, Myron Meisel e Richard Wilson.
É Tudo Verdade: Um filme e um legado
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo estadunidense buscava aumentar a sua zona de influência e as suas alianças com os países da América do Sul. O cinema, então, cresceu em importância como uma das ferramentas de aproximação entre culturas, o que fez que o governo estadunidense investisse muito dinheiro nessas produções. Orson Welles, que na década de 1940 já era visto como um grande ator e diretor, foi um dos selecionados para esse projeto, pois acreditava-se que todo o seu talento poderia ser favorável à política de boa vizinhança com os países do sul.
Acontece que Welles, na época já conhecido pelo sucesso de Cidadão Kane, era uma figura um tanto polêmica para a indústria cinematográfica e o projeto, que deveria ser uma propaganda, acabou se tornando uma grande peça do cinema etnográfico.
A história de É Tudo Verdade (It ‘s All True) nasceu da ideia de Orson Welles de trazer uma nova perspectiva da cultura latinoamericana. Os ideais hollywoodianos criados sobre o Brasil se distanciavam muito do que o diretor encontrou no país, o que o fez seguir em uma jornada de trazer representações de pessoas e comunidades marginalizadas do ponto de vista estrangeiro.
A obra original de Welles seria dividida em três episódios: My friend Bonito, filmado no México, The story of samba (Carnaval) e Four men on a raft (Jangadeiros), ambos gravados no Brasil. No entanto, devido a problemas com a produtora do filme e a falta de crença na nova visão do projeto, É Tudo Verdade nunca chegou ao fim das gravações e grande parte do material ficou perdido por anos, especialmente as fitas de Carnaval.
Todo o material que se tinha de Welles e da sua jornada pelo território sul-americano foi utilizado para a reconstituição da obra não finalizada em um documentário da década de 1990. É Tudo Verdade – Baseado num Filme Inacabado de Orson Welles traz parte do material de 1942, reencontrado em 1985, que conta a história dos jangadeiros.
A viagem de quatro jangadeiros do litoral cearense ao Rio de Janeiro para reivindicar melhorias nas condições de vida dos pescadores não é apenas uma peça inventada por Welles, mas, sim, a reinterpretação de um fato histórico. Em 1941, quatro jangadeiros cearenses, Manoel Jacaré, Jerônimo, Manoel Preto e Tatá, saíram de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro com o intuito de entregar suas reivindicações ao presidente Getúlio Vargas. O movimento foi tão marcante que atraiu a atenção da imprensa, do público e, claro, de Orson Welles.
O cineasta norte-americano ficou fascinado pela história e planejou um filme que ao mesmo tempo encenou a viagem dos quatros jangadeiros e introduziu uma ficção amorosa na história. O projeto teve a participação dos próprios cearenses, mas a morte de Manuel Jacaré durante as filmagens impediu a conclusão do projeto.
Com o documentário dos anos 1990, Bill Krohn, Myron Meisel e Richard Wilson, realizadores do projeto, buscavam não apenas trazer a remasterização da obra, como também trazer entrevistas dos parentes vivos de todos os participantes da gravação de Welles. Entre depoimentos, eles destacam o quanto aquelas filmagens foram importantes não só para a visibilidade da história daqueles quatro jangadeiros, mas influenciaram também em uma nova perspectiva sobre as condições de vida do seu povo.
*Imagem de capa: Reprodução/TheMovieDB