Por: Maria Clara Rossini (mariaclararossini@usp.br)
Judeus perseguidos e quase exterminados, destruição arrasadora da África, negros escravizados, chineses totalmente marginalizados e o mar Mediterrâneo drenado. Mesmo que Hitler houvesse vencido a Segunda Guerra Mundial, esse nos parece um cenário um tanto exagerado e quase inimaginável inicialmente. Esse contexto de reviravolta em que o Eixo sai vitorioso da guerra é armado por Philip K. Dick no romance “O homem do castelo alto“(Editora Aleph, 2006).
O livro acompanha parte da história de diferentes personagens, todos interligados entre si de alguma forma, os quais vivem situações distintas que nos permitem entrar e conhecer aos poucos alguns aspectos dessa realidade. Por se passar em 1962, mesmo ano de lançamento do livro, os comentários e assuntos relacionados à guerra ainda eram muito latentes tanto no universo da obra quanto na realidade do próprio autor. Especulava-se que se o programa de mísseis da Alemanha tivesse sido desenvolvido, a humanidade estaria fazendo viagens para a Lua, Marte e Vênus poucos anos após a derrota dos Aliados.
Ao invés de Estados Unidos e União Soviética, desta vez uma espécie de Guerra Fria e disputa por áreas de controle no mapa é travada por Alemanha e Japão. Planos de bombardeamento e instabilidade política são alguns dos aspectos montados para que o cenário pareça o mais plausível e semelhante ao o nosso, dando pistas para um final reflexivo.
Depois que o leitor já está confortável e situado na história, o elemento mais interessante do enredo entra em cena: “O gafanhoto torna-se pesado“. Trata-se de um livro, lido por alguns personagens e que se tornou um sucesso de vendas, o qual especula uma realidade em que os Estados Unidos teria vencido a guerra. Esse livro fictício traz uma metalinguagem riquíssima e atrai ainda mais nossa atenção. O tal “homem do castelo alto” faz referência ao autor do “gafanhoto”, o qual moraria em uma espécie de castelo ou forte muito protegido e isolado para se manter a salvo dos nazistas.
A brincadeira entre realidade e ficção, reforçada pela presença da metalinguagem, é o verdadeiro sentido da obra. Philip K. Dick se tornou um clássico da ficção científica por trazer questionamentos como “o que é realidade?” para seus livros, pergunta que incomodava ele próprio.
O final de ambos os livros são misteriosos: o do livro fictício pelo fato de a personagem que está lendo-o não revelar seu conteúdo, e o do livro real por nos fazer questionar nosso mundo. Será que o contexto bolado no romance é tão distante ou exagerado assim? Será que a imposição das diferenças sociais devido às etnias também não está presente atualmente? As últimas páginas são livres para interpretações, em que uma única frase pode desestabilizar o leitor, fazendo com que ele confunda realidade e suposição. Ironicamente, é a tentativa de explicar O gafanhoto torna-se pesado que levanta as dúvidas sobre O homem do castelo alto. Afinal de contas, são as perguntas que tornam a leitura muito mais fantástica.