Por Eduardo Passos
Dentre as diversas pautas que ocupam os noticiários esportivos da atualidade, poucas são tão presentes quanto as reclamações sobre o calendário do futebol nacional. Seja pelo excesso de partidas que os clubes — principalmente os da primeira divisão — fazem ao longo do ano, ou pelo curto espaço entre os jogos, é comum ver treinadores e jogadores se queixarem da pesada carga de disputa, ao passo que, ao longo da temporada, lesões vão vitimando exaustos atletas.
Se a situação é ruim, não foi com a introdução do Campeonato Brasileiro em pontos corridos, em 2003, que ela piorou — pelo contrário. Seja por fórmulas bizarras ou pelo excesso de disputas desnecessárias, o futebol brasileiro teve, no ano de 1994, uma das piores agendas de jogos de sua história. No final do ano, o Grêmio e o Juventude acabaram sendo as maiores vítimas dessa desorganização, jogando mais de 20 vezes em 17 dias, com destaque para o domingo com três jogos dos gremistas.
A situação caótica do calendário gaúcho começou a se desenhar ainda em 93, quando a federação local decidiu que era necessário enxugar o estadual, que contava com 24 equipes na primeira divisão. Apesar da quantidade elevada de postulantes, a edição daquele ano, vencida pelo tricolor gaúcho, foi breve, e durou cinco meses. A FGF, entretanto, preferiu modificar a fórmula para o ano da Copa, elevando de 14 para 44 as datas do torneio.
Como se já não bastasse o campeonato quase quatro vezes maior, Porto Alegre ainda veria seus times disputando a Copa do Brasil, Campeonato Brasileiro, Copa Conmebol e o sui generis Torneio de 25 Anos do Beira-Rio, contando com a dupla da capital, o Peñarol e a Seleção da Nigéria. Em meio à confusão, nem a Copa do Mundo seria capaz de parar o Gauchão, que seguiria a pleno vapor durantes os meses de junho e julho.
Com a desistência do Novo Hamburgo, o Interminável, como foi apelidado o estadual de 94, começou tardiamente e somente em 5 de março viu o São Luiz de Ijuí iniciar os trabalhos, com um 3 a 0 sobre o Inter de Santa Maria. Dada, também, a longa disputa em turno e returno, o torneio seguiu apressado e, ainda no mês de abril, o Internacional já fazia quatro jogos em dez dias.
A necessidade de desafogar a inchada elite gaúcha gerou, portanto, a urgência da FGF em transferir diversos clubes para o nível inferior — o que seria, naturalmente, feito através das regras de rebaixamento. O problema é que a Série B também sofria de superlotação e, em 1993, tinha 25 times na sua disputa. Como a intenção da Federação era manter 14 clubes na elite para 1995, naturalmente o cálculo indicava nove rebaixados. Porém, dada a superlotação, uma decisão inédita foi tomada: o lanterna seria delegado, diretamente, à terceira divisão.
Naquela metade da década de 90, o futebol brasileiro seguia a consolidação de suas competições nacionais frente ao regionalismo, e o foco dado à Copa do Brasil e Brasileiro crescia cada vez mais. O Colorado do Beira-Rio, entretanto, não mostrava sorte nesses torneios e, após vitórias apertadas sobre Paraná e Bahia, sucumbia ao Ceará na Copa. No Brasileiro, o time se contentou apenas com o 17º lugar. Paralelamente, o Tricolor da Azenha ficou no meio da tabela do campeonato, mas obteve o bicampeonato da Copa do Brasil e, dessa forma, carimbou seu desinteresse no exaustivo estadual.
Sem o maior rival na disputa e com a pressão por um título, o Inter se dedicou ao Gauchão ao longo da temporada e chegou no mês de dezembro liderando a competição, seguido pelo Juventude, de Caxias do Sul. Acontece que, àquela altura, o time de Caxias possuía ‘apenas’ 33 jogos e precisava, até o fim do ano, de realizar 11 certames. A situação também era semelhante para o Imortal, que devia, ainda, 10 jogos. Dessa forma, iniciou-se um dos meses mais bizarros e intensos da história do futebol nacional, com maratonas extensas para ambos os times.
Já sem pretensões, o Grêmio enfrentou, nos primeiros dias do mês, de acordo com a Rec.Sport.Soccer Statistics Foundation, o Santanense, Guarany de Cruz Alta, Inter de Santa Maria e o Caxias. Paralelamente, a equipe do Alfredo Jaconi encontrou, em um só dia, o Guarany e o Ypiranga, visitando, dois dias depois, o São Paulo de Rio Grande e, no dia seguinte, o Pelotas.
Apesar do raríssimo fato, o Juventude não foi o primeiro clube a realizar dois jogos no mesmo dia e, ainda no mês anterior, o São Paulo paulista enfrentava situação semelhante, fazendo uma rodada dupla contra o peruano Sporting Cristal e o próprio Grêmio. O time de Luiz Felipe Scolari, porém, teria que encarar situação mais extrema, e, no dia 11 dezembro os torcedores que aguentaram a sensação térmica de 48º C puderam ver três jogos em sequência do clube.
Com ingressos variando entre R$1,50 e R$3, as bilheterias do Olímpico foram abertas integralmente, na expectativa que a curiosidade atraísse os porto-alegrenses de folga. Dentre as facilidades, havia até mesmo a cozinha funcionando em horário estendido, com três giros de almoço. Ainda assim, o público foi de 758 presentes, com 247 pagantes e 511 pessoas obtendo entrada a partir de cartelas carimbadas do telebingo de Natal.
Para manter o time principal concentrado para o duelo das 18h, contra o Brasil de Pelotas, o Grêmio dividiu reservas e juniores ao longo dos duelos de 14h e 16h. Com seis elencos compartilhando as instalações, o jeito foi abrigar atletas nas arquibancadas, junto às poucas testemunhas da tarde. Ao fim, a equipe da casa empatou com o Aimoré por 0 a 0 e venceu Santa Cruz e Brasil, por 4 a 3 e 1 a 0, respectivamente.
Não bastasse o caos gremista, o domingo contou com a derrota do alviverde no clássico Ca-Ju e com empate do Internacional contra o Santanense. Assim, faltando cinco dias para acabar a competição, o Colorado liderava com 61 pontos em 41 partidas, seguido pelo Juventude com 51 pontos em 38 pelejas.
Sem descanso, a equipe caxiense percorreu mais de 200 km e, já na segunda-feira, perdeu para o Passo Fundo por 2 a 1. Um dia depois, mais 270 km e a redenção com vitória sobre o Inter de Santa Maria, enquanto o Colorado de Cláudio Duarte vencia o Veranópolis em casa. Com a quarta-feira livre, o Juventude adicionou mais 300 km à conta e, na quinta-feira, enfrentou os líderes da competição. Vitória de 1 a 0 para os visitantes.
Ao fim daquela quinta-feira, o verde-e-branco já chegava aos 57 pontos, com mais três jogos até o sábado. O Inter, por outro lado, tinha 64 e o Gre-Nal por completar. No dia seguinte, mais 230 km, e empate entre Juventude e Glória, em Vacaria. Desse modo, o Papo precisaria contar com a derrota do Inter para o maior rival, além de vencer seus últimos compromissos.
Sem tempo para descansos, o Juventude seguiu para o último dia de disputas a fim de fazer o sexto e sétimo jogos da semana — pela segunda vez jogando duas vezes na mesma data. No sábado, então, a equipe não foi capaz de manter o ritmo de disputas e empatou com o Veranópolis na abertura da rodada dupla no Alfredo Jaconi, de modo que o título tornava-se impossível. Apesar do esforço hercúleo em vão, o time ainda deu uma última honra à sua torcida e goleou por 5 a 1 o Santa Cruz, logo após terminar a partida que sepultava suas intenções no torneio.
Por fim, o Interminável chegou à conclusão com o 324º Gre-Nal da história. Sem deixar de lado as peculiaridades, o Colorado entrou em campo já campeão, mas, com a vitória de 4 a 1 — gols de Leandro (2) e Leto (2) para o Internacional e Ayupe para o Grêmio — a equipe ainda somou à conta o título da Copa ZH 30 Anos. O campeonato teve seu desfecho em um Olímpico quase vazio, ao passo que o São Paulo era duplamente rebaixado de uma vez, de modo a disputar a terceira divisão em 1995.
O jornal Zero Hora relatava, no início do ano, que cartolas locais viam no extenso Gauchão daquele ano uma oportunidade de atingir prestígio “semelhante ao Italiano”, globalmente dominante na época. Se o prestígio não veio, o público também não, e a média do torneio girou na casa de 800 pagantes por jogo. Por outro lado, porém, a notoriedade da exótica competição permaneceu, e até hoje o Interminável segue povoando o folclore do nosso futebol.