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O preço do preso

Por Laura Castanho (laura.castanho.c@gmail.com) Celas lotadas. Homens amontoados uns nos outros. Comida vencida. Banheiros entupidos. Sujeira. Redutos de violência. Brigas entre facções. Punições corporais. Massacres periódicos. As cenas associadas às prisões brasileiras pela opinião pública trazem quase sempre uma narrativa de fracasso, de algo irreparável. Os índices de criminalidade não parecem diminuir, seja na rua …

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Por Laura Castanho (laura.castanho.c@gmail.com)

Celas lotadas. Homens amontoados uns nos outros. Comida vencida. Banheiros entupidos. Sujeira. Redutos de violência. Brigas entre facções. Punições corporais. Massacres periódicos.

As cenas associadas às prisões brasileiras pela opinião pública trazem quase sempre uma narrativa de fracasso, de algo irreparável. Os índices de criminalidade não parecem diminuir, seja na rua ou no telejornal. O Estado é deixado sobrecarregado e se vê como se abandonado à própria sorte: todo mês, tem que sustentar uma massa de pessoas equivalente à população de Aracaju, tendo recursos ou não. E ainda evitar rebeliões, prevenir fugas, executar a pena… Em meio a esse caos punitivo, muitos veem na privatização do sistema carcerário uma solução viável para todos os envolvidos. E, na verdade, isso já é feito no Brasil há 17 anos. A questão é: funciona?

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Presos em Pedrinhas, no Maranhão. (Foto: Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo)

Raízes

A ideia de privatizar o sistema penitenciário surgiu em meio ao neoliberalismo inglês, durante a gestão Thatcher, nos anos 1980. Rapidamente se espalhou para os EUA, onde a população carcerária se expandia como nunca antes visto em função da política de “guerra às drogas”. A premissa básica era criar uma colaboração entre os setores público e privado que satisfizesse a ambos: o Estado ganharia prisões mais seguras e de melhor qualidade, e as concessionárias garantiriam cerca de 30 anos de consumo incessante de seus serviços, correspondentes à duração média desse tipo de contrato uma estabilidade financeira invejável entre o empresariado.

A execução, em teoria, é simples. Há dois tipos de privatização carcerária: a cogestão e a parceria público-privada (PPP). No primeiro, a empresa é contratada para gerir a penitenciária e fornecer a maioria dos serviços disponíveis aos presos, como assistência médica e social. Os agentes penitenciários, responsáveis pela vigilância interna do local e pela manutenção da disciplina, não são escolhidos por meio de concurso público como ocorre nas prisões do Estado —, mas pela própria empresa, que também os treina. Já a PPP inclui tudo isso e dá um passo além: nesse modelo, a empresa também se encarrega do planejamento e construção do estabelecimento. Em ambos os casos, cabe ao Estado fiscalizar as prisões e pagar a elas uma taxa fixa por cada detento, mensalmente. Ele também é responsável pelo transporte eventual dos presos e pela vigilância externa do presídio, além de manter um número variável de agente públicos dentro do mesmo.

Dilemas

É nessa divisão de tarefas que começa a polêmica em torno do modelo privado. “As cogestões e as [prisões] privatizadas no Brasil são inconstitucionais. Não têm base na Constituição brasileira nem na lei de execução penal”, afirma o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da ONG Pastoral Carcerária. Patrick Cacicedo, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da DPESP, concorda: “Há funções que são indelegáveis. O poder de punir é exclusivo do Estado.“ Também não enxerga nada de positivo no modelo: “Nos EUA, esse fenômeno [privatização] foi o impulsionador do encarceramento em massa. No Brasil, atualmente, ele é a cereja no bolo da tragédia.”

O Brasil adotou a cogestão pela primeira vez em 1999, na penitenciária industrial de Guarapuava, no Paraná. Desde então, conta com 52 unidades privatizadas que se distribuem por 11 estados, segundo dados do Infopen. As concessionárias nacionais, de modo geral, começaram como empresas de segurança para presídios e se expandiram para oferecer serviços de cogestão conforme o nicho desabrochava no país. Elas tenderam a regionalizar-se: na região Norte, há a Umanizzare; no Nordeste, a Reviver e a Yumatã, e por aí vai. O estado de São Paulo, surpreendentemente, não possui nenhuma unidade privatizada, ainda que já o tenha planejado. “Já houve uma tentativa de construir um complexo pra 11 mil pessoas aqui na grande São Paulo e lançaram algumas chamadas públicas”, conta Cacicedo, “mas só os primeiros documentos de planejamento já foram de pronto rechaçados pelo Ministério Público, tamanho o número de ilegalidades que isso tinha.“

Custos

À primeira vista, as vantagens oferecidas pelo sistema privado são bastante atraentes, especialmente no Brasil onde a população carcerária cresceu 591% desde 1990 e não é raro a ocorrência de incidentes como os massacres de Carandiru (SP) e Pedrinhas (MA). O consórcio GPA (Gestores Prisionais Associados), responsável pela PPP de Ribeirão das Neves (MG), afirma em seu website “ir além” do mero cumprimento da lei de execução penal ao “inovar, integrar e criar um ambiente transformador”. A construção da prisão foi orçada em R$ 350 milhões e o projeto foi apontado pelo senador Aécio Neves (PSDB-MG) como “algo que, mais uma vez, nasce da ousadia, do planejamento e da eficiência do governo de Minas, mas que pode, no futuro, atender a todo o país”.

Essa proposta presídios privados por todo o país é ousada não somente na medida em que prevê uma reforma radical no sistema carcerário inteiro, mas também em seu custo prático: dificilmente haverá recursos para tamanha empreitada. Enquanto nas prisões estatais o preso “custa” cerca de R$ 1.300 a R$ 1.700 por mês, em Ribeirão das Neves esse valor gira em torno de R$ 3.000 por mês. No complexo Nova Itajá (SC), que adota modelo de cogestão, ele chega a R$ 4.500 mensais, de acordo com a CPI do sistema carcerário brasileiro. “Existe um discurso mentiroso que, ao privatizar, sai mais barato. Você pega os contratos e vê que há um custo a mais pra cada preso, de R$ 1.000 a R$ 1.500 a mais quando é privatizado”, afirma o padre Silveira, enfaticamente. Em um relatório publicado em 2014 sobre o tema, a Pastoral Carcerária caracterizou o valor de R$1,8 bilhão correspondente ao custo mensal para manter os presídios brasileiros, caso todos fossem privatizados como “impraticável”.

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(Arte: Fredy Alexandrakis/Jornalismo Júnior)

André Kehdi, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), nota outro aspecto do lado financeiro do debate: “O lucro se faz não só pelo seu faturamento como pelo seu baixo custo. Quanto menor esse custo [operacional], maior o lucro. Só que esse custo lida diretamente com os direitos da pessoa presa”, explica ele. “Você tenta dispor do mínimo de pessoal possível, você tenta dar a comida mais barata. Então, é uma lógica que vai levar a uma maior violação de direitos num lugar que já é impossível pensar nisso.” Padre Silveira dá um exemplo concreto: “Os agentes penitenciários das privatizadas ganham um salário de R$1000 a R$1500, enquanto que no Estado é de R$4000. Tem gestão compartilhada no Brasil que, por ano, chega a uma rotatividade de 70% dos funcionários, que são mal preparados e mal remunerados.”

Ética

Mesmo nos EUA, que ostentam 157 mil vagas no sistema prisional privado, somente 7% da população carcerária se encontra acomodada nas prisões “pró-lucro” (for-profit), como são chamadas. Lá, a alternativa privada nunca foi pensada como substituto total, mas como uma espécie de “complemento” ou “enxerto” no próprio sistema. Ainda que em escala menor, no entanto, a questão ética do negócio parece encontrar entraves. “Nenhuma empresa privada entra no mercado se não para obter lucro”, argumenta Kehdi. “O sistema penitenciário é a forma mais violenta que o Estado tem de intervir na vida do indivíduo porque o priva da liberdade. E isso, que é uma coisa absolutamente sensível, não pode ser colocado nas mãos privadas. No momento em que você transfere esse interesse para uma seara em que o lucro pode existir, abandona qualquer ideia de humanidade ao lidar com essa questão. Privar as pessoas de liberdade não pode dar lucro a ninguém.”

Quando a política entra em cena, o tema se torna ainda mais espinhoso. Pensando nas relações bastante amistosas entre o empresariado e os congressistas no Brasil, Cacicedo antecipa algumas práticas que podem surgir muitas das quais já foram vistas nos EUA: “As cláusulas contratuais preveem lotação mínima os presídios não podem ficar vazios —, então, veja com que facilidade eles [os empresários] conseguiriam, no Congresso Nacional, instituir leis que aumentassem as penas. O empresariado nacional vê muito claramente esse mercado em expansão e tem interesse nele. É um novo mercado, e um mercado tristemente crescente, então eles estão vislumbrando oportunidades de lucro num investimento que é muito certo.”

Vivências

Na teoria, portanto, a privatização se mostra relativamente cara, controversa e coleciona opositores em vários setores. Na prática, ela representa uma política tímida, porém significativa e presente que molda as vidas dos mais de 20 mil detentos que se estimam integrar as unidades que seguem cogestão ou PPP no país. Afinal, no que a vida destes difere da dos outros 600 mil, que compõem o sistema público?

Mesmo em 2016, há poucos dados que respondam a essa questão. Um relatório elaborado pela Pastoral Carcerária, que visitou várias prisões nesses modelos, oferece uma visão parcial: ainda que a maioria das unidades acessadas tenham lotação adequada e maiores recursos, o confinamento dessas pessoas não se tornou mais humanizado. Frequentemente verificou-se que os detentos não tinham acesso a formas de comunicação com o mundo externo, incluindo os próprios familiares. Na “unidade de tratamento penal” da Barra da Grota (TO), notou-se o seguinte:

Todos os presos que já passaram por outras unidades prisionais e agora se encontram nesta privatizada foram unânimes em dizer que preferiam estar num presídio do Estado. Perguntado qual o motivo, vez que ali na privatizada eles têm kit higiene, roupas pessoais e roupa de cama, alimentação, espaço melhor e não tem superlotação. A resposta foi a mesma. Aqui a repressão é maior. Não temos nenhuma liberdade. A nossa família passa por uma revista muito mais rigorosa que nas unidades do estado.

No complexo de Ribeirão das Neves, já citado, isso não é exceção:

Os presos se mostraram muito insatisfeitos com o tratamento dado na unidade. A maioria gostaria de voltar para as unidades prisionais do Estado e nos pediu ajuda para transferência. Todo o atendimento com os técnicos é realizado com os presos algemados, isto é, atendimento psicológico, atendimento com a assistente social, atendimento com o médico/enfermeira e atendimento com o advogado/a.

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Detentos trabalham em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. (Foto: GPA)

Outros problemas que constam no documento incluem ausência de banho de sol garantido por lei , despreparo por parte dos agentes, contratos vencidos, suspeitas de corrupção e atrasos na remuneração dos presos, nos casos em que eles se encontravam empregados dentro da unidade.

Nenhuma dessas irregularidades se comparam, no entanto, ao caso do presídio de Pedrinhas (MA), que estourou na mídia com a circulação, pela internet, de fotos e vídeos de detentos sendo decapitados, mortos de outras formas e torturados durante uma série de rebeliões em 2013. Somente nessa ocasião, foram 22 mortes, seguidas por mais 63 ao longo daquele ano. Todos os guardas da unidade eram terceirizados. “A imprensa nunca divulgou a série de serviços privados que tem dentro daquele estabelecimento. Nunca se falou que a gestão da segurança era privada. É um exemplo do que se espera de um presídio privatizado”, diz Cacicedo. Kehdi é pontual: “Pedrinhas não é a exceção. Enquanto o sistema de justiça estiver embasado na punição como solução dos conflitos, a gente vai ter mortes.”

Lei

Desde 2011, tramita no Senado o projeto de lei (PLS) 513, que pretende regulamentar o modo como são feitas as PPPs no país. De autoria do senador Vicentinho Alves (PR-TO), o projeto se mostrou controverso ao decretar a obrigatoriedade do trabalho do preso na penitenciária privada, sob pena de remetê-lo de volta ao sistema público caso ele se recuse a fazê-lo. O texto afirma que o concessionário terá “liberdade para explorar o trabalho dos presos” e para “utilizar ambientes do estabelecimento penal para a comercialização de produtos e serviços oriundos desse trabalho”.

Ele legaliza um sistema de superexploração do trabalho do preso”, traduz Cacicedo. “A Constituição não permite trabalho forçado. É uma forma escancarada de lucro.” Kehdi segue: “A proposta da PL prevê que não vige pros contratos de concessão desse esquema várias limitações, como jornada de oito horas por dia ou adaptações para pessoas que têm dificuldade de trabalhar por conta da idade. É óbvio que eles querem ter mão de obra barata.” A lei de execução penal já prevê que o preso seja remunerado com ¾ do salário mínimo.

Outro ponto polêmico da lei foi a previsão de a própria empresa fornecer assistência jurídica ao preso, o que Kehdi enxerga como “ilógico”. Cacicedo desenvolve: “Diante de uma situação de exploração ou abuso, advogado que vai pleitear os direitos da pessoa presa é pago pelo próprio violador desse direitos.” Ele também contextualiza o momento e especula em torno do propósito da lei: “Hoje, a privatização do sistema penitenciário está sendo feita sem lei especifica, apenas através de contratos com o governo. Essa lei quer dar maior segurança jurídica para o empresariado. Querem uma segurança de lucro, sem riscos de anulação.”

A PL está, desde março desse ano, em sua fase mais crucial da tramitação até agora, na qual é escolhido um senador para relatá-la. O responsável por isso é Paulo Paim (PT-RS), que vem promovendo debates sobre o tema no plenário do Senado e confessou não ter opinião formada.

Caminhos

É quase impossível falar em alternativas à privatização presidial sem esbarrar nas mazelas do sistema prisional como um todo, admitido por muitos como falido. “Nós não temos a mínima condição de recuperar ninguém nesse sistema. Eu sou favorável a diminuir ao mínimo possível o sistema privativo de liberdade”, diz o delegado aposentado Manoel Ribeiro Jr. Ele não está sozinho nessa pauta: em 2014, foi lançada a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, boletim assinado por 13 entidades ligadas a direitos humanos. Ela propõe o esvaziamento do sistema carcerário através de ações estratégicas, da descriminalização do porte e tráfico de drogas à suspensão de verba para a construção de mais presídios passando pela revogação da privatização.

Kehdi é incisivo em seu ponto de vista: “O sistema carcerário não tem solução. Ele é uma coisa contra a qual a gente tem que lutar dia e noite. Tentar melhorar isso é perda de tempo. A gente tem que concentrar energia em tirar pessoas de lá. É a agenda do desencarceramento mesmo.” Ele aponta a nova lei de drogas e a cultura punitivista propagada pela mídia como causas do encarceramento em massa no Brasil, e denuncia falhas fundamentais no Judiciário: “Eu acho que a lei não resolve, nem nunca vai resolver, enquanto ainda tivermos um pensamento retrógrado no Judiciário. A cultura do punitivismo é de longe a mais fácil de vender.”

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Debate sobre a privatização de cárceres no Senado, em 7 de março. (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Ambos concordam que, no crime, vale mais tratar a doença do que o sintoma. “É difícil você falar em ressocialização quando a pessoa nunca foi socializada em primeiro lugar, nunca teve uma oportunidade de estudar, de ter convívio familiar”, afirma Ribeiro Jr. “Se você atacar as causas, a criminalidade vai diminuir. Se não, você vai ficar prendendo as pessoas e os crimes vão continuar acontecendo. A verdade é que o país tem que encarar várias chagas dele. A nossa desigualdade social é uma das maiores do mundo. Menos de metade do país tem saneamento básico”, atesta Kehdi. “Não tem que ter prisão. Enquanto tiver prisão, vai ter violação.”

 

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