Ouvir música nunca foi tão fácil quanto hoje: basta tirar o celular do bolso, abrir um aplicativo, e uma quase infinita quantidade de opções se encontra à disposição. A internet e o streaming trouxeram possibilidades que revolucionaram todos os aspectos da indústria fonográfica, seja pelo lado dos produtores, seja pelo dos consumidores. Nesse contexto, porém, um gênero tão importante e influente no passado acabou por perder grande parte de seu protagonismo: o álbum.
Uma série de números destacam essa perda de importância: segundo a Recording Industry Association of America (RIAA), dos 50 álbuns mais vendidos na história nos Estados Unidos, apenas um deles foi lançado depois da virada do século.
Já rankings da Billboard mostram que, enquanto 168 álbuns passaram pelo Top 10 da Billboard 200 no último ano, apenas 66 músicas estiveram no Top 10 da Billboard Hot 100 nesse mesmo período de tempo. Isso indica que é mais difícil para um álbum se manter popular do que uma música única.
Para localizar melhor o álbum em meio aos singles e playlists que hoje em dia reinam nos serviços, é preciso contextualizar a evolução do suporte e entendê-lo como estando sob influência de dois principais agentes: os artistas e a tecnologia.
O disco de vinil
O disco de vinil foi o sucessor dos discos de goma-laca, famosos por serem a mídia reproduzida pelos gramofones. O vinil assume o posto de base da indústria fonográfica a partir do fim dos anos 1940, sendo comercializado em dois tamanhos principais: os compactos, com 17cm de diâmetro e no máximo duas músicas por lado; e o long play (LP), com 30cm de diâmetro e capaz de reproduzir entre 20 e 30 minutos de música por lado.
Os álbuns, inicialmente, eram uma coletânea de faixas gravadas por um artista, geralmente publicadas em compactos, em um LP único. Cada artista ou banda tinha algumas músicas autorais e, para utilizar o restante do tempo disponível no disco, também incluía covers.
Esse modelo de álbum foi dominante até o início da década de 60, mais especificamente até 1965. Naquele ano, a banda inglesa The Beatles lançou Rubber Soul, seu sexto disco de estúdio, composto inteiramente de músicas autorais. As gravadoras dos Estados Unidos, vendo o sucesso de Rubber Soul no Reino Unido e seguindo seu costume de reproduzir as tendências de outras culturas ou países dentro dos padrões estadunidenses, passou a incentivar álbuns inteiramente autorais, no mesmo estilo dos Beatles. Poucos meses depois, em maio de 1966, a banda The Beach Boys, já muito famosa, lançou seu décimo primeiro disco, Pet Sounds.
Tanto Rubber Soul quanto Pet Sounds foram muito aclamados pela crítica e pelo público da época, e esse sucesso marcou o início do domínio dos álbuns autorais na indústria.
O álbum conceitual
O próximo marco na história dos álbuns acontece pouco mais de um ano depois, quando os Beatles lançaram seu oitavo álbum, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), que inaugurou a ideia do álbum conceitual. O disco não só possui uma produção bastante detalhada e que amarra as suas músicas ao redor de um tema principal, mas também é um projeto que transcende as faixas e contempla outras modalidades artísticas.
Na capa, os Beatles estão vestidos como a banda do Sargent Pepper, que dá nome ao projeto, em frente a uma plateia de figuras históricas ilustres — entre elas estão os próprios Beatles. Na contra-capa, os músicos encontram-se de costas. O fato de os personagens estarem dos dois lados do encarte cria a sensação de estar segurando o grupo musical fictício ao estar segurando o disco; é a história daquela banda contada por meio das músicas.
O álbum foi revolucionário pois oferecia uma experiência completa, desde a observação da capa e a leitura do encarte até a escuta das músicas e o entendimento de sua história. O ouvinte entra em contato com diferentes tipos de arte: artes visuais no geral; moda, vista nos figurinos da banda; e a música propriamente dita.
Guilherme Afonso, que estudou composição na UNESP e hoje atua como produtor e diretor musical da School of Rock Itaim-Vila Olímpia, destaca a importância de Sgt. Peppers, porém faz uma observação geral a respeito dos álbuns. “Tem um nicho de música popular que já estava trabalhando o álbum há um tempo, que é o jazz. Nos anos 1950 e 1960 já se tinha LPs com uma reunião de músicas que talvez tivessem uma conexão entre elas”, diz. “Não existia uma relação direta entre as músicas, até porque o jazz é música instrumental, mas existe sim uma conexão harmônica entre as músicas, todas as músicas conjugam de uma mesma ideia, que pode-se chamar de ‘jazz modal’”. Ainda que não fosse música erudita, o jazz não era muito ouvido pelo público geral, e por isso não teve tanto impacto no mercado quanto o disco da banda inglesa.
Como um dos principais e mais imediatos desdobramentos de Sgt. Peppers, surge um novo subgênero dentro do rock progressivo da época: as óperas rock.
Característicos por apresentarem uma narrativa sólida e coesa, com começo, meio e fim, similar a uma ópera, os discos de ópera-rock tiveram como pioneiro Tommy (1969), da banda The Who. O álbum, com mais de uma hora de duração, é composto por dois LPs, necessários para narrar a história longa e elaborada da obra. Depois de Tommy, ao longo dos anos 1970, houve uma larga produção de óperas-rock por uma grande variedade de artistas, muitas delas sendo aclamadas pela crítica: The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (1972), do David Bowie; Quadrophenia (1973), a segunda do The Who; e The Wall (1979), do Pink Floyd, talvez a mais famosa ópera-rock já composta.
O disco compacto (CD)
Até então, as revoluções nos álbuns vinham sendo lideradas pelos artistas, que romperam barreiras de forma e conteúdo em seus projetos. Em 1982, porém, foi lançado um formato que marcaria o início do fim do álbum como era conhecido até a década de 1970: o disco compacto (CD).
O ritual de se ouvir um disco de vinil — tirá-lo da embalagem, ver a capa, ler o encarte, ter de virar o lado do disco após determinado tempo — tornou-se obsoleto para o público geral, dados os avanços tecnológicos do CD. Eles eram menores, portáteis, tinham melhor qualidade de som e maior capacidade de armazenar áudio; os CDs de tamanho regular continham até 80 minutos de música, enquanto os Mini CDs tinham até 25.
Para os artistas, mesmo com todas as vantagens práticas que o CD trouxe, ele limitou as possibilidades visuais que o vinil tinha. Por ser menor, a capa de um CD não era capaz de conter tantos detalhes quanto a de um LP, assim como o encarte não podia ser tão extenso.
Além disso, um fator fundamental que o disco compacto inaugurou foi a possibilidade de pular as faixas facilmente. Nos discos de vinil, inserir a agulha no meio do disco de material delicado oferecia certo risco à integridade do arquivo impresso, e colocá-la precisamente no início de uma música não era tarefa simples. Com os CDs, pular músicas tornou-se tão simples quanto apertar um botão. Isso rompeu com a rigidez dos LPs de ouvir um álbum inteiro e em ordem, questão importante para os álbuns conceituais.
O CD, justamente por representar um grande avanço tecnológico, abriu um ramo na indústria fonográfica que antes não tinha grande importância: a pirataria. Através do processo que ficou conhecido como ripping, era possível extrair arquivos de discos e regravá-los em CDs virgens, ou seja, vazios.
As fitas cassete
O equipamento necessário para rippar um CD tornou-se acessível às massas a partir do fim da década de 1980, mas, antes dele, em um desenvolvimento tecnológico que ocorria paralelo à transição dos discos de vinil para os discos compactos, havia as fitas cassete.
O primeiro tocador de fita cassete foi lançado em 1968, e o formato até teve sua participação na produção da indústria fonográfica, mas nunca com o mesmo protagonismo que os LPs e CDs. Elas se destacaram, porém, entre artistas que não tinham contrato com grandes gravadoras ou o dinheiro necessário para investir em uma larga produção de vinis.
O gênero que mais fez uso das fitas foi o hip-hop. Elas tinham um custo bastante baixo e eram simples de gravar de forma caseira, motivo que fez com que os pioneiros do estilo musical na década de 1970 — DJ Kool Herc, Afrika Bambaata e Grandmaster Flash — optassem pelas fitas, que vieram a ser chamadas de mixtapes.
Poucos anos antes da chegada dos CDs, em 1979, ocorreu o lançamento do Sony Walkman, um tocador de fitas portátil, que pela primeira vez trouxe mobilidade ao ato de ouvir música e a possibilidade de utilizar fones de ouvido.
Após a revolução dos discos compactos em 1982, não demorou muito para que as vantagens tecnológicas dos CDs se encontrassem com as fitas. Surgiram, então, os CD players com leitor de fita cassete e a capacidade de gravar faixas do disco diretamente na fita. Com esse avanço, cada pessoa que comprasse um CD player desses poderia gravar sua própria mixtape juntando as músicas favoritas de diferentes álbuns. Essas mixtapes pessoais são as precursoras das playlists de hoje.
A internet e o MP3
Na década de 1990 o CD já dominava o mercado e o vinil tinha ficado para trás. Foi também nos anos 90 que os computadores e a internet começaram a ser acessíveis para maiores parcelas da população. Era por meio dos computadores que se rippava os CDs, mas não era possível copiar o arquivo de um disco e salvá-lo na máquina sem uma grande perda de qualidade, o que tornava a música quase inaudível. Essa realidade mudou apenas em 1997, quando foi criado o formato de arquivo MP3.
O marco representado pelo MP3 foi a possibilidade de compactar arquivos de áudio com uma perda de qualidade quase imperceptível. Com isso surgiram os MP3 Players, aparelhos análogos ao Walkman, porém muito menores em tamanho. Era possível armazenar uma grande quantidade de músicas, que podiam ser copiadas de CDs com facilidade usando os softwares de ripping.
Ainda que o uso do MP3 só fosse possível com computadores, a internet não exercia uma função tão importante nessa relação. Isso mudou em 1999, quando foi criado o Napster.
O Napster era um programa online gratuito de compartilhamento e download de arquivos MP3. Cada usuário podia tanto baixar arquivos de outros computadores quanto disponibilizar arquivos para outras pessoas terem acesso. Criou-se uma rede ativa de transmissão de músicas, o que elevou drasticamente a pirataria, dado que não se pagavam direitos autorais aos artistas pelo download.
A internet e o Napster foram definidores para o futuro dos álbuns. Fábio Pisca, diretor musical da School of Rock Higienópolis, entende que “a questão do conceito do álbum vai até o advento das trocas de arquivos digitais, do Napster, no início dos anos 2000”. Isso porque o álbum começou a perder seu aspecto físico e visual: sua disponibilidade online tornou desnecessário o consumo de discos.
Os serviços de streaming
O Napster não durou muito tempo. O programa saiu do ar em 2001 por conta de uma série de processos abertos contra a empresa. Um dos casos mais famosos foi o Metallica vs. Napster, aberto no início de 2000. Outro processo célebre foi o aberto pela RIAA, no qual a associação exigia US$100.000 por cada download feito no site.
Mesmo com todos os processos envolvendo o Napster e os programas inspirados nele — LimeWire (2000), BitTorrent (2001) e Pirate Bay (2003), por exemplo —, essas plataformas apresentaram o futuro da indústria. O único problema era que os artistas não recebiam nada pelo consumo de suas músicas. Como disse Gary Stiffelman, na época advogado de artistas como o rapper Eminem e a banda Aerosmith, ao The New York Times em 2002, “eu não sou contra à disponibilização da música dos artistas nesses serviços, só sou contra os lucros não serem distribuídos com eles”. O modelo que seria a solução para esse dilema foi apresentado em 2005, com o lançamento do YouTube: o streaming.
O YouTube não só introduziu ao público esse conceito, mas também à indústria, e poucos anos depois surgiu o streaming de músicas. O primeiro do tipo foi o serviço francês Deezer, lançado em 2007, e um ano depois veio o Spotify. Em 2011, a Google lançou seu próprio serviço, o Google Play, e em 2015 anunciou o YouTube Music (a empresa comprou os direitos do YouTube em 2006). As duas plataformas existem paralelamente, mas o projeto é que em alguns anos os dois serviços sejam unificados sob o YouTube Music. A Apple, outra grande empresa de tecnologia, lançou o Apple Music também em 2015. A marca já tinha o ITunes, uma plataforma de compra e download de músicas e entretenimento no geral, mas não propriamente streaming. O Napster, tendo sido vendido desde seu fechamento em 2003, hoje também é um serviço do tipo.
O problema da pirataria, que levou à criação desses serviços, é solucionado por eles. De acordo com um relatório publicado em 2018 pela Digital Media Association (DiMA), uma organização que reúne os principais serviços de streaming do mercado, a pirataria diminuiu pela metade nos Estados Unidos entre 2013 e 2018. Além da decadência da pirataria, outro setor que teve declínio em sua atividade foi o comércio de CDs físicos. De acordo com a International Federation of Phonographic Industries (IFPI), 2014 foi o ano em que o rendimento do mercado digital equiparou-se ao rendimento do mercado de discos físicos mundialmente e, desde então, vem distanciando-se cada vez mais.
O álbum, por sua vez, foi totalmente destituído de suas características físicas e tornou-se uma obra imaterial.
O álbum em 2020
O álbum conceitual, como era na década de 1960 e 1970, não existe mais. O conjunto de diferentes modalidades artísticas era a base daqueles discos, e hoje é inviável fazer uma produção de CDs em larga escala, tanto em função do custo quanto da falta de apelo da mídia física.
Quanto a essa questão, Guilherme pontua que “hoje, o que se chama de álbum conceitual, é mais relacionado à música, porque não há mais acesso ao material impresso”. Por outro lado, ele acredita que, hoje em dia, é possível um álbum proporcionar uma experiência melhor do que a dos LPs no século passado, em função das possibilidades que a tecnologia coloca à disposição. Caberia aos artistas reinventar o álbum conceitual, e ele cita como exemplo Lemonade (2016), da Beyoncé.
O disco, que possui pouco mais de 45 minutos de duração, foi acompanhado de um filme de 65 minutos que inclui todas as músicas do álbum, juntamente com uma interpolação de poemas recitados pela cantora e uma divisão em 12 capítulos, cada um com seu título particular. Além da inserção de diferentes modalidades artísticas na obra — música, poesia, moda, cinema e dança, para citar algumas —, a artista também transita entre diferentes gêneros musicais em cada faixa, desde R&B, hip-hop e soul até country, rock e blues. Em 2017 foi lançada uma edição limitada do álbum que inclui um vinil duplo e um livro com os bastidores da produção. Beyoncé classificou esse projeto como um visual album.
As playlists
Ainda que possam voltar ao prestígio do passado, os álbuns não estão mais sozinhos. As playlists revigoraram a ideia das mixtapes dos anos 1980 e tornaram-se protagonistas nos hábitos diários dos usuários. De acordo com o mesmo relatório da DiMA citado anteriormente, 54% dos usuários dos serviços de streaming afirmam que as playlists estão substituindo os álbuns em seus hábitos diários, e elas representam 50% de tudo que se escuta no Spotify — plataforma com maior número de assinantes atualmente. No relatório, afirma-se enfaticamente: “Playlists são o novo, e melhor, álbum”.
Talvez a característica mais apelativa das playlists seja sua praticidade. Ao ouvir música busca-se, essencialmente, o prazer, e uma playlist coloca o ouvinte em contato com suas músicas favoritas de forma mais eficiente que qualquer outro formato. Outro ponto que agrega valor a elas é a possibilidade de descoberta de novos artistas, principalmente com as montadas pelos serviços de streaming baseadas nos gostos do usuário.
O último marco na indústria foi o streaming, e tudo indica que as playlists são o próximo, ocorrendo agora. Enquanto isso, os álbuns seguirão existindo junto a elas, mas o lugar exato de cada um deles provavelmente será mais visível daqui a alguns anos, quando for possível dizer se a tecnologia das playlists de fato assumiu a posição dos projetos conceituais ou se eles foram capazes de se reinventar e restabelecer sua influência.