Por Guilherme Fernandes
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“As idéias são como peixes. Se você quiser pegar peixe pequeno, pode ficar na água rasa. Mas se você quiser pegar o peixe grande, tem que ir mais fundo.” – David Lynch
Narrativas inusitadas, quebras de expectativa e controvérsias marcam a trajetória do norte-americano David Lynch como diretor. A dificuldade de interpretar seus filmes, e um apurado senso estético deles, também. Lynch consegue criar atmosferas oníricas e sensoriais de grande prestígio artístico. Ele ainda consegue levar uma vida tranquila, feliz e, em diversos aspectos, “normal”, pouco se relacionando com suas histórias traumáticas e assustadoras.
As experimentações de Lynch já estão presentes em vários curtas que ele realizou na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, na Filadélfia, entre os anos 60 e 70. Antes de se envolver com cinema, ele estudou artes plásticas, algo fundamental para sua carreira, pois seus filmes são carregados de referências visuais e estéticas.
O primeiro longa-metragem, Eraserhead (Idem, 1977), foi escrito e dirigido por Lynch, algo comum em seus trabalhos, lhes conferindo ainda mais originalidade. Personagens bizarras (como um bebê completamente deformado) e situações esquisitas marcam o filme. A bem composta fotografia em preto e branco, que traz uma ambientação sombria, junto a uma refinada trilha sonora, reforçam os componentes surreais de Eraserhead. A história é um tanto incompreensível, mas é importante ter noção de que Lynch, pessoalmente, se diverte com a busca desesperada por sentido que as pessoas têm.
O primeiro sucesso comercial de David Lynch veio com O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980). Com o diretor trabalhando mais uma vez com uma excelente fotografia em preto e branco, este filme é um drama adaptado, que conta a história real do portador de uma doença que deformou 90% de seu corpo. O filme, sensível e humano (sem ser piegas), foi indicado a diversos prêmios internacionais, inclusive a 8 Oscars (sem ganhar nenhum!), além de ser muito aclamado pela crítica. Já Duna (Dune, 1984), filme de ficção científica com direção de Lynch, foi o oposto: um enorme fracasso de crítica e de público. Ele quis, inclusive, “apagar” sua participação, quando o estúdio lançou a versão estendida da obra, trocando seu nome nos créditos por pseudônimos. Superando o passado, Lynch obteve um estrondoso sucesso dali a poucos anos, com Veludo Azul (Blue Velvet, 1986).
No longa, Jeffrey (Kyle MacLachlan), de volta a sua pacata cidade no interior dos EUA e após encontrar uma orelha humana num terreno baldio, envolve-se numa investigação que o leva a um tentador e erótico mistério, em que participam uma perturbada cantora de boate e um sádico viciado. O enredo do filme é, em grande parte, linear.Marcas do estilo de Lynch, presentes em obras posteriores, aparecem em Veludo Azul, como os closes em detalhes da cena, revelando impressões que explicam certos fatos do filme. A foto da orelha num terreno baldio, acima, é um exemplo disso. As cores e a fotografia são bem trabalhadas, e junto a outros componentes, como a excepcional trilha sonora (na primeira de muitas parcerias com o músico Angelo Badalamenti), formam o universo da obra, com referências à estética noir. É também o primeiro trabalho de Lynch com a atriz Laura Dern, que atuaria em mais dois filmes dele.
É interessante notar como o diretor, nesse e em outros filmes, cria um universo verossímil e que poderia facilmente ocorrer dentro de nossa “noção de realidade”. Ele explora, por meio de vários recursos, as fronteiras da consciência de seus personagens, expondo a identidade pessoal (e muitas vezes perversa e insana) deles. Em Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990), Lynch potencializa esse jeito próprio de fazer cinema.
Um casal jovem e inconsequente, Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern), vivem uma intensa relação amorosa numa viagem excêntrica pelo sul dos EUA. Eles se deparam com personagens estranhos e situações não menos curiosas. Coração Selvagem é um filme de estrada bem acabado, com imagens sensacionais, trilha sonora excelente (mais uma vez, sob os cuidados de Angelo Badalamenti), atuações impecáveis e um roteiro que, na sua aparente banalidade, possibilita um leque de interpretações, como em quase todos os filmes de Lynch.
Em 1990, o diretor adaptou um roteiro (escrito junto com Mark Frost) para a televisão, iniciando a famosa série Twin Peaks, em que um agente do FBI investiga o assassinato de Laura Palmer. O sucesso foi enorme, tanto nos EUA quanto internacionalmente, o que fez da série um cult dos anos 90.
Até hoje, fãs mantém a obra viva, como a Wiki na internet que explica termos e mistérios da série, além das referências em filmes, música, quadrinhos, jogos e até em propagandas. Isso atesta como a série tornou-se parte da cultura popular americana. Em duas temporadas, a série durou até 1992, ano em que estreou o filme Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk With Me, 1992). Nele, Lynch esclarece pontos que antecedem a série, mostrando o que se passou na semana anterior à morte de Laura. Obviamente, mais um grande sucesso para a carreira desse excêntrico diretor.
Apesar de realizar um filme de “superação” (o simples e perturbante Uma História Real –The Straight Story, 1999), Lynch se destacou em sua série de filmes surrealistas, por ele escritos e dirigidos. Com construções não-lineares, sucessivas quebras de expectativa e aparição de sonhos nos enredos (muitas vezes confundindo, intencionalmente, o público), os filmes Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001) e Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006) estão entre os mais polêmicos de sua carreira. Cria-se um peculiar clima de suspense e mistério ao longo das obras. É comum também, entre as personagens desses filmes, a representação de atrizes em ascensão, que tentam promover sua carreira em Hollywood – a “fábrica de sonhos” do cinema mundial.
Lynch, particularmente nesses filmes, convida o público a participar de uma experiência artística. Se a oferta for aceita, serão proporcionados momentos inesquecíveis. Para Cidade dos Sonhos, as diversas reclamações do público após a estreia levaram o diretor a lançar uma lista de 10 pistas para se entender o filme. Isso criou várias teorias hilárias.Depois, o próprio Lynch desmistificou a obra, chegando a dizer, em um de seus livros, que não existiam razões concretas para certos elementos.
A combinação de recursos visuais e estéticos, característica do diretor, compõe o que muitos chamam de cinema plástico de David Lynch. Alguns também consideram que não é obrigação dele, enquanto roteirista e diretor, construir e apresentar histórias coerentes. Lynch, por outro lado, refuta interpretações psicanalíticas de suas obras, como a noção freudiana de que sonhos são realizações disfarçadas de desejos reprimidos. Ele baseia-se na poderosa e real capacidade humana de sonhar, para frustrar e encantar as pessoas. Isso provoca reflexôes na auto-consciência do público. Artistas como Lynch são fundamentais para provocar e arejar a “fábrica de sonhos” de Hollywood. Que ele e todos nós nunca sejamos impossibilitados de sonhar.