por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com
Todo fim de Oscar é uma polêmica só. Uns concordam, outros discordam, mas a verdade é que muitas vezes é possível prever quais serão os premiados. Com isso em mente, que analisemos com mais calma as escolhas da Academia, restringindo-nos mais especificamente aos ditos “Oscar-Bait Movies” (OBM).
Em tradução livre, OBM significa “Filmes-Iscas do Oscar”. Em outras palavras, filmes produzidos a cada nova temporada com a intenção de arrebatar o maior número de prêmios possível; com isso, a obra poderia ganhar maior projeção, obtendo um resultado mais expressivo nas bilheterias. Cunhado pela primeira vez numa resenha de Forte Apache (1948, de John Ford), o texto apenas apontava que a qualidade do filme não poderia passar despercebida aos votantes da Academia. Foi só a partir de O Franco Atirador (1978) – que iniciou suas sessões em circuito exclusivo para críticos, expandindo a escala nacional após nove indicações ao Oscar – que os estúdios começaram a perceber como poderiam lucrar às custas da premiação. Diante disso, com o passar dos anos, a expressão foi adquirindo cada vez mais uma terminologia negativa, referindo-se àqueles que, quase sem nenhuma pretensão artística, destacavam-se na noite de gala por se adequarem às convenções de “qualidade” da Academia. E eis então que chegamos aos tempos de hoje…
Para então traçar uma análise mais completa do assunto, decidi dividí-lo em três partes: 1) obstáculos burocráticos da Academia; 2) tendências de um OBM; 3) como isso se aplica à última cerimônia do Oscar?
Obstáculos burocráticos da Academia
Antes mesmo de se aprofundar no que esses filmes têm de mais ilustrativo, é preciso contextualizar o perfil das pessoas que de fato nomeiam os indicados e vencedores ano após ano. É evidente que generalizar blocos de profissão, gênero e raça a um mesmo juízo de valor nunca indicará com precisão a opinião individual. No entanto, isso pode servir como uma hipótese aos padrões de filme que vêm sendo consagrados pela Academia.
Fundada em 1927, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas via-se em sua origem como uma organização sindical dos trabalhadores da indústria cinematográfica. Com o tempo, para democratizar os interesses dos associados, a Academia foi deixando seu caráter político para promover unicamente o prestígio cultural do cinema. E aqui, democratizar é uma palavra capciosa, uma vez que, segundo um levantamento do jornal Los Angeles Times do começo de 2016, dos pouco mais de 6000 membros da Academia, 91% são brancos e 76% homens. Se considerarmos o reflexo disso nas indicações a Melhor Filme da última década, constata-se que os protagonistas são 90,5% brancos2 e 80,7% homens3. Mesmo que os números da Academia sejam apenas reflexo da falta de oportunidades que negros e mulheres sofrem na indústria, eles ilustram muito bem o tipo de filme mais aceito e com maiores chances de sair premiado: os protagonizados por homens brancos.
Ainda em números, uma pesquisa de 2012 do mesmo jornal aponta que a média dos votantes é de 62 anos. Assim, poucos são os filmes de apelo mais jovem lembrados, e quando são, normalmente se restringem às categorias técnicas. Não somente isso, como muitas das obras indicadas a Melhor Filme são de temáticas conservadoras e estéticas ultrapassadas, como acontece em O Discurso do Rei (2010), Tão Forte e Tão Perto (2011), Lincoln (2012), Philomena (2013) e A Teoria de Tudo (2014). É ainda relevante destacar que no sistema de indicações da Academia, cada categoria só pode ser nomeada pelo grupo que a representa (ou seja, atores votam em atores, diretores em diretores, e assim por diante), com exceção de uma: a de Melhor Filme. Considerando que cerca de 25% dos votantes são atores, o perfil de filmes citado fica ainda melhor justificado, uma vez que boas interpretações acabam (infelizmente) se sobressaindo a qualquer outro aspecto de análise. Além disso, muitos dos filmes indicados acabam abordando histórias de próprios atores, como é possível constatar em metade dos vencedores a Melhor Filme desta última década – O Artista (2011), Argo (2012) e Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014).
Se nada disso bastasse, é ainda mais triste observar como o sistema de votações na categoria de Melhor Filme não elege o melhor filme de fato, mas o mais bem-aceito. Os votantes fazem uma lista em ordem de preferência, que só dá vitória ao filme com metade dos votos mais um. Caso o número não seja atingido, exclui-se o pior candidato, e todos os votantes que o tinham elegido como Melhor Filme passam agora os votos ao segundo de suas respectivas listas. Esse processo de redistribuição dos votos ocorre até que se alcance metade dos votos mais um. Tentarei ilustrar…
Por que criticar Ponte dos Espiões? Porque ele é a perfeita definição de um OBM. Mas antes de especularmos casos particulares, que primeiro definamos as…
Tendências de um OBM
A primeira coisa que deve ficar clara é que não existe um manual declarando as características que um filme deve ter para ser considerado um OBM. Na verdade, só é possível identificá-lo como do tipo, observando as tendências premiadas anteriormente, e as espelhando nos competidores do ano em questão.
Alguns canais do YouTube até brincam com isso:
Posto isso, vamos a alguns dados…
Se analisarmos os gêneros das obras indicadas a Melhor Filme desta última década, das 53 indicadas, 26 (46,4%) configuram-se como drama. Expandindo às categorias de interpretação, o resultado é ainda pior, em 59,2% dos casos (71 das 120 indicações – uma vez que mais de um ator pode ser indicado pelo mesmo filme). A diferença fica ainda mais gritante se contrastarmos com o “segundo gênero mais popular” da Academia, a comédia. De 53 filmes, apenas 6 são de comédia (11,3%). E apenas 14 dos 120 candidatos (11,7%) são atores de comédia. Observa-se então, uma predileção por filmes “sérios”, como se o selo “drama” já os qualificasse acima de qualquer outro gênero; quando todos, na verdade, têm suas bombas.
Outro desses “selos” é a frase: “Baseado numa história real”. Em números, 23 dos 53 indicados (43,4%) a melhor filme e 53 dos 120 (44,2%) das categorias interpretativas. Considerando ainda que muitos filmes são anunciados como a “nova direção de Steven Spielberg” ou a “última atuação de Meryl Streep”, os elementos externos acabam se sobrepujando ao valor artístico da obra em si. Assim, ele acaba não sendo UM, mas sim o DE UM.
E quando me refiro a artístico, não quero dizer unicamente narrativo. Afinal, há também toda uma linguagem visual (fotografia, montagem, design de produção) que comunica tanto, como por vezes até mais, que as palavras em si. Curiosamente, nessa última década, o único Melhor Filme que não ganhou Melhor Roteiro (seja ele original ou adaptado) foi O Artista. Não digo que um bom roteiro não faça um bom filme, mas ele certamente não deve ser o único aspecto considerado.
Muitos outros fatores também podem ser indicativos: estreia nos últimos dois meses do ano, repercussão das dificuldades de produção, tematizar o contexto social atual e estrelar performances em situações degradantes. No entanto, assim como não é necessário apresentar tais tendências para se configurar como um OBM, o mesmo vale para o contrário. Um filme pode muito bem ter vários desses indícios e mesmo assim fugir de todas as convenções estipuladas. Como disse acima, não existe um manual que cataloga o que uma obra precisa ter para ser um OBM, não à toa o título dessa parte ser “tendências”. Mas para ilustrar melhor, vamos a alguns exemplos…
Em 2011, O Discurso do Rei conquistou 4 Oscars, incluindo o de Melhor Filme. Lançado, comecem as contas, em dezembro (1), o drama (2) baseado em uma história real (3) é protagonizado por um homem (4) branco (5) e aborda a dificuldade do rei George VI, que sofria de gaguice, em se comunicar (um dos maiores dilemas de qualquer ator, 6). Com uma respeitosa atuação de Colin Firth (7) e um elenco de apoio de peso (8), o filme levou consigo também o prêmio de Melhor Roteiro Original (9).
Não vou negar que O Discurso do Rei seja um filme certinho. O problema é que ele se contenta em ser só isso: um drama televisivo da BBC. Assim, mesmo com um roteiro bem-estruturado, ele não reverbera. Os elementos narrativos que compõem cada cena são tão semelhantes que, logo após o fim da projeção, é difícil lembrar que momento veio antes de qual. E por fim, o filme ainda tenta se manter num constante estado de urgência, tornando cenas banais e previsíveis em momentos hiperbólicos de emoção.
O filme tem seus pontos fortes, mas a linguagem conservadora, o roteiro esquemático e os excessos estéticos o tornam um drama esquecível; principalmente frente a concorrentes como A Origem, Cisne Negro e Toy Story 3. Quatro anos depois…
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) é a sátira cômico-dramática5 (1) de um homem (2) branco (3) que anos após seu sucesso na pele de um personagem de quadrinhos, tenta se reerguer na vida artística (4). Lançado em novembro (5), o filme conta com uma maravilhosa atuação central de Michael Keaton (6) e um elenco renomado (7), o filme também levou o Oscar de Melhor Roteiro Original (8). Criticou-se que a fotografia em plano-sequência (plano único sem cortes) – ou seja, a dificuldade de produção (9) – serviu de atrativo aos votantes. No entanto, é preciso deixar claro que essas são ferramentas vitais para a lógica do filme.
Como a vida real não possui cortes, os planos-sequência pelos backstages dão realidade ao filme. Com essa aproximação, conseguimos entrar na pele do protagonista e sentir seus dilemas mais profundamente. Os corredores do teatro acabam se tornando, portanto, os corredores da mente do protagonista.
Com a quebra do plano-sequência, tudo passa a ser questionado. Não sabemos se a cena final é um sonho e ele de fato morreu ou se o protagonista conseguiu finalmente afirmar sua identidade sobre a de Birdman. O filme não procura responder isso, pelo contrário, a versatilidade do roteiro dá espaço para que muitas possam ser as respostas plausíveis.
Birdman possui muitas das características de um OBM. No entanto, sua inventividade visual e roteiro interpretativo ainda dão espaço a uma crítica ferrenha à indústria cultural, ao conteúdo reciclado produzido por ela e à depravação dos profissionais da área. Com diversas camadas interpretativas e um cuidado estético primoroso, Birdman é o tipo de filme que se dá gosto em ver abocanhando todos os prêmios possíveis.
Dessa forma, podemos constatar que um OBM é as vezes melhor definido pela condução narrativo-visual genérica, melodramática e pouco inventiva de seus criadores do que pelos indícios estatísticos que ele leva consigo. É claro que as tendências apontadas acabam sendo decorrência direta da pausterização artística que sempre escolhe as mesmas estórias e formas de se contar. No entanto, uma vez comprovado que o principal indicador de um OBM é o direcionamento dado a ele, podemos finalmente analisar com um olhar mais apurado alguns exemplos desta última premiação…
(NOTA: NESSE ÚLTIMO ANO, A ACADEMIA CONCEDEU VÁRIAS VAGAS A NEGROS, MULHERES E ESTRANGEIROS (NÃO-AMERICANOS), DIMINUINDO O DISPARATE EXPOSTO NO TEXTO. NO ENTANTO, ISSO É AINDA SÓ O COMEÇO PARA A FALTA DE DIVERSIDADE QUE SE TEM NA ORGANIZAÇÃO)
Para exemplificar os conceitos e estatísticas expostas no texto, a segunda parte trará uma análise dos OBM da edição do Oscar 2016.