“Esse aqui você nunca tomou!”.
Ela olhou para aquela pasta amarronzada que o vizinho lhe trazia dentro de um frasco de vidro. Não era a primeira vez que algo assim acontecia: desde que se mudou para seu sítio no Vale do Ribeira há mais de dez anos, Cintia Midori vive recebendo “plantas esquisitas”. Outro dia, trouxeram-lhe um coquinho: faziam farofa da polpa e, da casca, um versátil ingrediente para doces.
Mas coquinho de quê? Coco ou coquinho vêm de palmeiras, mas isso ainda diz pouco. Cintia se pôs a fazer aquilo que já era hábito quando lhe traziam comida nova: pesquisar. Saber de que planta vem cada ingrediente, descobrir seu nome científico, investigar as possíveis aplicações culinárias de cada alimento. Nisso muito lhe servia a formação como engenheira que teve na cidade de São Paulo — lhe dava uma sensibilidade científica.
Mesmo depois de se unir à população em “êxodo urbano” (quando os habitantes citadinos deixam áreas mais urbanizadas em favor de regiões rurais), Cíntia ainda não estava tão afeita a comidas diferentes: “Quando eu cheguei pra cá [Vale do Ribeira], eu queria plantar alface, tomate, cebolinha, coisas com que eu estava acostumada no dia a dia.” Mas nem tudo deu certo no início. ”Foi péssima a experiência de plantar as plantas convencionais aqui porque, nessa região, chove tanto quanto na Amazônia. Ou seja, chega a ter 20, 30 dias de chuva direto. E aí as plantas convencionais simplesmente não vão”.
Mas o que “ia” no Vale do Ribeira? Não parecia ser problema do solo — ali, entre São Paulo e Paraná, onde corre o rio Ribeira de Iguape, é área ainda coberta em grande parte pela Mata Atlântica; se a terra suportava uma grande floresta, deveria aguentar uma pequena horta para uso próprio. A questão parecia ainda mais complexa quando Cíntia olhava ao seu redor: o Vale do Ribeira é uma das regiões mais pobres do estado; lá muita gente passa fome. “Mas não é possível que, com uma floresta tão rica como essa, a gente não tenha alimentos”, se espantava.
Foi aí que ela se deparou com as PANC, as plantas alimentícias não convencionais. O acrônimo surgiu na tese de doutorado em fitotecnia do biólogo Valdely Kinupp, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, e define as plantas que, mesmo com alto valor nutritivo, não são itens da agricultura em larga escala. Para Cíntia, a inclusão das PANC na rotina foi algo natural: mesmo sem perceber, já estava cercada por elas em seu sítio no Vale do Ribeira, uma vez que 10% das plantas da Mata Atlântica são comestíveis de alguma forma. O alface, o tomate e a cebolinha poderiam muito bem dar lugar ao que a mata oferece.
Cíntia hoje produz mudas alimentícias e plantas ornamentais em Sete Barras (SP), além de organizar cursos, palestras e vivências sobre agricultura e alimentação orgânica para os moradores da região. Descobrir as PANC a fez ver como a cultura alimentar do brasileiro é focada em poucos produtos não nativos derivados de monoculturas, tendência que se repete mundo afora: 90% do alimento da população global vem de apenas 20 espécies de plantas. Essa dependência faz pouco sentido quando se está ao lado de um bioma tão rico quanto a Mata Atlântica; quando se pode, por exemplo, comer o coquinho da palmeira-indaiá (Attalea sp. ou Pindorea concinna). Coquinhos que, é claro, viram farofa e vários doces — mas disso alguns dos moradores do Vale do Ribeira já sabiam.
Essa sabedoria popular é parte central das pesquisas sobre PANC. Muito do que é chamado de “não convencional” hoje já foi — ou ainda é — consumido por várias comunidades. Muito, também, acaba depreciado em favor do alimento mais comumente encontrado na gôndola do supermercado. O trabalho, então, passa a ser ressignificar essas plantas mais desconhecidas, dando-lhes pouco a pouco a familiaridade do arroz-com-feijão do dia a dia. Para Cíntia, o acrônimo PANC serve para isso mesmo: ser uma moda “acessível às pessoas”, que elas entendam e que lhes desperte a curiosidade.
A pasta no frasco — depois de uma breve pesquisa — se revelou resina de jatobá (espécies do gênero Hymenaea), de uso tanto culinário quanto fitoterápico. O vizinho estava certo: Cíntia nunca tinha provado aquilo antes. Também não conhecia muito da juçara, palmeira que dá um fruto similar ao açaí, mas, diferente deste, é nativa de terras paulistas. Nem cozinhava com o lírio-do-brejo (Hedychium coronarium), planta de origem asiática que, invasora, brota tanto na região que chega a ser quase praga — e é um ótimo substituto do gengibre. Hoje, todas elas entram em sua cozinha. Olhar a nossa volta, perceber o que cresce em nossa terra, ficar um pouco menos dependente dos alimentos não nativos e de difícil cultivo: tudo isso faz parte da “redescoberta” das plantas alimentícias não convencionais. Cíntia, atualmente, pesquisa as aplicações dessas e de muitas outras plantas do Vale do Ribeira e tenta passar o que sabe adiante.
Nos últimos cinco anos, muita coisa mudou no Vale: as cidades começaram a crescer, e muita gente de São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte se mudou para lá. Além disso, Sesc, Senai e Senac têm feito projetos na região, e alguns nomes conhecidos da gastronomia (como a família Iglesias, do restaurante Rubaiyat, ou a cozinheira Paola Carosella, do Arturito) já passaram por lá em busca de produtos orgânicos. As PANC chamam a atenção — elas e, claro, quem as planta.
Orgânicos e afins
“Ela tem toda uma rotatividade de plantas e árvores. Consegue fazer uma horta, ter um cafezal, plantar planta rasteira, planta alta”, diz Carlos Eduardo Carvalho.
“Ela tem madeira, cria galinha, tem hortaliça, tem fruta”, completa Tayná Schultern.
Carlos e Tayná são o chef e a proprietária do bistrô Manacá, no município de Avaré (SP). Falam da amiga em comum Cristiane Ferreira. Há cinco anos, ela e seu marido deixaram a cidade de São Paulo em direção à pequena Cerqueira César, no oeste do estado. Queriam virar agricultores. Depois de um período de adaptação, seu sítio finalmente parecia promissor. O café, as hortaliças e as frutas que plantavam viraram a única fonte de renda do casal. Assim como Cíntia, fazem parte do êxodo urbano do estado; também como ela, descobriram a imensidão do mundo dos orgânicos e das PANC.
A agricultura orgânica é popularmente definida como agricultura sem agrotóxicos. É uma acepção negativa (define algo apenas por aquilo que não é), além de vaga. Para o mestrando em antropologia social e pesquisador de agricultura orgânica Felipe Puga, os orgânicos têm mais a ver com uma busca por autonomia, com “ir atrás de melhorar seu solo, não simplesmente ver o que está faltando de ingrediente, mas melhorá-lo com a própria matéria orgânica”.
É uma busca comunitária, em que agricultores trocam informações e fazem novas descobertas; mas não é nenhuma terra incógnita. Ao menos desde 23 de dezembro de 2003, o governo brasileiro reconhece legalmente a agricultura orgânica e suas especificidades — é essa a data de publicação da Lei 10.831, que oficializa o sistema de produção orgânico. Desde então, com o auxílio de empresas, mercados, movimentos sociais e associações de agroecologia, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) tem publicado decretos e instruções normativas sobre a prática.
Mas nem sempre a regulamentação e o apoio legal resolvem por completo as dúvidas de um agricultor iniciante. Como Cíntia, Cristiane também chegou a seu sítio com intenção de plantar brócolis, tomatinho e outros gêneros mais tradicionais, mas não tinha noção de todas as exigências de cada planta. É nesse ponto que entra a busca por autonomia na agricultura orgânica: descobrir qual a melhor forma de tratar o solo, sem que se dependa dos métodos prontos e embalados da agroindústria.
Uma das soluções encontradas foi a agrofloresta, sistema que reúne culturas agrícolas em consórcio com plantas que integram a floresta. “A gente, com esse olhar da agrofloresta, entende que as plantas vivem numa determinada harmonia juntas, diferentemente da agricultura tradicional que fala que elas são concorrentes”, explica Cristiane. A plantação consorciada permite uma “ajuda mútua”: a planta alta faz sombra para uma mais baixa que não resiste muito ao sol, enquanto esta fixa nitrato no solo, e uma terceira impede o crescimento de ervas daninhas, por exemplo.
Plantar café consorciado com eucalipto, mogno ou árvores frutíferas — além de propiciar a colheita variada que tanto impressiona a Carlos Eduardo e Tayná — resolveu as dificuldades iniciais de Cristiane. Hoje, o casal planta café, banana, limão, manga, jabuticaba, mexerica, laranja. Mas já havia outra planta que, sorrateira, medrava por ali no sítio. A ora-pro-nobis (nome popular de três espécies do gênero Pereskia: P. aculeata, P. bleo e P. grandiflora) já brotava em tufos aqui e ali nas terras de Cristiane antes mesmo da ideia de plantá-la lhe passar pela cabeça. Essa planta de folhas largas e flores rosadas ou esbranquiçadas já era velha conhecida de muita gente da região — com alto teor de proteínas e fibras, seus frutos e folhas podem acabar em pratos diversos, como o feijão e a polenta, além de servir como corante verde para massas. Cristiane resolveu investir na ora-pro-nobis — uma PANC — e logo adquiriu uma clientela fiel.
No sítio de Cristiane, as PANC são uma entre muitas plantas. E costuma ser mesmo assim: não se vê por aí grandes monoculturas de ora-pro-nobis ou de lírio-do-brejo. Assim como é comum na agricultura orgânica, o cultivo das PANC requer ouvir a natureza, ter sensibilidade às suas necessidades e aos seus ritmos: “A gente tem que perder o nosso orgulho e abrir mão um pouco do controle; e aceitar os processos naturais”, diz Cristiane. Nem todo cultivo de planta não convencional precisa ser orgânico, mas os dois aspectos frequentemente andam de mãos dadas. Segundo a agricultora de Cerqueira César, “quando você começa a trabalhar o solo, fazer todo esse movimento de regeneração, de plantar consorciado, elas [as PANC] vêm naturalmente, é incrível”.
De vez em quando, o que brota do chão também tem algo a dizer: muitas PANC são plantas indicadoras, revelando características do solo onde nascem. A guasca (Galinsoga parviflora) — uma planta de até 75 cm, comum em jardins, com folhas pareadas e serrilhadas e uma pequena flor branca e amarela — pode indicar um solo com nitrogênio demais e cobre de menos; o trevo-azedo (Oxalis corniculata) — bem parecido com o trevo comum, se diferencia por ter uma flor de um amarelo vibrante que se destaca das folhas — brota mais comumente em terras argilosas e ácidas. Os exemplos se multiplicam; as PANC e outras plantas que surgem naturalmente podem ser elevadas da posição de ervas daninhas para a de ajudantes na agricultura orgânica.
Entre muitas outras PANC do sítio de Cristiane, destacam-se o almeirão-roxo (Lactuca indica) — parecido com o almeirão comum e a escarola, tem folhas que podem ser consumidas cruas, refogadas ou como ingrediente em salgados, pizzas e tortas —, a bertalha (Basella alba) — com um sabor próximo ao da beterraba, produz um corante alimentar roxo, e suas folhas podem ser usadas em saladas, sucos e sopas — e a serralha (Sonchus oleraceus) — cujas folhas são comestíveis e podem acompanhar diversos pratos salgados. As vendas vêm aumentando, avalia Cristiane, em parte por causa do crescimento do vegetarianismo e do veganismo. Mas a maior parte da renda continua concentrada no café, nas frutas e em um iogurte orgânico que produzem no próprio sítio. “A ora-pro-nobis ajuda bastante, mas ela não é a renda principal”, completa a agricultora.
Para Cristiane, as PANC ainda parecem ser um mercado de nicho — um nicho composto principalmente pelos mais velhos, que costumavam comê-las desde antes de o acrônimo brotar e se popularizar, e por alguns jovens mais curiosos, que procuram uma dieta mais diversificada, sem tanta proteína animal ou produtos vegetais massificados.
Do chão à mesa
Cristiane considera que “os restaurantes que estão inovando na gastronomia são grandes parceiros”, pois, com um pouco de inventividade, conseguem incluir as PANC em seus menus, propagando o “não convencional” junto aos produtores. A percepção de parceria é mútua: “Acho que a gente tem uma vantagem de estar localizado aqui em Avaré [cidade vizinha a Cerqueira César] porque a gente tem um contato muito mais próximo aos produtores. Aqui, se falta alguma coisa, no quarteirão do lado a gente já consegue comprar o que a gente precisa”, conta Tayná.
“Eu acho que conhecer pessoas, visitar os lugares é super legal, e você acaba podendo contar histórias para os seus clientes e eles ficam muito engajados quando você fala de onde veio [a comida]. A gente tem muita coisa aqui, e tudo tem uma história”, destaca Tayná. História advinda da variedade de plantas e dos produtores que as semeiam, fazem crescer, e colhem.
Assim como os agricultores entendem do plantio, depois da colheita também é necessário alguém que entenda como usar as PANC. “Estudar é sempre bem vindo na gastronomia. A gente está o tempo todo estudando, o tempo todo caraminholando, a gente não para” — conta Carlos Eduardo. O cozinheiro diz que, mesmo sem ter feito um curso voltado às PANC, procura referências em livros, vídeos e afins. Cozinhar com as plantas não convencionais é um universo tão diverso quanto a flora em si: cada uma com sua especificidade, seu sabor, suas aplicações.
Carlos Eduardo, por enquanto, usa as PANC com parcimônia: flores e brotos aparecem aqui a acolá, mais como decorações comestíveis; e, vez ou outra, voltam à cozinha com a louça usada — nem todo cliente opta por comer as pétalas que lhe adornam o prato, afinal. Há de explicar que são, sim, para comer — e que são saborosas.
As cores do amarelo ao vermelho das pétalas da capuchinha (Tropaeolum majus) podem não ser o elemento mais ortodoxo de um prato, mas, dessa planta, folhas, sementes e flores são comestíveis, têm sabor similar ao da rúcula ou do agrião, e combinam com saladas e molhos. As folhas pilosas do peixinho (Stachys byzantina) não são tão parecidas com as folhas do familiar alface, mas, empanadas e fritas, são ótimo aperitivo. A lista continua — e não seria tão estranha para muita gente alguns anos atrás, quando a produção em massa de alimentos ainda não havia atingido quase todo o país.
“Eu vejo [as PANCs] como algo um pouco abafado pelo quanto a gente cresceu e evoluiu na tecnologia. Megalópole e tudo isso abafou [as plantas não convencionais], porque você constrói outro terreno em cima de coisas que já estavam vivas ali. Por exemplo, quando você está andando com a sua avó num horto, ela fala ‘Olha, aquilo ali é de comer!’. E você nem faz ideia”, reflete Carlos Eduardo. Essas ponderações do chef de cozinha parecem ser compartilhadas por boa parte da comunidade em torno das PANC: existe uma divisão geracional, um ponto a partir do qual produtos mais naturais perderam espaço para os massificados nos supermercados.
“Pra mim, isso seria a importância do acrônimo PANC: a gente poder focar e localizar essas riquezas nossas, a gente usar essas informações, porque eu vejo que a gente está perdendo. Cada geração que passa, a gente perde esse conhecimento cultural”, resume Cíntia. A pesquisa, a produção e o consumo de plantas alimentícias não convencionais tentam retomar esse conhecimento cultural e ecológico que periga se perder. No Vale do Ribeira, em Cerqueira César, em Avaré ou em qualquer outro lugar, as plantas alimentícias não convencionais nos ajudam a entender que comer é, também, uma espécie de memória.
*Quer saber mais sobre as PANC? Acesse o Guia prático sobre PANCs : plantas alimenticias não convencionais (Instituto Kairós, 2017).