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Piano mecânico, um espelho para a modernidade

O primeiro livro de Kurt Vonnegut intencionalmente previu a relação moderna dos seres humanos com as máquinas
Por Yasmin Teixeira (yasminteixeirasilva@usp.br)

Poucas pessoas acreditariam que um livro escrito durante a década de 1950 possuiria o poder de atuar como um verdadeiro espelho da sociedade do século 21 e prever nosso modo de vida em meio à tecnologia. Surpreendentemente ou não, esse é o caso de Piano Mecânico. Escrito por Kurt Vonnegut, aclamado autor de sci-fi e distopia, e publicado em 1952, é o primeiro livro do autor e conseguiu tornar-se atemporal e acidamente visionário. 

O livro nos apresenta  Illium, uma sociedade segregada socialmente e geograficamente, pós-arrasada por uma terceira guerra mundial que mudou drasticamente os padrões e estilos de vida da população. Dividida entre engenheiros, gerentes, marginalizados e máquinas, Illium se enquadra em um padrão de segregação baseado no nível de inteligência da população: os mais altos são ocupados pelos governantes e dirigentes do enorme maquinário que gerencia a cidade, e os mais baixos, pelos marginalizados e abandonados aos trabalhos sucateados.

Quatro edifícios em construção, com escadas e andaimes, para representar a sociedade de Piano Mecânico
A história contada se passa na sociedade de Illium.
[Imagem: Reprodução/Freepik]

Narrado em terceira pessoa, o protagonista nos é apresentado como Paul Proteus, um importante engenheiro, dono de um dos maiores níveis do país e filho do mais importante diretor entre gerentes e engenheiros do distrito. Entretanto, não satisfeito com sua vida, Paul sente-se frequentemente deslocado na sociedade de aparências e ostentação na qual vive e, diferentemente da maioria, não acredita que a segregação seja justa para os mais marginalizados, apesar de não fazer nada significativo a respeito. Com o avançar do livro, isso passa a mudar.

Universo

O universo construído em Piano Mecânico é facilmente identificável, pois Vonnegut consegue misturar perfeitamente elementos de distopia e realidade para a construção de Illium. A burocracia das relações corporativas, a tecnologia sufocante e a maneira como a cidade é geograficamente dividida de acordo com o padrão econômico são elementos que apenas auxiliam a demonstrar como Illium pode ser comparada a qualquer metrópole moderna. 

“Illium, em Nova York, divide-se em três partes: no noroeste ficam os gerentes, os engenheiros, os funcionários públicos e alguns outros profissionais. no nordeste ficam as máquinas. no sul, cruzando o rio iroquois, fica a área conhecida como domicílio, onde a maioria da população vive.” 

Ao longo do livro, é comum sentirmos que a verdadeira protagonista é a cidade, pois os personagens apresentam-se de maneira tão impotente ante a sua realidade, que o ponto forte do enredo torna-se entender melhor a maneira como a sociedade funciona, além de acompanhar todos os problemas sociais iniciados no pós-guerra e as maneiras pelas quais eles são enfrentados.

Personagens fantoches

Além de Paul, com o avançar da trama conhecemos outros personagens, como Anita, sua esposa, e Finnerty, o amigo revolucionário e insatisfeito. Apesar de cada um apresentar suas prioridades e opiniões, é comum termos a sensação de que todos ali são arrastados pela maneira como o enredo se desenvolve. Como se tudo fosse uma grande peça de teatro, Vonnegut condena e liberta seus personagens de acordo com sua vontade. 

Tal sensação fica mais óbvia quando tratamos do protagonista do livro. Desde o início, percebe-se que Paul é uma figura um tanto apática, que apresenta discordâncias em relação ao sistema, mas nada faz para mudá-lo. Além de se acomodar na grandeza e nos privilégios oferecidos a ele pelo nome herdado do pai, ele é fluido o suficiente para mudar de opinião de acordo com a pessoa com quem fala. É frequente vê-lo com um sentimento revolucionário enquanto conversa com seu amigo Finnerty, mas um pouco mais apaziguado quando na presença de Kroner, amigo de seu pai e um dos gerentes chefes de Illium.

Sinalização horizontal no asfalto, indicando uma curva
As personagens parecem apenas seguir o fluxo de um caminho previamente traçado.
[Imagem: Reprodução/Freepik]

Ou seja, Paul nada mais é do que um personagem fantoche, levado de acordo com o momento e com a necessidade presente na cena. Isso é uma das estratégias de escrita mais comuns de Vonnegut, na qual ele representa não só a possibilidade de corrupção inerente ao ser humano – característica de seu pessimismo natural –, como a força que um sistema hegemônico e totalitário estruturado pode ter nas pessoas.

Importante notar também como Vonnegut estabelece a relação desse sistema totalitário com as personagens femininas, visto que durante toda a trama, as mulheres de alta classe social mostravam-se participantes da sociedade unicamente através do casamento. Fazem papel de esposas troféus em meio aos engenheiros e gerentes, classe composta unicamente pela população masculina, além de desempenharem apenas papéis domésticos, sem pretensão educacional ou financeira. As mulheres marginalizadas, pelo contrário, apesar de também estarem sob um poder patriarcal, viam-se obrigadas ao trabalho braçal.

O Xá de Bratpuhr e o olhar estrangeiro

Um acontecimento paralelo à história é a presença do Xá de Bratpuhr, líder teocrático de um país estrangeiro que está visitando Illium para coleta de conhecimento. Em Piano Mecânico, os capítulos que acompanham a vida de Paul são intercalados com o Xá, que não fala inglês e, por isso, precisa sempre estar acompanhado de um tradutor que torne possível a comunicação entre ele e o guia turístico. 

Os capítulos, ao mesmo tempo que reflexivos, são verdadeiros alívios cômicos em meio a história, pois são diversos os desentendimentos entre o Xá e o guia, devido ao grande choque cultural entre dois mundos completamente opostos. Para o líder religioso, é difícil entender conceitos como “cidadãos livres” ou trabalho, porque todas as interpretações, influenciadas pelos costumes do seu país, acabavam sendo equivalentes a “escravos” ou a algo totalmente oposto de liberdade, sendo extremamente revoltante para o guia, ávido defensor da liberdade norte-americana. 

O interessante desses capítulos é a maneira como Vonnegut consegue capturar o olhar estrangeiro sobre o modo de vida norte-americano, que parece insustentável e até sem sentido para a maioria. Há também interpretações que afirmam que o Xá representaria o leitor e o consequente choque ao conhecer a estranha sociedade de Illium e seu modo de vida não tão independente assim. 

Uma revolução bem Vonnegutiana

Por fim, o clímax do livro se dá com a revolução e a posterior participação de Paul. Entretanto, ao contrário das muitas rebeliões heróicas frequentes que acontecem em distopias, a revolução em Piano Mecânico é carregada de cinismo, acidez e pessimismo, tão característicos da escrita de Vonnegut. Como uma quebra de expectativa, o leitor, junto a Paul, descobre a existência da revolução tardiamente, quando a mesma já está em percurso e apenas porque Finnerty, amigo de Paul e também engenheiro de sucesso insatisfeito, o convida para abandonar a atual vida de aparências e lutar pela libertação do homem do poderio das máquinas e dos engenheiros.

Multidão de pessoas com as mãos levantadas e os rostos sérios, para representar a revolução de Piano Mecânico
A revolução é contada a partir das características de escrita do autor.
[Imagem: Reprodução/Freepik]

Entretanto, como esperado, Paul tem uma entrada bastante titubeante na revolução, agindo mais como uma espécie de símbolo e exemplo do que um revolucionário ativo, reforçando novamente sua posição apática e bastante influenciável na trama. Também mostra a caoticidade com a qual a revolução é feita que, de tão desorganizada, culmina em uma espécie de fim subjetivo, com metade da população morta, toda a cidade destruída, nenhum vencedor e, surpreendentemente, uma centelha de esperança para as futuras gerações. 

“Isso não é o fim, você sabe – disse – nada nunca é o fim, nunca será… nem mesmo no dia do juízo final.” 

Piano mecânico torna-se um clássico essencial pela sua perspicaz sátira direcionada a toda uma sociedade industrial que acredita ter ultrapassado os limites humanos. Além de emitir um alerta para uma verdadeira população que voluntariamente caminha para o abandono e marginalização das massas, não unicamente pelas máquinas, mas por todo um sistema hierárquico opressor.

*Imagem de capa: Yasmin Teixeira

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