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Por que as distopias são tão catastróficas quanto essenciais

De 1984 a Jogos Vorazes, de O Conto da Aia a Black Mirror, a indústria cultural está repleta de obras com temáticas distópicas. Esse tipo de conteúdo se tornou uma tendência no início da década de 2010, mas já está presente nas obras de ficção há muito tempo. Quando se observa as múltiplas produções com …

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De 1984 a Jogos Vorazes, de O Conto da Aia a Black Mirror, a indústria cultural está repleta de obras com temáticas distópicas. Esse tipo de conteúdo se tornou uma tendência no início da década de 2010, mas já está presente nas obras de ficção há muito tempo. Quando se observa as múltiplas produções com essa característica, contudo, o que impressiona são as inúmeras roupagens e abordagens. As distopias são, de alguma forma, constantes no imaginário da sociedade contemporânea, e caracterizam muitas obras de grande sucesso. Porém, quais as relações dessas abordagens pessimistas com os indivíduos e a sociedade como um todo?

 

A não-utopia

De forma simplificada, as distopias se opõem ao conceito de utopia, presente na literatura e na sociologia desde o século XVI, com a obra A Utopia, de Thomas More. A palavra em si é uma junção do termo grego “ou”, referente à negação, com a palavra “topos”, que significa lugar. A utopia, de certa forma, é o “não-lugar”, e More utiliza o termo para descrever um lugar inalcançável, em que o sistema político e social ideal teria sido alcançado. 

Apesar de inalcançável, a utopia seria uma inspiração para buscar o melhor futuro possível para a humanidade. De alguma forma, agir positivamente em relação à sociedade seria agir numa busca constante pela utopia, por um futuro positivo, ideal e que nunca de fato chegaria. 

Contudo, a partir do século XX, começam a surgir, na literatura, percepções mais negativas do futuro, por vezes extremas. Vítor Vieira Ferreira, doutorando em Linguística Aplicada pela UFRJ e autor da dissertação O bom lugar, o futuro catastrófico, a ficção científica e algumas distopias brasileiras, explicou que, embora o conceito tenha surgido no início do século passado, é difícil precisar a obra que o inaugurou. “Pesquisadores do tema costumam conceder a Nós, romance do escritor russo Yevgeny Zamyatin, o título de primeiro romance distópico, publicado em 1924″, diz Vítor. 

Capa da nova edição de ‘Nós’, um livro de distopia. [Imagem: Divulgação]
Capa da nova edição de ‘Nós’. [Imagem: Divulgação]
Ao longo do século, foram surgindo outras obras, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932); 1984, de George Orwell (1949); Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953); Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (1962); e O caçador de androides, de Philip K. Dick (1968). “Essas são as distopias clássicas, e elas revelam que ao longo do século XX gradativamente foi se desenvolvendo um temor quanto ao futuro”, explica Vítor.

Segundo o pesquisador, até aquele momento prevaleciam visões mais positivas do futuro, pois em geral acreditava-se que, com o avanço da ciência e da tecnologia, o homem estaria constantemente caminhando para um lugar melhor. “Ocorre, no entanto, que o desencanto com os desdobramentos da Revolução Russa foi um dos golpes mais certeiros para a perda da esperança em um futuro melhor. A distopia pessimista ganha então o espaço que outrora era preenchido pelas utopias otimistas”, afirma Vítor. “O sonho com um mundo melhor cedeu espaço para o pesadelo de um mundo pior.”

 

Ameaça constante

Apesar disso, a produção de obras distópicas não se restringe à desesperança do século XX. A temática se apresenta de forma constante na produção cultural, e ganha força e fama no século XXI. Ao mesmo tempo em que os livros clássicos continuam entre os mais vendidos, autores se arriscam ao levar o conceito do futuro distópico para uma quantidade cada vez maior de obras e por perspectivas inovadoras. 

Entre o final dos anos 2000 e início da década de 2010, por exemplo, houve um boom de sagas infanto-juvenis com abordagem distópica, que ocuparam por bastante tempo as listas de livros mais vendidos e até se transformaram em filmes. Dentre os mais famosos, estão Jogos Vorazes, Divergente e A seleção, que estourou algum tempo depois dos dois primeiros.

Nesse contexto, a temática da distopia chegou a ser vista por alguns como clichê ou cansativa, enquanto outros imaginavam ser de extrema originalidade as propostas das autoras. Para Vítor, o fenômeno é uma simples questão de rentabilidade: quando uma proposta apresenta sucesso na indústria, é natural que outras produções busquem seguir uma linha semelhante. “Mais importante do que a originalidade desta ou daquela obra é o fato de que, a despeito do que pensem os críticos e a academia, a distopia é algo com boa recepção”, opina.

Jennifer Lawrence na adaptação de ‘Jogos Vorazes’ para o cinema. [Imagem: Reprodução]
Jennifer Lawrence na adaptação de ‘Jogos Vorazes’ para o cinema. [Imagem: Reprodução]
A força da ficção distópica no século XXI, porém, pode ser observada em outros pontos. Histórias do século passado voltaram a estar entre as produções “queridinhas” em diversos meios. O Conto da Aia, livro escrito por Margaret Atwood em 1985,  por exemplo, se transformou em uma das séries de TV mais comentadas e premiadas, lançada em 2017. Já o famoso 1984 voltou às listas de mais vendidos e de leituras “indispensáveis”. O fenômeno foi observado em janeiro de 2017, quando o livro chegou ao topo da lista de mais vendidos da Amazon, após falas polêmicas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Já em 2019, o livro ocupou o 11º lugar na lista de mais vendidos no Brasil, com 12,5 mil exemplares. Outra obra de Orwell, A Revolução dos Bichos, ocupou o 7º lugar. Vale ressaltar que o autor foi o único clássico dentre os mais lidos no país.

Vítor comenta que não há de fato uma explicação para o fenômeno, mas apenas o fato de que, apesar de ter sido escrito há quase 70 anos, e retratar um futuro distante em um ano que já virou passado, o livro simplesmente continua atual. “A tortura por parte de agentes do Estado, a constante monitoração por meio de dispositivos eletrônicos, a tentativa de se distorcer fatos em nome da defesa de uma narrativa, a manutenção das relações afetivas em meio a tudo isto; enfim, tratam-se de coisas que, dadas as devidas proporções, observamos em nossa realidade cotidiana sem maiores esforços”, diz.

É impossível, hoje, relacionar o surgimento e popularização da ficção distópica com um acontecimento em específico, pois as obras estão inseridas em um contexto geral. “Acredito que a ausência de um projeto político específico que nos forneça a ‘matéria prima simbólica’ para os sonhos de um mundo melhor é a principal causa para que a distopia, que começa lá no começo do século XX, tenha se mantido até os dias de hoje”, sugere Vítor.

Capa do livro '1984', de George Orwell. [Imagem: Reprodução]
Em ‘1984’, o “Grande Irmão”, chefe de Estado, é apresentado como “o olho que tudo vê” por meio do abuso da tecnologia. [Imagem: Reprodução]

 

Um futuro cada vez mais presente

Nos últimos anos, é perceptível uma proposta mais desconexa da ideia de um grande país governado por um regime autoritário no futuro (identificada tanto nas três sagas citadas anteriormente, quanto em clássicos como 1984), especialmente em produções para a TV. Série britânica transmitida originalmente no Channel 4, Black Mirror, por exemplo, não denota uma questão temporal específica e explora a tecnologia como ponto principal na apresentação de universos alternativos – e assustadores – que poderiam ou não ser o futuro. Em certa medida, a série tem tanto impacto justamente por sugerir uma realidade que está muito mais próxima da que experienciamos do que a princípio parece. 

Vítor considera que, embora o conceito da distopia esteja intrinsecamente ligado ao futuro, essas propostas na ficção podem ser interpretadas sob uma ótica mais contemporânea. “À medida em que o tempo passa, as extrapolações das ficções distópicas passam a se aproximar cada vez mais de nossa realidade presente. Sob uma perspectiva pessimista, é como se estivéssemos fadados a viver na realidade atual aquilo que no passado se imaginou como ficção”, sugere. 

Porém, essa proximidade temporal não deixa de ser um mero detalhe de interpretação quando pensamos no real propósito das distopias: “Não podemos perder de vista que o futuro da distopia é um meio, e não um fim. Isto é, via de regra, uma ficção distópica não pretende falar especificamente do futuro; conceber um mundo ficcional situado no futuro é um meio literário para se falar fundamentalmente do presente”.

Cena de episódio de ‘Black Mirror’, série conhecida pelas suas distopias. [Imagem: Reprodução]
Redes sociais se confundem com vida real em episódio de ‘Black Mirror’. [Imagem: Reprodução]

 

Entre a crítica e o sonho

A relação com o presente é um ponto chave para entender a relação das distopias com a sociedade e até mesmo com o indivíduo. Apesar de pessimistas, as propostas distópicas não indicam uma desesperança total com o futuro, mas sim um compromisso com o presente, ao criticá-lo. 

Segundo Vítor, pensar sobre a distopia indica uma necessidade urgente de mudança, e, portanto, motiva a ação. “Quando nos deparamos com uma obra em que se vê representado um futuro onde ‘tudo deu errado’, a mensagem que se tira disso é que devemos o quanto antes ‘arrumar o nosso presente'”, explica. “A distopia, nesse sentido, assume um caráter didático fundamental. Uma obra distópica inevitavelmente faz com que nos questionemos se é válido mantermos o nosso presente do jeito que ele está.”

Apesar disso, o sentimento de desesperança é, sim, uma reação possível, quando tratamos de indivíduos. É o que explica Leila Salomão, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora no campo de manifestações do sofrimento humano: “Se é uma pessoa muito sensível, talvez não seja o mais adequado”.

Leila considera que, em geral, as pessoas distinguem facilmente o que é o texto daquilo que é referente à vida real, mas é importante considerar as particularidades de cada obra e de cada ser humano. Em determinadas situações, obras de ficção distópica podem trazer percepções ou sentimentos negativos para algumas pessoas, mas isso decorre da absorção que se faz do conteúdo. “Não dá pra afirmar essa relação direta. Para pessoas com doenças mentais pode não valer muito à pena, mas o problema não está na obra”, considera Leila.

É inevitável considerar que, em situações de estresse generalizado, como a pandemia de covid-19 ou em meio a guerras, a negatividade e tendência à desesperança é mais iminente do que em um contexto “normal”. Por vezes, a leitura de textos distópicos pode ser mais sensível e até mesmo trazer à imaginação possibilidades mais catastróficas. Em contextos já tão negativos, pode ser melhor procurar conteúdos mais leves, mas isso não é uma regra.

Leila considera que o contato com a ficção pode ser positivo, ao promover um escape da realidade e até mesmo a busca por superação dentro da própria história. “Não necessariamente o contato com esse tipo de texto mais pessimista pode fazer mal, às vezes, ao contrário, por estar distanciada da realidade, a pessoa pode se sentir melhor”, diz. “Uma boa literatura sempre faz bem.”

É inútil procurar por respostas sobre uma relação direta entre ficções distópicas e sentimentos particulares ou até mesmo acontecimentos sociais. No fim das contas, essa relação depende muito mais de características individuais relacionadas à recepção daquele conteúdo por cada um. A obra, por si só, é apenas um lembrete alarmante. “Não estão acabados nem a história e nem o impulso utópico que todos temos dentro de nós, por meio do qual somos sempre capazes, com maior ou menor esforço, de imaginar um mundo melhor do que aquele em que vivemos”, afirma Vítor.

2 comentários em “Por que as distopias são tão catastróficas quanto essenciais”

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  2. Quando se observa as múltiplas produções com essa característica, contudo, o que impressiona são as inúmeras roupagens e abordagens. As distopias são, de alguma forma, constantes no imaginário da sociedade contemporânea, e caracterizam muitas obras de grande sucesso.

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