Ricardo Azarite
Ensaio Sobre a Cegueira não é um filme de se fazer sorrir. Não é um filme para se olhar fixamente. Não é um filme emocionante. Não é um filme para chorar.
José Saramago sorriu. José Saramago olhou fixamente. José Saramago se emocionou. José Saramago chorou.
O livro homônimo que baseou o filme exibe um José Saramago renovado, cuja literatura se transforma num campo amorfo e sugestivo, usada para retratar, em sua narrativa, a universalidade de sua estória (ainda existe essa palavra?). Os personagens Mulher do Médico, Rapariga dos Óculos Escuros, Rapazinho Estrábico e Cão das Lágrimas (todos grafados com minúsculas no livro) são quaisquer, não têm semblantes definidos, não têm idiossincrasia, não têm história, não têm rosto.
Aliás, a literatura de maneira geral apresenta como característica marcante a esfera da possibilidade criativa; o leitor exerce dupla função: é simultaneamente aquele que lê e aquele que é co-autor da obra, estruturando cenários, feições e detalhes que fogem do papel do autor.
No lado de Saramago, o fio condutor de sua obra é o universalismo, poder ser lido e compreendido no Portugal (ou na China) de hoje, de ontem, ou de amanhã. De modo a chegar perto do aniquilamento de sim/não, autor/leitor, a literatura de Saramago é sem nome; até o Evangelho Segundo Jesus Cristo, tudo se fazia bem explicado ao leitor, a partir do Ensaio, o personagem é tão mal definido que ele pode ser – por que não? – você.
Saramago é, afinal, um humano e se faz contraditório na medida do aceitável. Sua literatura é fabulosa no sentido mais primário: ao fim do último parágrafo do livro, uma moral objetivo – e não indefinida – é passada ao leitor.
No lado de Meirelles, porém, a situação se inverte. O filme é um viés a ser mostrado a partir das escolhas do diretor. Não é à toa que Saramago foi relutante para permitir a produção cinematográfica de seu Ensaio Sobre a Cegueira. O resultado de qualquer adaptação para o telão é uma obra inédita – e pode ser catastrófica.
O desafio de Meirelles era retratar o obscurantismo e a indefinição de Saramago usando um instrumento que é, por default, mais objetivo e claro, mas ainda assim passar uma moral? E esse era justamente o medo de Saramago: seu insucesso e a perda do tom conflitante característico de sua literatura.
As lágrimas de Saramago não mentem: o filme surpreende
O uso de branco, preto e cinza; de muita luz e de reflexos servem como uma luva. Muitos dos cenários se perdem no meio-termo acinzentado, (o que eu vejo?); a luz branca recorrentemente usada (estou cego como os personagens?) gradualmente se atenua e os traços do cenário surgem; imagens refletidas põem o público em dúvida (o que é real?).
O encanto da literatura ressurge aí. O diálogo entre primeira (o filme) e segunda pessoas (o público) aparece com esse constante questionamento incitado por Meirelles; o diretor deixa de ser uma figura isolada e nos leva ao interior da narrativa – e, mantendo o enredo intacto, conserva a moral da história.
O filme consegue superar dificuldades da narrativa de Saramago de modo triunfal; a adaptação foi bem sucedida. Por isso Saramago chorou.