Por Breno Macário (breno.macario@usp.br)
José Alberto Mujica Cordano, ou simplesmente Pepe Mujica, faleceu no último dia 13, aos 89 anos, após uma luta árdua contra um câncer no esôfago. Ele era um grande crítico do consumismo e ficou mundialmente conhecido por pregar e viver a simplicidade. Mesmo após alcançar o cargo de presidente do Uruguai, permaneceu dirigindo seu antigo Fusca, morando em seu modesto sítio localizado nos arredores de Montevidéu e doava cerca de 90% do seu salário. Todas essas ações fizeram com que ficasse conhecido como o “presidente mais pobre do mundo”.
Mas o que ligava essa grande personalidade ao futebol? Pepe Mujica, assim como qualquer sul americano comum, é apaixonado pela modalidade, mas sua relação com ela não se limitava pelo sentimento de torcedor. O ex-presidente por muitas vezes associou o futebol com suas pautas políticas, e, inclusive, se envolveu em polêmicas com a FIFA por causa disso.
Pepe Mujica em seu famoso Fusca, ano 1987, em 2023 [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
A origem da paixão
Conhecido por ser um homem do povo, o seu amor pelo esporte bretão iniciou como o de qualquer criança. Mujica nasceu no bairro Paso de La Arena, em Montevidéu, onde desde cedo brincava com a bola de futebol e torcia para o time da sua região.
Mujica também era apaixonado pela seleção nacional. Aos 15 anos pode viver o bicampeonato mundial do Uruguai na copa de 1950 e exalta esse momento em entrevistas: “Todo o Uruguai estava vibrando e saímos como loucos pelas ruas. Nunca vi tanta explosão e alegria resumida na sociedade uruguaia. Talvez quando a ditadura se foi, mas nunca vi tanta alegria resumida em um povo”.
O ex-presidente acompanhou o “Maracanazo” pelo rádio e passou a admirar um dos seus primeiros ídolos no futebol: Ghiggia, carrasco do Brasil naquela memorável final. A admiração pelo jogador também era motivada por ações fora de campo, já que Ghiggia participou da sindicalização de jogadores uruguaios que buscavam uma remuneração mais justa.
Em 2015, após o falecimento de Ghiggia, Mujica deu a seguinte declaração: “O nome de Ghiggia será permanente, porque não há dúvida de que esse gol marcou a maior façanha esportiva da grande história do Uruguai e provavelmente a maior façanha que poderia ser escrita”.
Alcides Ghiggia marcou o gol do título do Uruguai da Copa de 1950, ele estreou pela seleção apenas dois meses antes da competição [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]
Depois de entrar para a vida política, não acompanhou o futebol muito de perto, não era muito visto nas arquibancadas, afinal, o mesmo se julgava como um “pé frio”. Mas sempre levou a paixão consigo e, na sua atuação política, via o esporte como uma importante atividade social.
Torcedor de time local
Mujica era torcedor do modesto Club Atlético Cerro, time do bairro Vila del Cerro, região em que cresceu. A equipe hoje está na primeira divisão do futebol uruguaio mas sequer tem títulos da elite, as suas maiores conquistas são as quatro taças da segunda divisão do país. O Cerro está bem longe em número de conquistas quando comparado com os grandes Nacional e Peñarol.
Ele não ligava para a falta de tradição do clube, o próprio julgava o Cerro como “pequeno”. Mas para ele, era um orgulho torcer para a equipe da sua infância: “Sou torcedor do time da minha região, o Cerro. Estou acostumado a perder, mas sou torcedor”, dizia o ex-presidente.
Apoiar o clube local fazia parte da filosofia de Pepe Mujica. Para ele, acompanhar o Cerro significava reafirmar suas raízes e sua classe social, cultivando um sentimento de pertencimento e lealdade às suas origens. Essa visão não se limitava ao seu modesto Cerro, ele empregava esse papel social a todos os times de bairro, afirmava que todas as equipes regionais têm a missão de ensinar esses valores à juventude.
Em 2012, o político ficou em evidência por conta de um episódio curioso que envolve sua admiração pelas equipes de bairro. Pepe foi a uma loja de materiais de construção em busca de um assento para sua privada, no caminho de volta para sua casa, foi convidado para realizar uma preleção de um time que treinava às vésperas de um jogo válido pelo acesso para a primeira divisão. Resultado: com o assento de privada nos braços, deu um belo discurso motivacional que impressionou os jogadores e guiou o Huracán del Paso de La Arena para a vitória – mas que não foi suficiente para conquistar o acesso por causa do placar agregado.
Críticas ao futebol moderno
“Os salários de alguns jogadores de futebol são ofensivos, especialmente considerando o estado das nossas cidades. Mas a culpa não é dos jogadores. Os jogadores são o pretexto para uma mobilização econômica que gira em torno deles”
Pepe Mujica
Por muitas vezes, Pepe Mujica criticou o que se tornou o mercado do futebol. Para ele, as transferências cada vez mais caras, salários sempre aumentando e ingressos inviáveis para a classe pobre são fatores que dão ao futebol um aspecto mais industrial e que suprimem os valores que o esporte proporciona. Também afirmava que a mercantilização do futebol afasta o esporte das suas raízes e exclui as classes mais populares.
“O Futebol transformou-se em um negócio. Um negócio que é em parte arte, em parte magia. Mas, é claro, as sociedades modernas e contemporâneas se caracterizam por transformar até mesmo a respiração em negócio”
Pepe Mujica
Era claro que essa conformidade do mercado do futebol desagradaria um dos principais personagens da esquerda latina. Era característica de Mujica politizar o esporte e já teve conflitos com a entidade máxima do futebol por causa disso.
Na copa do mundo de 2014, Luis Suárez – principal craque uruguaio naquela copa – foi punido com 4 meses de suspensão do futebol após morder seu adversário em jogo válido pela fase de grupos daquela copa. Nas oitavas de final, o Uruguai sentiu falta do seu craque e foi eliminado para a Colômbia. Após a eliminação, Mujica deu entrevista xingando os dirigentes da FIFA e culpando-os pelo revés da seleção do seu país. Para ele, a punição de Suárez foi desproporcional e tinha motivação política.
Na época, os assessores do presidente argumentaram que os xingamentos aos chefes da federação tiraram de Mujica a chance de ganhar o Prêmio Nobel da Paz. O ex-presidente era um dos cotados para indicação ao prêmio daquele ano, mas foi desconsiderado após a entrevista polêmica.
Dois anos depois, o então Senador falou sobre o caso ao GE: “Sentimos que foi uma punição aos humildes. Nenhum desses senhores importantes da FIFA passou fome ou enfrentou intempéries. Eles têm uma impiedade que não tem relação com o futebol, que é uma festa popular. No dia que não tivermos mais pobres, não teremos mais o luxo de ver jogadores geniais”.
Sua visão social do futebol
Mujica enxergava o futebol como algo a mais que uma competição dentro de quatro linhas. O ex-presidente via o esporte como uma manifestação cultural importante para promover a coesão social e a paz.
“O futebol é bonito como jogo, mas terrivelmente emotivo. Os campeonatos internacionais não são guerras entre os países, são jogos. Tem um sentido de festa […]. Não devemos cair na estupidez de confundir uma festa esportiva com uma disputa entre nações”
Pepe Mujica, em entrevista ao GE
Mujica também via o futebol como um reflexo da sociedade que transcende o mero entretenimento e reproduz padrões da sociedade, como por exemplo, as desigualdades – principal alvo de críticas do político. “Estive com o presidente do Atlético de Madrid (time da primeira divisão espanhola) e ele me disse que o faturamento do time passava dos quinhentos milhões de euros por ano. Eu não sei se o futebol uruguaio todo gastou quinhentos milhões de euros no ano”, comentou, espantado, em entrevista ao programa Esporte Espetacular.
O estádio Wanda Metropolitano, casa do Atlético de Madrid, custou €306 milhões, enquanto o Campeón del Siglo, um dos mais modernos do futebol uruguaio, custou US$40 milhões [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]
O político também ficou famoso por ações relacionadas à violência nos estádios. Em 2014, após casos de violência em partidas da Libertadores no Uruguai, ele ordenou a retirada de força policial dos jogos de futebol. Ele criticava a dependência excessiva da força policial e disse que, se fosse necessário, suspenderia o futebol para acabar com o problema. A medida gerou uma crise na Associação Uruguaia de Futebol (AUF) após a renúncia de grande parte da sua diretoria. A ação amenizou o problema, pois a AUF e os clubes foram obrigados a criar novos planos para conter a violência e houve comoção popular após vários jogos suspensos.
Foto de capa: Reprodução/Wikimedia Commons