Por Manuela Trafane (manutraf@usp.br)
“Só um deus homem pode ter criado este mundo nojento e abominável”, pensou Nazareth Joana Chornyak. Obrigada a ficar calada diante de humilhações, Nazareth vive presa em uma realidade sem palavras, porque a linguagem é usada apenas para o homem, e as mulheres têm de aceitar.
Língua Nativa, de Suzette Haden Elgin, é uma obra experimental feminista, que convida meninas a se revoltarem. Aborda temas como ética, domínio estatal, segregação social, o papel das mulheres e o poder da língua. Tudo isso em uma narrativa de ficção científica, que vai do assassinato ao drama, mas nunca aborda romance — demonstrando que é impossível florescer amor quando o indivíduo com quem se relaciona lhe considera apenas uma ferramenta.
Na distopia, uma lei promulgada em 1991 proibiu mulheres de exercerem qualquer função política. A história se passa a partir dos anos 2180, quando o Planeta Terra precisa fazer negociações recorrentes com alienígenas. Para isso, a sociedade é dividida em duas categorias: linguistas e povo leigo.
Divididos em 13 linhagens, os linguistas são famílias dedicadas à apreensão de línguas alienígenas. Submetem seus filhos com apenas meses de vida às interfaces, método que coloca bebês em frente a um Alienígena Residente (ARE), separados apenas por um vidro. O extraterrestre conversa com o humano, ensinando-o o idioma como uma de suas línguas nativas.
É necessário um exército de tradutores para atender à necessidade das negociações, por isso meninas não podem ser excluídas do processo. Apesar dessa participação política, as mulheres continuam sendo destratadas pelos homens linguistas, ratadas como tolas com “cérebro de pudim”. Ao perderem sua capacidade reprodutiva, elas são enviadas para as casas estéreis, onde além de trabalharem para as linhagens, desenvolvem sua boba língua mulheril, o linglês. Ou pelo menos é nisso que elas querem que os homens acreditem.
A narrativa alterna entre os eventos na casa estéril dos Chornyak, a vida de Thomas Blair Chornyak, as memórias da juventude de Nazareth, o projeto linguístico do governo e a vingança de Michaela Laundry. A pluralidade de pontos de vista que permite um “mergulho” no mundo criado por Suzette também se faz um problema, pois não explora a casa de forma mais profunda: existem moradoras que são mencionadas apenas uma vez e esquecidas em seguida.
A falta de caracterizaçao das senhoras torna suas personalidades menos relevantes, fazendo a história perder parte de sua característica feminilidade. É possível que isso seja melhor abordado nos outros dois livros que completam a trilogia de Elgin, mas estes ainda não foram traduzidos para o português.
Um personagem que é percorrido profundamente é Thomas Blair, o líder das linhagens, que menospreza todos ao seu redor, exprimindo uma ideia de superioridade, mas ao mesmo tempo cultivando relações de poder pacíficas com todos. Inclusive com o governo, por isso, ao fechar o livro, resta uma dúvida e sua resposta é incerta: os linguistas são escravos do Estado ou o Estado é escravo deles?
Sua imagem é a personificação do patriarcado: além de um senso de hegemonia ao masculino e ao poder, ele odeia tudo aquilo que remete ao feminino.
– Sério? Nem mulheres, nem dinheiro?
– Ah, é sobre mulheres, Thomas. Mas não sobre os braços, as tetas e a bunda delas, meu caro irmão. Nada erótico.
– Meu Deus. Sobre o que mais dá para conversar quando o assunto são as mulheres?
Língua Nativa, p.365
Em alguns momentos, é possível identificar falas desse personagem em situações vividas pelas mulheres na realidade, em seu dia a dia: a classificação do sexo feminino como frágil e exagerado, um discurso que prega a utilidade e obediência da esposa ao marido. Os comentários são ainda piores quando se trata da outra classe social.O povo leigo odeia os “lingos imundos”, acredita que eles vivem vidas luxuosas e gastam o dinheiro dos impostos em frivolidades.
A perspectiva de Michaela Laundry traz uma espécie de alívio e melhor compreensão da sociedade retratada, em meio a uma narrativa focada predominantemente na vida dos linguistas. Ela é uma mulher treinada para ser esposa. Perfeita em teoria e na prática, ela é bonita, útil, atenta, uma ótima ouvinte .
Descrita por vários personagens masculinos ao decorrer do livro de forma que causa desconforto imenso ao leitor, ou pelo menos à leitora mulher. A objetificação de sua presença como apenas ouvinte passiva traz uma sensação de desgosto e até ansiedade em algumas passagens.
Michaela é a única mulher leiga que tem participação no livro, e sua revolução pessoal é a maneira de demonstrar que a revolta não possui classe. Ao mesmo tempo, ela deixa claro que é muito mais fácil participar do processo quando se tem acesso à informação, assim como as linguistas.
Um aspecto estilístico do livro que impulsiona o entendimento das relações socioeconômicas na sociedade é o fato de todos os capítulos começarem com trechos de leis, entrevistas, poemas ou canções, que apresentam o tema tratado no trecho sem spoilers e fazem da obra mais realista e compreensível. A habilidade de Suzette de incorporar o leitor no mundo criado por ela é impressionante: sua narração causa desespero em trechos que revelam a “incapacidade mulheril” e a violência sofrida pelas esposas por seus maridos.
Uma conexão especial é formada com Nazareth Chornyak Adiness e o leitor, com quem se desenvolve um relacionamento íntimo: com ela, entendemos o quão impossível seria desenvolver uma história romântica em meio à ficção. O grotesco e a humilhação impedem o florescimento de um relacionamento, porque Nazareth nunca é tratada como indivíduo, mas como um mero tradutor.
A versão brasileira do livro por Jana Bianchi é algo a ser valorizado. O uso de jargões como “Meu Jesus Cristinho montado em um jumento cor-de-hortênsia” ou “Um, dois, feijão com arroz”, traz muita personalidade à narrativa. Manias de linguagem também são muito bem colocadas nas falas do povo leigo, mas evitadas quando se trata dos lingos. Os ajustes facilitam a identificação do leitor com as personagens e com a realidade criada, revelando um espetáculo de interpretação que não se vê em muitos trabalhos.
Um livro publicado em 1984, cujos temas abordados ainda se fazem relevantes hoje. A mulher continua sendo desvalorizada por seu trabalho e objetificada, como pode ser visto no caso de assédio da ministra Anielle Franco. Garotas continuam sendo estupradas e mortas simplesmente por serem do sexo feminino. Em abril, ocorreu um caso de feminicídio na saída do Terminal Itaquera. Como no livro, mulheres são colocadas como uma classe inferior na sociedade todos os dias, com medo de não serem escutadas, com medo de sair de casa.
Língua Nativa é a prova de que palavras têm poder, que a linguagem é uma forma de dominação, mas que também representa revolução.
Pense no seguinte, por gentileza: fazer algo “aparecer” é considerado magia, não? Bem… Quando você olha para outra pessoa, o que vê? Dois braços, duas pernas, um rosto, uma série de partes. Correto? Agora, o corpo tem uma superfície contínua específica que começa na parte de dentro da pele dos dedos e continua pela palma da mão e pelo antebraço até a curva do cotovelo. Todo mundo tem uma superfície dessa – na verdade, tem duas.
Vou chamar tal superfície de o “atade” da pessoa. Imagine o atade, por favor. Veja-o com clareza na mente. Entenda, tenho meus próprios atades aqui, o esquerdo e o direito. E você também tem dois, muito belos.
Antes não havia atade, mas agora haverá, porque você vai notar os atades de todas as pessoas para as quais olhar, assim como nota o nariz e o cabelo delas. De agora em diante, eu fiz o atade aparecer… Agora, ele existe.
A magia, compreenda, não é uma coisa misteriosa, não é para bruxas e feiticeiras… Magia é algo ordinário e simples. E simplesmente linguagem.
Agora olho para você e posso dizer, como não poderia fazer há três minutos: “Mas que belos atades você tem, vovó!”.
Língua Nativa, p. 324
*Imagem de capa: Manuela Trafane/ Jornalismo Júnior