Jornalismo Júnior

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Red Velvet: ‘Feel My Rhythm’ e a releitura dos clássicos

Grupo feminino de K-pop recria obras de arte e comprova mais uma vez porque é tão conhecido pela criatividade

Serial-killers que matam entregadores de pizza em noites de lua cheia, filmes de terror, bonecas em uma fábrica e até o filme Cisne Negro (Black Swan, 2010) são imagens que aparecem nos clipes do grupo sul-coreano Red Velvet, conhecido por utilizar elementos inusitados para produzir os conceitos de seus lançamentos. Formado  por Yeri, Joy, Seulgi, Wendy e Irene, o grupo de K-pop é famoso por sua  identidade criativa e versátil, começando pelo próprio nome do grupo que indica o quão multifacetado ele pode ser: o lado Red representa as músicas animadas, vibrantes e excêntricas – como Dumb Dumb, Russian Roulette e Red Flavor – e Velvet para as mais calmas, elegantes e polidas – como One of these nights, Bad Boy e Psycho. 

Tendo em mente a reputação do grupo, ao anunciarem o lançamento de seu mini-álbum intitulado The ReVe Festival 2022 – Feel My Rhythm (2022), a expectativa era de uma produção surpreendente, e elas não decepcionaram, trazendo homenagens, menções e ressignificação à obras clássicas das artes plásticas e da música.   

Os teasers de Feel My Rhythm 

Ao longo das semanas que precederam o retorno do Red Velvet, a empresa responsável pelo grupo, SM Entertainment, divulgou dia após dia pequenos relances do que estava por vir. Um exemplo disso é a coleção intitulada Calmato, que mostra a figura da integrante Seulgi com roupas de bailarina, girando em uma caixinha de música ao som do trecho de uma canção. 

Imagens e vídeos no mesmo formato com as outras integrantes também foram liberados, e  a caixa de música de cada uma tocava um som diferente. Quando combinados, os sons revelaram a música Ária na corda do Sol, nome do arranjo para violino e piano feita por August Ferdinand Wilhelmj, inspirado na Ária da Suíte Orquestral nº 3 em Ré Maior, do musicista Johann Sebastian Bach.  

Nas redes sociais, a SM Entertainment confirmou que o Red Velvet voltaria com um mini-álbum de 7 músicas, sendo Feel My Rhythm a música título que “estimula suas vibrações de primavera”, segundo a publicação da empresa. Também informaram que a música teria como sample a “melodia elegante de ‘Aria on the G String’”, parecida com aquela tocada nos vídeos promocionais das integrantes Com Feel My Rhythm, o Red Velvet propôs lançar a versão K-pop do clássico.

Seguindo o calendário divulgado, no dia 13 de março, teasers da coleção capriccioso foram liberados. As cores vibrantes e longos vestidos cor de rosa surpreenderam os fãs, que esperavam algo voltado para o lado sombrio e “aveludado” do grupo. No entanto, esses teasers eram fiéis ao que seria mostrado no videoclipe.

No dia 21 de março de 2022 o grupo fez seu retorno, lançando o mini-álbum e videoclipe do single Feel My Rhythm. O vídeo apresentou diferentes referências a movimentos artísticos, e o Red Velvet mostrou mais uma vez sua preocupação em estender o conceito clássico para diversas camadas de produção.

Presença do Rococó

O movimento artístico Rococó nasceu na França iluminista, se opondo ao barroco, que tinha características como a forte influência religiosa, as angústias da existência humana e cores intensas como tons terrosos, vermelhos, verdes e azuis escuros. No Rococó, essas cores são substituídas por tons rosa e verde-claro — muito presentes no clipe do Red Velvet — além de abandonar os paradoxos da existência humana e religiosidade para representar a futilidade, liberdade e erotismo da alta sociedade.

A referência a obras do movimento aparece já no início do clipe com A espiã (Paul Dominique Philippoteaux), com a integrante Seulgi subindo a escada para olhar por cima de um muro. Isso também pode aludir a diferentes quadros, como Por cima do muro (1865, Filippo Palizzi), e A menina curiosa (1864, Jean-Baptiste-Camille Corot). Entretanto, o tom cor de rosa do vestido e o chapéu indicam uma possível menção à pintura de Philippoteaux.

A espiã, de Paul Dominique Philippoteaux [Imagem: Reprodução/SM Entertainment/Wikimedia]

Outra referência é O balanço (1767, Jean-Honoré Fragonard), que aparece de forma breve, com Irene sentada em um balanço apenas por alguns segundos, a expressão solene se assemelhando com a da pintura.

O balanço, de Jean-Honoré Fragonard [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Irmandade Pré-Rafaelita

A Irmandade Pré-Rafaelita — também conhecida como Pre-Raphaelite Brotherhood ou P.B.R, como assinavam as pinturas — foi um grupo formado por jovens artistas ligados à Royal Academy de Londres. A sociedade secreta foi fundada a partir do inconformismo com o academicismo que rodeava a criação artística no período e que impedia os artistas de exprimirem a sinceridade perante a natureza por meio de suas pinturas, ou seja, reproduzi-las sem os filtros impostos pelos ensinamentos da academia.

Em Feel My Rhythm, há três pinturas representantes dessa corrente artística: Ofélia,  (1851, John Everett Millais), Ninfas encontrando a cabeça de Orfeu,  (1892, John Waterhouse) e Colham os botões de rosa enquanto podem (1909, John Waterhouse).

A pintura de John Everett Millais retrata uma cena da peça Hamlet, de William Shakespeare. Na trama, Ofélia é movida por um estado de loucura quando seu pai é assassinado por Hamlet, seu amado. Então, ela cai em um riacho e morre afogada. Na pintura, é possível apontar diversos símbolos desse desfecho, como as plantas e flores, por exemplo o salgueiro, a urtiga e as margaridas, que podem ser associadas a amor esquecido, a dor e a inocência. A flor dos amores-perfeitos pode se referir a um amor proibido, ou ao amor que se tenha por outra pessoa. A papoula tem o significado de sono e esquecimento e pode ser associada à morte. A miosótis, também chamada de não-me-esqueças, tem como significado o amor verdadeiro. Além dessas, Ofélia usa violetas em volta do pescoço, o que pode significar a morte da inocência. 

No clipe de Red Velvet, Ofélia é substituída pela integrante Joy. A quantidade de flores, que aparecem em abundância na pintura, é diminuída no clipe, talvez pelo fato  da cena ser reutilizada na representação de Ninfas encontrando a cabeça de Orfeu.

Ofélia, de John Everett Millais [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Usando a mesma composição com Joy, mas em um enquadramento expandido, outra pintura é mostrada: Ninfas encontrando a cabeça de Orfeu, de John Waterhouse. 

A pintura ilustra Orfeu, filho de Calíope, deusa da poesia épica, e Apolo, deus da música e do sol. De acordo com o mito, Orfeu era o maior musicista e poeta, cujas músicas encantavam a todos, inclusive salvando a vida dos argonautas contra o canto das sereias.  Na história, ele é brutalmente assassinado e esquartejado pelas Mênades, nome dado às mulheres fanáticas que serviam à Dionísio, deus do vinho e das festas. O corpo de Orfeu é jogado no rio, mas sua cabeça, mesmo após a morte, continuou a cantar.  Na pintura, isso é representado pela lira. 

Na releitura, Joy aparece como Orfeu, enquanto Yeri e Wendy aparecem no lugar das ninfas. O fundo da imagem é uma cópia quase perfeita do quadro original, com os mesmos elementos e cores.

Ninfas encontrando a cabeça de Orfeu, de John Waterhouse. [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Outra pintura do mesmo autor é Colham os botões de rosa enquanto podem, cuja cena no clipe se destaca pela posição exata das integrantes Seulgi e Yeri, que colhem morangos e não flores como no quadro original, enquanto Joy aparece no fundo, assim como na pintura. Além disso, há a semelhança no tom de cor das roupas usadas.

Colham os botões de rosa enquanto podem, de John Waterhouse [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Influências do Surrealismo, Impressionismo e Renascimento

O Surrealismo surgiu na França, no início do século XX. O movimento é marcado por representações do irracional e do subconsciente, que desprezam a lógica ao criar as suas expressões artísticas e  ultrapassam  os limites da imaginação.

O Red Velvet traz elementos desse movimento artístico com as criaturas humanoides que aparecem durante o clipe. A maioria usa máscaras que remetem a pássaros. Na pintura surrealista The Barbarians (1937, Max Ernst), é possível observar alguns desses mesmos elementos.

The Barbarians, de Max Ernst [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

O impressionismo, movimento nascente da França no período da Belle Époque (1871-1914), também está presente no clipe. As obras desse  movimento tinham como características  as pinceladas rápidas, contornos imprecisos e a valorização do uso da luz do sol, uma vez que os quadros eram pintados ao ar livre.

Em Feel My Rhythm, o quadro apresentado é A mulher com Sombrinha (1875, Claude Monet). Essa é uma das referências mais evidentes, seja pela popularidade da pintura, seja pelos elementos presentes de forma clara: a sombrinha, as plantas, a posição das meninas, o ângulo e o destaque para o azul do céu.

A mulher com Sombrinha, de Claude Monet. [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Já sobre o Renascimento, uma das características fundamentais dessa corrente é a representação de figuras associadas à mitologia greco-romana. Isso é perceptível na pintura O nascimento de Vênus (1486, Sandro Botticelli), presente no clipe. O quadro revela a Deusa do Amor em sua forma romana, além da presença da Deusa da primavera, Flora, do Deus do vento oeste e mensageiro da primavera, Zéfiro e da ninfa Clóris.

Essa releitura talvez seja a menos perceptível visualmente, no entanto, as semelhanças ainda são nítidas, como a integrante Yeri dentro da concha com a mão posicionada da mesma forma que a pintura de Vênus, o chão azul que remete às ondas do mar e as flores envolvendo as outras integrantes do clipe, assim como envolvem as figuras divinas na pintura.

O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Uma história baseada em ‘O Jardim das Delícias Terrenas’ 

A obra de Bosch representa a criação do mundo [Imagem: Reprodução/Wikimedia]

O Jardim das delícias terrenas, (1505, Hieronymus Bosch) é a pintura de maior referência em Feel My Rhythm. Seus elementos aparecem múltiplas vezes, inclusive como parte da história do videoclipe. A obra é caracterizada pela divisão entre três quadros: o primeiro representa o paraíso terrestre; o do meio, os pecados; e o último, o inferno. O conjunto representa a criação do mundo. 

O contexto e a intenção do autor ao pintar esse quadro são imprecisos e por esse motivo, é difícil saber se o quadro se trata de uma ilustração da história sagrada ou de um cinismo quanto à deterioração da humanidade. Para essa reportagem, será usado como base o documentário holandês Interactive Documentary, Jheronimus Bosch, The Garden of Earthly Delights.

No primeiro quadro é ilustrado o paraíso divino. Nele, Adão e Eva, criações divinas, são mostrados nus segurando a mão do criador, além das montanhas no horizonte. Diferentemente do painel central, os animais em seu esplendor representam o milagre da criação divina, assim como os pássaros voando, elefantes e coelhos que simbolizam a fertilidade.  A estrutura cor de rosa — também interpretada como uma espécie de fonte —  é uma das referências encontradas no clipe de Feel My Rhythm.

 [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Ainda no primeiro painel, apesar de se referir ao paraíso, é possível encontrar uma coruja à espreita dentro da estrutura, de olho no que acontece ao seu redor. No documentário, a coruja é descrita da seguinte forma: “Ao contrário dos gregos antigos, aqui a associação não é com sabedoria ou inteligência, mas com o mal iminente e a destruição. Assim como as presas da coruja sempre devem estar em guarda, o homem deve permanecer alerta para o diabo à espreita. A coruja nos adverte: Cuidado, o mal está te observando, esperando uma oportunidade para atacar.”

No Red Velvet, Seulgi assume o papel da coruja dentro da estrutura. Ao longo do clipe, a integrante também aparece como outros pássaros. Curiosamente, esse é o único elemento do primeiro painel que aparece em Feel My Rhythm.

 [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

No painel central, é ilustrado o jardim com as “delícias terrenas”, com a representação da falsa impressão de um paraíso causado pela luxúria e pelo pecado. Na pintura, são mostradas pessoas nuas agindo sem qualquer pudor, cenas de sexo explícitas, grandes pássaros, seres humanos desesperados para consumir diferentes frutos, grandes estruturas compondo o horizonte, estranhas criaturas nos lagos. Para alguns, o painel central é visto como uma alegoria à transição espiritual.  Para outros, é a corrupção da humanidade. É nesse painel que as integrantes Joy, Yeri e Wendy parecem estar localizadas.

As estruturas com Yeri e Wendy são semelhantes às que aparecem no quadro central [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Há também uma abundância de cerejas, amoras e morangos. Na Idade Média, essas frutas possuíam diferentes conotações: fertilidade e erotismo para as cerejas, amor para as amoreiras e tentação e mortalidade para os morangos. No quadro de Bosch, há uma cena com um pássaro dando uma fruta às pessoas dentro de uma flor, que aparenta ser uma cereja. Em Feel My Rhythm, Joy aparece dentro da flor já desabrochada, e a fruta no bico do pássaro é mudada para uma bola de luz. No fim do clipe, Joy aceita a oferta, fazendo com que todas as outras integrantes se tornem pinturas.

 [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

A fruta que aparece com maior destaque ao longo do vídeo é o morango. Uma cena com Wendy mostra um morango gigante, que é comido por ela no final. Essa fruta, que é o símbolo da tentação, é oferecida por Irene e consumida por Seulgi, ambas localizadas no painel que simboliza o inferno.

Morangos aparecem múltiplas vezes, tanto no clipe quanto nos quadros [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Assim como as frutas, os pássaros também são recorrentes ao longo da pintura, ilustrando todos os três painéis. As aves, que não poderiam ficar fora do clipe, aparecem ao lado das integrantes em determinada cena. Além disso, Seulgi também aparece como a coruja do quadro, mais uma vez relacionando a integrante ao pássaro.

As integrantes do Red Velvet se sentam ao lado de pássaros gigantes em Feel My Rhythm.  [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]
 [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Por último, há o painel do Inferno. Nele, é mostrada a punição divina. Suas características são as cores escuras, ilustrações de diferentes formas de tortura e cenas de violência, como as pessoas em aparente desespero dentro de um lago, a cidade pegando fogo e os soldados portando armas. A pintura por vezes também é referida como “inferno musical” pela quantidade de instrumentos presentes no momento das punições dos pecadores.

Toda a obra de Bosch merece uma análise minuciosa, mas há três pontos principais que se destacam em Feel My Rhythm. O primeiro é o “homem-árvore”, uma estranha criatura com rosto humano. No quadro original, seu interior é usado como uma taverna, com pessoas sentadas em volta de uma mesa e uma mulher enchendo uma jarra próxima a um barril. Essa cena é reproduzida no clipe do Red Velvet com as integrantes em volta de uma mesa cheia de morangos. É possível que o rosto da criatura também tenha aparecido em outro momento junto de Irene, de forma não tão explícita visualmente, assim como outras cenas protagonizadas pela integrante.

[Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Em ambos os painéis descrevendo o paraíso há lagoas. Já no inferno, o corpo de água aparece congelado. “Hoje, o inferno é comumente associado ao fogo e ao calor. Na Idade Média, no entanto, houve várias descrições de inferno nas quais o gelo desempenhou um papel fundamental” é a explicação dada pelo documentário interativo citado anteriormente.

Irene é a integrante cujo vídeo individual contém menos semelhanças visuais com a pintura. Entretanto, é possível traçar uma conexão entre o caos no lago congelado da pintura e a cena de Irene em seu barco luxuoso. É perceptível que ela está no lago congelado devido às criaturas humanoides que patinam em volta dela. 

 [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

No inferno, a coruja faz mais uma aparição, dessa vez não à espreita, mas se deliciando de um banquete de seres humanos. O pássaro, que nesse novo quadro é uma espécie de demônio humanoide, aparece sentado em uma cadeira gigante, comendo e defecando os pecadores em um buraco que poderia ser interpretado como o esgoto. O Red Velvet traz a imagem de forma menos perturbadora, mostrando apenas Seulgi sentada em uma cadeira alta semelhante a da pintura de Bosch, novamente ligando ela à coruja.

Seulgi aparece mais uma vez como representação de um pássaro [Imagem: Reprodução/Wikimedia/SM Entertainment]

Com uma produção que leva o telespectador para dentro de um museu de artes e uma melodia que convida o ouvinte a “sentir o ritmo e dançar ao luar”, Feel My Rhythm mostrou que os burburios de excitação causados quando seu lançamento foi anunciado não foram em vão, e o Red Velvet, assim como reinventou as obras clássicas de múltiplas formas, também é capaz de se reinventar a cada lançamento.

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