Por Camilla Freitas
A torcida Grêmio Sampaulino, que mais tarde passaria a se chamar Torcida Uniformizada do São Paulo (Tusp), é tida como a primeira Torcida Organizada brasileira e foi criada em 1939, por Manoel Raymundo Paes de Almeida no bairro paulista da Mooca. Contudo, ela não possuía muitas das características que encontramos nas organizadas atualmente. Além de estender bandeiras, cantar hinos de incentivo ao clube – e até mesmo de provocação ao adversário-, fazer shows pirotécnicos, elaborar mosaicos dentre outras festividades feitas pela organizada, o que não vem tomando os noticiários de grande parte da mídia jornalística é a relação desses torcedores com a sociedade que o cerca, o que os leva não só a torcer pelo seu respectivo clube no estádio, mas também a promover outros tipos de manifestações.
Não é de hoje que Torcidas Organizadas possuem discursos politizados e favoráveis a melhorias sociais. A sua relação com a sociedade está ligada principalmente ao fato de que elas são o seu próprio reflexo e não estão alheias a isso. Em meio a crise da democracia brasileira vivida no período do governo militar, os Gaviões da Fiel se manifestaram publicamente contra esse regime abrindo uma faixa numa partida no Morumbi pedindo “anistia ampla, geral e irrestrita” como contou, emocionado, o fundador da principal organizada do Corinthians, Chico Malfitani, em um debate sobre a Democracia Corintiana na faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP). O próprio Corinthians esteve diretamente envolvido com a conjuntura política nacional da época, uma vez que seu presidente Wadih Helu colaborou com o Golpe e usava a imagem do time paulista para se promover politicamente enquanto nos campeonatos ligados diretamente ao futebol o SCCP ia de mal a pior. O reflexo disso foi a chamada Democracia Corintiana liderada por Wladimir, Casagrande e Sócrates e as manifestações da principal Torcida Organizada do time, que em sua ideologia afirma que “os gaviões nasceram para reivindicar”.
Atualmente, a própria Gaviões da Fiel iniciou uma onda de protestos que englobam tanto reivindicações a favor do futebol quanto às relacionadas a política como um todo. Tais protestos inspiraram outras torcidas como a Independente do São Paulo Futebol Clube, que não abriu mão do protesto na data de comemoração de seu quadragésimo quarto aniversário no domingo ensolarado do dia 17 de abril. As reivindicações estavam atreladas com a crítica ao futebol moderno e contra as represálias que as Torcidas Organizadas no geral estão sofrendo, como as proibições de bandeirões no estádio ( principal reivindicação da Independente neste dia, como afirmou Henrique, presidente da organizada) e a estipulação de torcida única nos clássicos paulistas.
A torcida Mancha Alvi Verde também entrou nessa onda de protestos contra as más condições que os torcedores vem enfrentando ao lidar com um jogo de futebol atualmente. No início do mês de maio, em 2015, a torcida recusou-se a cantar seus tradicionais cânticos em apoio ao time no estádio alegando ser um ato contra o futebol moderno. “Somos contra a atual política de valores de ingressos implantada pela diretoria, onde estão querendo fazer dos estádio um teatro e não um verdadeiro caldeirão. Entendemos que a arquibancada é o coração do time dentro do estádio, e o torcedor organizado dita o ritmo da arquibancada, é assim em todos os estádios ditos ‘Caldeirão’”, afirmou em nota oficial em sua página no Facebook a organizada do Palmeiras. Sobre o repúdio da “torcida comum” a esse ato , a Mancha acrescentou: “Hoje, foi a prova fundamental do que estamos falando, a torcida do Palmeiras, uma boa parte, xingou a nossa torcida, o nosso protesto, isso mostra que pra eles a Torcida Organizada é importante para o desempenho do time em campo, pois o time não estava bem e estava precisando de uma ajuda externa, ou seja, a nossa voz, e nós calados, para eles, estávamos contribuindo para esse mal desempenho”.
Não só a protestos de ordem política estão ligadas as Torcidas Organizadas dos principais times da capital paulista, a Independente possui em sua sede uma escolinha de bateria com o intuito de formar instrumentistas. Além disso, promoveu a entrega de 2.000 latas de leite em pó para escolas públicas vítimas da falta de merenda devido ao roubo das verbas que seriam destinadas as mesmas protagonizado por Fernando Capez, deputado estadual pelo PSDB. Já a Gaviões da Fiel, que se autointitula “do povo”, possui um departamento social que realiza desde doações de mantimentos, como a realizada no dia 8 de abril desse ano que doou mais de 500 mil itens para a “Associação Cultural Nossa Senhora das Graças” que atende 8 núcleos e faz mais de 1.000 atendimentos diários, até a realização de cursos profissionalizantes gratuitos, como o realizado em parceria com a empresa Tigre, e de baixo custo, como o realizado em parceria com a Faculdade e Colégio Drummond.
Por outro lado, justamente por ser um reflexo da sociedade, as Torcidas Organizadas, além de lutarem por ela, também se entrelaçam com suas mazelas e é nesse aspecto que estão relacionados preconceitos, como o machismo principalmente, e a violência. Abordar essa última é relativamente fácil uma vez que os principais noticiários, a opinião pública em sua maioria e a opinião policial relacionam o fato de um indivíduo pertencer a uma organizada com o fato dele ser um “bandido”. Isso porque são muitos os relatos de brigas entre torcedores adversários nos clássicos paulistas, além do próprio vandalismo algumas vezes praticado. Mas o que realmente choca é o intrínseco preconceito contra a mulher que ainda reina nesse meio. Torcedoras corintianas -que não quiseram ser identificadas- associadas à organizada Pavilhão 9, disseram que muitas vezes são proibidas de ir a alguns jogos que os homens julgam perigosos a elas. Dentro da Gaviões da Fiel, as próprias assessoras de imprensa garantiram que não podem falar em nome da Torcida, “quando você quiser falar com alguém, fale com um dos meninos”, afirmou uma delas que também não quis se identificar. Assim, nota-se o quanto as mulheres dentro do futebol, mesmo que na torcida, ainda são subjugadas e expostas a condições estabelecidas por homens.
De qualquer forma, há dentro das próprias organizadas quem diga que a perseguição a elas está diretamente atrelada ao fato de que seus membros são, em sua maioria, negros e pobres. Se isso é realmente um motivo para a não divulgação do trabalho social e político – tanto ligado ao futebol quanto à sociedade como um todo- que elas promovem não se pode afirmar, o que não se deve fazer, principalmente por parte da população no geral, é deixar de reconhecer o que essas entidades fizeram e fazem pela população que a cerca, e pelo esporte como um todo. O vínculo , que porventura, elas possuem com o crime não está desassociado ao que nós mesmos muitas vezes possuímos, até porque não se pode exigir uma completa integridade de um órgão composto por pessoas, pessoas diversas, que vivem em uma cidade tão violenta e excludente como São Paulo. Não se pode haver hipocrisia no trato com torcedores organizados, uma vez que eles, assim como nós, são reflexos do mundo em que vivem.