A primeira mulher negra a ganhar um Nobel de Literatura, em 1993, Toni Morrison, visita em Voltar pra casa (Companhia das Letras, 2016) a ideia de lar e pertencimento nos Estados Unidos em período de Guerra Fria, sobretudo para mulheres, negros e pobres. O livro, de poucas páginas e leitura fluida, conta, numa narrativa suave, o esforço do veterano da guerra da Coreia, Frank Money, para reencontrar sua irmã Ycidra, com quem sempre teve uma forte ligação fraternal, após receber uma carta segundo a qual ela estaria com a vida em risco. Em direção semelhante, veem-se as tentativas de Ycidra de estabelecer uma conexão consigo mesma.
Criados na casa do avô, mal tratados, guardaram em si, até quando lhes foi possível extravasar, o impulso de encontrar outros caminhos que não os de sua cidade em Geórgia. Frank parte para a guerra e Ci casa-se com um homem que a abandona e a joga no julgamento da família, conterrâneos e uma sociedade pouco aberta a mulheres independentes. Buscando superar os obstáculos, ambos tentam tatear de volta a um lugar que possam chamar de casa, onde consigam cicatrizar as marcas da vida: ela com as dificuldades de ser mulher e ganhar a vida sozinha; ele, com os demônios dos conflitos bélicos e a convivência com as lembranças de suas ações. A diferença é que não mais têm um ao outro, como na infância, quando a única certeza era que eles andariam juntos, apesar dos problemas.
Vai formando, enquanto a trajetória dos dois é narrada, um ar de angústia e melancolia que parece querer seguir até o fim. A sensação é de que foi essa a intenção de Toni, de modo a imprimir mais força às suas personagens e fazer jus ao ambiente pretendido: sul dos Estados Unidos da década de 50. E, assim, a autora realiza um trabalho magistral, pois constrói o clima de gradual transformação de suas personagens, o que testa o tato do leitor para acompanhar o processo de superação pessoal em meio às dores de Frank e Ci. Trata-se de um livro, então, que pode ser aplicado à vida de quem lê, adequando as proporções. É vida humana em luta e isso é real e atemporal – ainda mais as questões de gênero e emancipação feminina abertamente abordadas. É possível sair com uma ou mais mensagens, o diálogo pode ser intenso; ponto positivo para o romance.
Quando descobre que sua irmã poderia morrer por conta de experimentos de um médico para quem ela trabalhava, Frank reúne suas forças e vai ao seu encontro, sofrendo mais contratempos no caminho, mas nem por um momento admitindo a morte da pessoa que, mesmo com as distâncias, fora sempre sua âncora no mundo.
Oscilando com flashbacks da infância, Morrison constrói o regresso de Frank para salvar Ycidra, enquanto desnuda psicologicamente o personagem, revelando seus medos, opiniões, relações com um presente incerto, um passado atormentador e um futuro de renascimentos, sobretudo quando Ci, com a força conjunta das mulheres do bairro, luta para retornar à saúde e poder reavaliar sua vida, firmando sua posição enquanto mulher livre e construindo, com seu irmão, o trajeto de volta para casa.
Apesar do enredo de caráter épico – um grande retorno -, não se trata de uma história com muita ação e, por vezes, sente-se falta de passagens desse gênero. Em contrapartida, a autora preza muito pelo tom poético dos acontecimentos, ainda que banais, e em grande medida pela reflexão de temas afiados como guerra, redenção, psiqué humana, distinção de classe e patriarcado, embora não consiga atribuir a esses assuntos, em alguns momentos, a profundidade narrativa que eles merecem. De todo modo, é um livro rápido e provocativo de uma mulher consagrada por sua literatura representativa.
Por Wagner Nascimento
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