A reinvenção está no cerne de um intrigante paradoxo cada vez mais presente na cultura. A torrente de revisitações, remakes e releituras irrompe as barreiras de todas as linguagens artísticas da contemporaneidade e causa, simultaneamente, êxtase e revolta. Por um lado, a nostalgia clama por produtos passadistas (de American Horror Story: 1984 a Mulher Maravilha 1984). Por outro, a reutilização de obras estabelecidas em novos contextos causa fúria dos mesmos nostálgicos, como ocorre com o Batman de Robert Pattinson e A Pequena Sereia de Halle Bailey.
Tais casos dizem respeito a certas características do consumo cultural. O primeiro – super-herói que se recusa a malhar – confronta o símbolo da masculinidade que narrativas fantasiosas de histórias em quadrinhos se tornaram. Quando adaptadas à telona, são geralmente acompanhadas por um extensivo processo de publicidade pautado na fadiga de atores condenados a passarem meses em academias em nome do físico irreal de desenhos cartunescos.
Já o segundo lida com o explícito racismo de um público branco habituado a se observar exclusivamente em tela, que admite a presença negra apenas em narrativas construídas para suprir nicho determinado ou sustentar a excelência de um white savior (personagem branco sobre o qual recai a responsabilidade de combater o racismo – vide Histórias Cruzadas e Green Book: O Guia).
Ambos, no entanto, se escondem sob o véu de um conservadorismo inofensivo, que busca apenas preservar obras originais – mesmo que não estejam ameaçadas – e estimular a criação de novas histórias, desde que essas, também, não sejam provocantes demais. Por trás do argumento, no entanto, recaem séculos de história da arte movidos por revisionismo e mudança.
Diferentes tempos, diferentes provocações
Para Wagner Pinheiro Pereira, professor de História da Arte e da Cultura no Instituto de História da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), “não é possível pensar em uma arte homogênea, nem em uma única fonte produtora absoluta e muito menos em uma interpretação única”. Já Edy Carlos Leite da Silva, mestre em história da arte pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), diz que “chegamos a um nível de entendimento no qual tudo já foi inventado e daí caímos na reinvenção, o que não é negativo, mas extremamente positivo, pois arte tem que ser revista, relida e repensada em constante mutação”.
Ao encararmos sua história, então, nos deparamos com uma série de diálogos entre passado e inovação. As vanguardas modernistas, que hoje são de extremo sucesso e amplamente aceitas, se apropriavam de linguagens europeias que desafiavam a norma para compor uma nova identidade visual e conferir protagonismo a novas faces nas telas. Wagner comenta que a transplantação e a importação cultural deveriam urgentemente ser revistas e que, para tanto, A Semana de Arte Moderna de 1922 foi decisiva. A pluralidade e subversividade dos modernistas levou a episódios como o de 1917, em que Anita Malfatti foi notoriamente atacada por Monteiro Lobato, que considerava seu expressionismo o antônimo da “arte pura”. Já em 2019, a exposição Tarsila Popular, do Museu de Arte de São Paulo, quebrou o recorde de mostra mais visitada da instituição.
Por sua vez, o famigerado Renascimento, que hoje sustenta a ideia de arte como algo que deva prezar pela beleza e simetria, foi largamente transgressor em seu tempo tanto ao infundir diferentes ciências à arte, quanto ao representar divindades católicas em retratos humanizados e estimular o antropocentrismo. Exemplo mais célebre de tal movimento é a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, que ainda movimenta multidões a seu encontro no Museu do Louvre, em Paris. Para Edy é “onde as pessoas vão enlouquecidas só para vê-la, como se não houvesse mais nada dentro daquele espaço museológico. Digladiam-se para tirar uma selfie rápida diante daquela imagem e esquecem tudo que está por trás daquilo”.
Vista apenas como expressão imponente da tradição artística, a pintura é reverenciada sem questionamento pelas massas, mesmo que não haja compreensão do porquê de seu valor. Mas há quem siga ousando ao propor novos diálogos e espaços para a obra de arte. Em 1919, Marcel Duchamp, dadaísta consagrado, divulgou sua releitura da Mona Lisa. L.H.O.O.Q é um simples folhetim estampado com a imagem consagrada, sobre o qual foram pintados bigode, cavanhaque e a sigla que dá título ao ready-made (obra composta de objetos prontos antes da concepção da arte). As cinco letras referenciavam, em francês, a frase “ela tem o rabo quente” — vulgar e provocativa — a fim de desconstruir não só a aura intocável do retrato, mas, como alguns acreditam, abordar a homossexualidade de da Vinci, convenientemente ocultada de vários livros de História.
Um século depois, o revisionismo foi outro. Beyoncé e JAY-Z, um dos casais mais influentes da cultura pop e da música, alugaram o Louvre para a gravação do clipe da canção APESHIT. A faixa é carregada de referências às conquistas e à irreverência da dupla, que não só atingiu patamar ímpar de significância e sucesso, como se estabeleceu expoente do ativismo negro no mainstream. No clipe, a arte eurocêntrica das paredes contrasta com os corpos, arte, amor e expressões negras. Edy aponta que “quando Beyoncé e JAY-Z fazem aquilo, trazem a história do negro, do consumo e das artes e estão discutindo qual o lugar dessas histórias e quem tem poder sobre isso”. O historiador da arte também destaca: “imagine todas as pessoas que são fãs da Beyoncé, pela sua militância e postura diante das artes, de repente encararem-na dentro do Louvre, em frente à Mona Lisa – pondo um ícone da arte sob desconstrução”.
Além disso, a trajetória de Beyoncé em si também é de grande importância para a discussão de reinvenção de espaços e linguagens na cultura pop. Tendo alcançado o estrelato como parte da girlband Destiny’s Child, a cantora mergulhou no mercado fonográfico com seu inegável talento e presença de palco como parte da música pop, vista no geral como expressão artística comercial, divertida e sem grande profundidade. Ainda assim, Beyoncé não só ofereceu ótimos trabalhos como, em 2016, entregou ao mundo seu sexto álbum de estúdio solo, Lemonade, que elevava a questão racial ao epicentro de sua persona pública e subvertia a noção de sucesso e caráter apolítico do meio. O lançamento do single Formation gerou até mesmo um esquete do Saturday Night Live, maior programa de comédia dos EUA, sobre a reação a seu protesto.
Wagner crê que o mundo artístico esteja espelhando as demandas e aspirações discutidas pelas sociedades contemporâneas: “Beyoncé é, portanto, uma artista autoral, e não um mero produto comercial alienado/alienante da indústria cultural. Ela sabe da responsabilidade social do seu papel histórico na cultura midiática e o utiliza sabiamente para conscientizar as pessoas a construir um mundo melhor, livre de intolerâncias, preconceitos e racismos”.
Outro exemplo é o musical Hamilton, que se diferenciou ao infundir diversidade e a musicalidade do rap ao espaço predominantemente branco da Broadway, de modo a reler não uma obra de arte, mas a própria história estadunidense. O espetáculo aborda a atualidade e coloca no palco a população negra e latino-americana que teve terras e corpos explorados para a construção dos pilares da maior potência mundial. Tornou-se o maior sucesso do teatro musical em anos ao mesmo tempo que abordava racismo, feminismo, xenofobia e revolução.
Já algumas décadas antes, em 1989, Madonna confrontou a Igreja, o diálogo sobre sexualidade e racismo no vídeo de Like a Prayer. A música em si tratava-se de uma mescla de coro religioso, guitarra e os vocais animados e sensuais da cantora, que descrevia um amor misterioso, transcendental e inevitável – em uma das mais aclamadas músicas pop já lançadas, Madonna reforçava seu espaço na indústria, mas não era recebida de forma tão acolhedora. O clipe de cinco minutos – que a acompanha em uma jornada na qual dá vida a um santo negro, o beija, canta em frente a cruzes em chamas e testemunha brutalidade policial – gerou revolta e perda de contratos. A reapropriação de símbolos religiosos e cenários barrocos levou até mesmo a um boicote apoiado pelo papa João Paulo II.
A composição da obra, aliás, remete a outro desafeto do Vaticano: o pintor conceitual argentino León Ferrari, que produziu a série Releituras da Bíblia, na qual associava religião, guerra e sexualidade. Chegou a cunhar a frase: “a arte não será nem a beleza nem a novidade, será a eficácia e a perturbação”. As ameaças não eram estranhas ao artista, que foi perseguido pela ditadura argentina e refugiou-se no Brasil. Em maio de 2000, uma de suas exposições em Buenos Aires sofreu atentado com bombas de gás lacrimogêneo.
Por detrás da moldura
Para Wagner Pereira, “a recepção é sempre subjetiva e depende de cada público espectador. Os aspectos transgressores e/ou revolucionários na arte são sempre mediados pela visão de mundo dos indivíduos ou grupos sociais em determinado tempo histórico”. Nesse sentido, as manifestações a favor da estagnação artística são creditadas a uma série de dificuldades relacionadas à arte e ao diálogo, que parte do princípio educativo.
O que ocorre, segundo Edy, é que “a arte entra num lugar de escanteio na vida das pessoas porque estão completamente direcionadas ao mercado de trabalho e precisam gerar capital. Sendo assim, ela continua voltada para as grandes socialites diletantes, que circulam pelos museus e têm seus nomes estampados em catálogos”. A sociedade, então, carece do cultivo generalizado de um amplo espaço para debate embasado acerca da arte, e, consequentemente, de sua significância democrática, caráter mutável e minuciosidades. Para compreender uma releitura, afinal, é necessário compreender o original.
Parte disso é derivado da integração da educação artística como atividade obrigatória no currículo do ensino fundamental e médio brasileiros em 1971. Em meio à ditadura, era uma aula que visava a reprodução técnica das múltiplas expressões artísticas, tais quais as musicais, teatrais e visuais, mas não a reflexão ou análise da história das artes. Esvaziada de conteúdo, a educação artística tornou-se setor estigmatizado da educação, vista como trivial. A reestruturação do curso, a partir dos anos 1980 e concomitante à redemocratização nacional, almejou abordar a contextualização histórica, o senso crítico e a prática artística em diferentes escopos. Mesmo assim, até hoje a falta de recursos e espaços para tal no ensino público dificulta esse processo, além do tema ser subvalorizado em grande parte dos exames de admissão ao ensino superior.
A intocabilidade de obras consagradas não almeja, então, preservar seu significado ou contexto, mas a percepção dominante construída em torno de tais obras. As princesas e super-heróis citados no início do texto são totens daquilo que é esteticamente preferido; a arte dos museus apoia o eurocentrismo; o mercado da música pop prioriza o caráter apolítico. A arte em si, no entanto, é ferramenta de destruição dessas convenções e construção de novas conversas.
Nesse sentido, Wagner Pereira denota que “os novos cenários sociais transformam constantemente a cultura, impactando e transformando a (re)invenção da arte ao acrescentar em sua estética, linguagem, discurso e conteúdo os novos temas sociais que são colocados em pauta”. Ele conclui: “Sem a cultura artística passada não conseguiremos construir uma arte que inspire a democracia e a cidadania no presente e no futuro”.
Edy, por sua vez, destaca: “Os artistas de outrora provavelmente sabiam que suas obras seriam vistas como algo passado e, mesmo que fizessem algo para ser eterno, esse eterno jamais teria a mesma ideologia da época. Todo artista deve estar muito preparado para que a obra seja suscetível a críticas e a releituras. Não é desrespeito algum. É, na verdade, privilégio, porque reler uma obra é reconhecimento de sua imponência e vitalidade”.
Desse modo, então, através dos séculos, o diálogo entre diferentes períodos é estimulado na arte, pois assim como falamos de da Vinci – ou León, Madonna, Beyoncé, Tarsila do Amaral, Walt Disney e muitos outros –, da Vinci fala sobre nós.