Imagem: Cia das Letras/Reprodução
Por Giovanna Simonetti | g_simonetti@usp.br
Cuba, 1990. Reinaldo, assim como a maioria dos cubanos, não cresceu com facilidades e privilégios. Uma inacreditável sucessão de tragédias o deixam órfão e preso com apenas nove anos. Após um período em um reformatório, ele se vê jogado no mundo, obrigado a sobreviver por sua conta e risco. Esse é o ponto de partida de O Rei de Havana (Alfaguara, 2017), primeiro trabalho do célebre escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez.
Acompanhamos a trajetória de Rei, que de realeza não tem nada. Na verdade, é rei das malandragens. Da imundície. Das sacanagens. O seguimos, através de um narrador onisciente, pelo submundo de Havana: mendigos, prostitutas, traficantes, criminosos, bêbados. Rei precisa conviver nesse cenário marginalizado para conseguir se manter vivo, seguro e alimentado. É nas ruas da capital cubana e arredores que ele dorme, come, vai ao banheiro, bebe e transa.
Gradualmente vemos como esse plano de fundo afeta e transforma Rei. No início, não é como se ele gostaria de estar naquela situação. Mas não existe outra alternativa. Então ele decide aproveitar: fica bêbado, usa drogas, transa com desconhecidas. É nítida a desumanização e decadência do personagem, que se submete à condições precárias e indignas a fim de se anestesiar da sua realidade.
O sexo também tem grande destaque na obra. Os personagens são tomados por um desejo quase animalesco, impulsivo e insaciável e o ato sexual é uma forma de alívio, escape. As cenas de transa são descritas sem qualquer idealização: o suor, os cheiros, as secreções, os movimentos – tudo é muito realista e gráfico.
Gutiérrez trata dessa e de outras temáticas de forma nua e crua. Sem enfeites. Não há nenhum tipo de amenização ou eufemismo. A linguagem é direta ao ponto, sem rodeios. A obra é pesada, cheia de palavrões, cenas pornográficas e violentas. É difícil de ler, de engolir. O autor retrata os personagens dos jeitos que eles são, com suas falhas e preconceitos. Reinaldo, por exemplo, não deixa de ser machista, racista e homofóbico em alguns momentos. E essa retratação é feita de forma tão realista e impiedosa que, muitas vezes, é difícil distinguir o quanto daquilo é ficção ou é mesmo a opinião do autor.
Talvez haja momentos em que o leitor precisará parar e respirar antes de continuar lendo. Mas a construção, por mais pesada que seja, nos prende. Você pode até querer parar, mas não vai conseguir. O autor desenvolve um anti-herói que, mesmo com todos os seus defeitos, ainda recebe a nossa mínima simpatia. É impossível não ter um fiozinho de esperança de uma vida melhor e digna para ele. Queremos saber como isso vai acabar.
A história está longe de ser um conto de fadas. É um retrato animalesco, sórdido e cruel de Havana. Mas não é por isso que perde a relevância. Pelo contrário. A beleza de O Rei de Havana está no fato de que dá voz aos marginalizados. A obra com certeza consegue te mostrar experiências e pontos de vista inéditos. E não é mesmo para isso que serve a arte?