Por: Lázaro Campos (lazarocamposjunior@gmail.com)
Cada um de nós tem alguma história para contar e serve para muitas situações da vida. Não há causa que traga alguma explicação. Foi o lugar certo e a hora certa. O acaso cerca a vida humana desde duas pessoas fazendo o mesmo comentário simultaneamente numa roda de conversa até, segundo alguns historiadores, fatos importantes da humanidade. Na ciência não é diferente. A professora aposentada da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Dra. Anette Hoffmann, conversou com o Laboratório sobre o assunto e contou como foi a sua experiência com o acaso em sua carreira como pesquisadora.
O objetivo era estudar o papel da região septal do cérebro na regulação de funções neurovegetativas, ou seja, naquelas que são involuntárias como respiração e digestão. Depois de pôr a cobaia sob anestesia geral, a equipe implantou um eletrodo na região septal do cérebro – tudo isso antes do experimento ser iniciado. A função do eletrodo era “estimular eletricamente esta região e observar as alterações neurovegetativas, pois este era o objetivo inicial do trabalho.” Quando o experimento foi realizado, a anestesia se tornou superficial [de uma parte do corpo, apenas] e a reação da cobaia foi a manifestação de dor. Os sinais de dor eram movimentos de fuga, vocalização, aumento da pressão arterial e da frequência cardíaca. A partir disso a área septal foi estimulada pelo eletrodo e o estímulo levou à analgesia, ou seja, cancelamento da dor.
Portanto, o estudo que pretendia entender a ligação da área septal do cérebro com funções neurovegetativas acabou por descobrir que a área septal fazia parte do sistema analgésico endógeno (sistema interno de cancelamento da dor).
Essa pesquisa, feita juntamente com seus mestres, Miguel Rolando Covian e Maria Carmela Lico gerou uma nota preliminar sobre o achado e foi levada a um congresso da Associação Latino-americana de Ciências Fisiológicas em 1969. Ao lado de um trabalho de um cientista norte-americano, o estudo de Anette foi pioneiro no estudo dos mecanismos neurais envolvidos na analgesia endógena. “Hoje, há no mundo inteiro cientistas, livros e revistas dedicados ao assunto”, completou.
A doutora contou que foi esse caso e também o seu forte interesse pelo fazer artístico e pelas artes visuais que a levou durante a carreira acadêmica. Seu texto “O erro, o acaso e o método na construção da ciência” faz parte do livro “Ciência: da maravilha à descoberta”, publicado em 2011 pela Funpec-Editora. Perguntada pela definição de acaso, ela primeiro explicou que a ciência parte da hipótese, “ancorada no conhecimento prévio daquilo que já foi feito.” É na ocorrência de algo inesperado pela hipótese que surge o acaso. “Para a maior parte dos cientistas, este inesperado pode representar um inconveniente, a ponto de fazê-los abandonar o percurso planejado. Outros, mais abertos aos fatos como eles são e não apenas ao que desejaria que fossem, preferem acreditar que a natureza tem suas razões que podem não coincidir com as suas próprias, e que, ao desviar o curso de sua pesquisa, chegariam a descobertas inesperadas”, disse.
Esse tipo de acontecimento não é raro na ciência. Muitas invenções e descobertas que fazem parte do nosso cotidiano vieram desse inesperado, do acaso. É a famosa história do doutor escocês Alexander Fleming. Ele foi um dos vencedores do Nobel de Medicina em 1945, junto de Ernest Chain e Howard Florey, pela descoberta da penicilina. Ao sair de férias em 1928, o médico havia esquecido uma cultura de bactérias em seu laboratório. Quando voltou ao trabalho, notou uma cultura contaminada pelo fungo Penicillium notatum. A partir do estudo do fungo foi descoberta a penicilina, inaugurando a era dos antibióticos.

Ademais, existem as vezes em que o inesperado vem na descoberta de algo totalmente diferente do que se buscava. Foi o que aconteceu com os alemães Oscar Minkowski e Joseph von Mering. Eles retiraram o pâncreas de um cão para verificar a diferença da digestão de gordura. Mas ao analisar a urina do cão notaram que muitas moscas a rondavam, porque estava cheia de açúcar. A partir disso eles descobriram que o pâncreas secretava alguma substância que controlava o açúcar no organismo. Essa substância, a insulina, veio a ser descoberta e isolada em 1921. O uso da insulina é no combate ao diabetes.

A respeito dessas descobertas imprevistas, a Dra. Hoffmann comentou: “captar o significado de um fenômeno casual requer um conhecimento sem ideias fixas, imaginação, amor pela ciência e o hábito de contemplar acontecimentos inesperados. Existem cientistas que, tocados pelo sentido do maravilhamento frente à natureza, aceitam se envolver integralmente na aventura do conhecimento, e para isso mobilizam todas suas faculdades intelectivas e intuitivas.”
Outros vão mais longe e exploram a ideia de Louis Pasteur (1822-1895), inventor da vacina antirrábica e da pasteurização, de que “o acaso favorece as mentes preparadas”. Eles veem esses achados de coisas não procuradas como uma certa aptidão humana. Para isso se usa o termo “serendipidade”. Segundo a Dra. Anette, esse termo é de uso recente na ciência, sem que os primeiros estudiosos da lógica do método experimental tratassem do assunto. No entanto, exemplos não faltam àqueles que defendem essa noção do acaso. Notável ocorrido foi a experiência do químico alemão Friedrich Kekulé. O desafio dele era descobrir a estrutura do benzeno. Após uma sessão de estudos, o químico tirou um cochilo. E foi justamente quando sonhava com uma cobra engolindo a própria cauda que ele acordou. Encontrou ali a resposta para sua questão: a fórmula estrutural do benzeno era em formato de um anel fechado.

Diante da realidade, o acaso salta aos nossos olhos. Se não fosse por ele, nosso cotidiano seria bem diferente. Para alguém que começa o dia com cereal matinal Corn Flakes, sem um acidente na cozinha dos Kelloggs, nada chegaria até a mesa. O uso de antibióticos durante a Segunda Guerra Mundial é outro exemplo histórico da importância do acaso na ciência. E quanto à sua vida, o que seria dela se o acaso não aparecesse?