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Tiro esportivo mira reconhecimento e segurança

Modalidade que deu ao Brasil suas primeiras medalhas olímpicas sofre com estereótipos, falta de investimentos e desvalorização na opinião pública
Praticantes de tiro esportivo
Por Aline Noronha (alinenoronha@usp.br) e Júlia Sardinha (juliasardinha@usp.br)

Sinta a paz deste lugar: um silêncio aconchegante, sem gritos nem palmas, apenas um “pow pow” no ar. Você acabou de imaginar uma competição de tiro esportivo, prática pouco conhecida no Brasil. A atividade é complexa e vai além do “apenas atirar”.

Aconselhar que o atleta seja uma pessoa resiliente é de praxe para as práticas esportivas. No tiro, não é diferente: os competidores precisam lidar com imprevistos e frustrações no decorrer de suas jornadas. Os treinos – que podem ser diários em épocas de competições – auxiliam os praticantes a alcançarem o domínio das técnicas do tiro e, sobretudo, das suas mentes.

Amante da modalidade desde jovem, a porto-alegrense de 27 anos Georgia Furquim foi a primeira mulher a se classificar como representante brasileira na modalidade skeet – caracterizada pelo lançamento e acerto de pratos – do tiro esportivo nos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Do dinheiro à humanidade, o tiro esportivo é cíclico

Nas Olimpíadas, o tiro esportivo tem a sua variedade de categorias reduzida a três grupos:

1. Carabina: disparos são feitos em pé, ajoelhado e deitado, com as duas mãos.

2. Pistola: disparos com apenas uma das mãos.

3. Tiro aos pratos: disputado com espingardas ao ar livre e em alvos disparados de dispositivos automáticos. 

As competições são majoritariamente individuais, porém para Furquim, isso não quer dizer que o espírito esportivo, o companheirismo e a paixão mútua pela atividade devam ser abandonados. A atleta afirma que é essencial que os atiradores profissionais tenham humildade e força mental para competirem.

“Dentro do meu esporte, (…) não é uma competição tóxica. [Os atletas] são pessoas muito tranquilas e que gostam de compartilhar o conhecimento”

Georgia Furquim

Ser um atleta no tiro também exige uma boa condição financeira caso não haja patrocinadores. A lista de equipamentos pode parecer curta, mas o investimento na arma – que inclui gastos com as licenças legais –, nas munições, nos óculos de proteção e nos protetores auriculares é caro. Nas compras de Furquim, devido a sua modalidade, ela também precisa incluir os pratos.

O custo é compensado na segurança. Desconhecedores da atividade podem erroneamente relacionar o tiro esportivo a uma prática “violenta”, devido ao envolvimento de armas. “É o esporte mais seguro que tem. Não tem nada de violento”, a atiradora diz ao refutar os estereótipos.

Homem praticando tiro esportivo em um ambiente fechado
Nos clubes de tiro, são seguidas rigorosamente as instruções necessárias para se manusear uma arma de fogo e garantir a segurança do usuário [Reprodução/Agência Senado/Flickr]

Além de atleta olímpica, Georgia Furquim estudou Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para ela, o tiro esportivo é um esporte cíclico – com momentos de felicidade e frustrações –, sentimentos que ela não tinha no seu curso. Por isso, ela logo percebeu que não enxergava um futuro na arquitetura e voltou à atividade.

“Eu precisava me desfocar [da faculdade] e voltar a treinar, recuperar um pouco de mim, que já estava ‘meio que na UTI’. Competir a nível de uma disciplina olímpica traz muito mais desafios do que as modalidades não olímpicas, [por isso] eu dava um ‘pulinho’ para treinar”, relata Furquim. 

Preparar, apontar e… Competir!

As competições de tiro esportivo são muito mais recorrentes do que se imagina. Desde competições em território nacional até disputas internacionais, a atividade faz presença – em peso – no dia a dia do Brasil, ainda que invisibilizada para significativa parcela da população.

A trajetória de Georgia Furquim no tiro lhe trouxe importantes conquistas logo no início da sua carreira. Na sua estreia como atleta profissional em competições, nos Jogos Sul-Americanos de 2018, ela conquistou a medalha de ouro. Outros campeonatos dos quais a atleta participou são os Jogos Pan-Americanos e o Campeonato das Américas de Tiro (CAT).

Furquim coloca que, apesar do seu pontapé inicial ter sido um sucesso, os anos pré-olímpicos de 2022 e 2023 foram marcados por dificuldades. A falta de reconhecimento nacional e os baixos incentivos socioeconômicos impactam a frequência de treinos da atleta, deixando-a abaixo do nível de potências mundiais – como China e EUA – nesse aspecto.

Logo da CBTE
A Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE) é a entidade responsável pela promoção, organização e regulamentação da prática de tiro esportivo no país [Reprodução/CBTE]

‘Que tiro foi esse?’: da militarização ao esporte olímpico

Como esporte, o tiro herdou muitas características de suas origens militares, que serviram de modelo para as primeiras competições, como as disputas nas posições em pé, deitado e de joelhos. Os clubes de caça também tiveram sua participação ao inspirar provas que existem até hoje, como o skeet e a fossa olímpica. As origens do tiro esportivo estão ligadas às competições realizadas nas cortes europeias do século XV em alvos específicos e à caça de perus feita pelos colonizadores alemães, no século XVII, no território que viria a se tornar os Estados Unidos.

Já no século XIX, os clubes de tiro começaram a popularizar cada vez mais o esporte, que esteve presente na primeira Olimpíada da Era Moderna, em 1896, na capital da Grécia, Atenas. Na ocasião, 61 homens de sete países diferentes participaram das cinco modalidades do tiro esportivo. Os gregos foram o grande destaque da competição, com nove medalhas no total.

Imagem de uma das primeiras aparições do tiro esportivo nas Olimpíadas
Durante muito tempo, o número de modalidades do tiro foi variado: seu máximo foi 21, na Bélgica-1920, e seu mínimo foi dois em Los Angeles-1932. Desde Pequim-2008, a quantidade se manteve em 15 [Reprodução/Wikimedia Commons]

Nos Jogos de 1900, o tiro ao pombo chegou a ser praticado e 300 aves foram mortas, mas devido à rejeição do público, o uso de animais foi banido e nas edições seguintes foram usados pombos feitos de argila. Outra modalidade cancelada foi o tiro ao manequim, um duelo com pistolas que aconteceu somente em Atenas-1906 e Estocolmo-1912.

As mulheres só puderam ingressar no esporte em 1968, nos Jogos do Novo México, competindo nas mesmas modalidades que os homens, mas somente contra eles. As disputas exclusivas femininas chegaram apenas em Los Angeles-1984, através de duas categorias: pistola de ar e carabina de ar.

A primeira medalha para uma mulher no esporte chegou em 1976, com a estadunidense Margaret Murdock, que competiu junto aos homens e ganhou a prata após um empate técnico com seu compatriota, que levou o ouro. Apenas em Tóquio-2020 foram instauradas as primeiras competições com equipes mistas da história do tiro esportivo.

A estreia do Brasil nos Jogos Olímpicos foi em Antuérpia-1920. O país levou 22 homens para disputarem as provas de tiro esportivo, que garantiram as três primeiras medalhas olímpicas brasileiras. No dia 2 de agosto, Afrânio da Costa conseguiu a medalha de prata na pistola livre calibre 22; no dia seguinte, foi a vez do ouro de Guilherme Paranaense no revólver calibre 38.

Felipe Wu segura sua medalha de prata no pódio da pistola de ar 10 metros no Rio-2016
A próxima medalha no tiro veio 96 anos depois, com a prata de Felipe Wu na pistola de ar 10 metros no Rio-2016 [Reprodução/Wikimedia Commons]

Guilherme e Afrânio ainda conseguiram o bronze na disputa por equipes da pistola livre 50 metros juntamente com os atletas Sebastião Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade. A primeira medalha ganhada pelo Brasil está atualmente guardada no Museu do Fluminense, como era desejo de Afrânio, fanático pelo clube.

A história recente dos atiradores brasileiros

Nos Jogos Olímpicos Paris-2024, o Brasil levou três atletas para a competição. O carioca de 35 anos com carreira militar Philipe Chateaubriand, a catarinense de 22 anos Geovana Meyer e Furquim. Meyer ficou na 22º posição geral e foi a segunda melhor representante das Américas, na carabina três posições 50 metros. Já Georgia Furquim ficou na 26ª posição ao quebrar 111 pratos. A eslovaca Danka Barteková, que se classificou na última posição para a final, superou a brasileira em apenas nove acertos.

Georgia Furquim em frente a um letreiro que diz "Paris 2024"
Na hora de puxar o gatilho, Furquim acredita que a mente do atleta deve estar limpa de qualquer pensamento, porque eles podem atrapalhar o instinto natural de atirar na hora exata [Reprodução/Instagram/@georgiafurquimoly]

“Tu chega lá e entende onde está, mas não cai a ficha no primeiro momento”, destacou Furquim sobre a sensação de ter competido em Paris. A atleta completou que quando o evento estava próximo de começar, a emoção foi enorme por atirar no nível dos demais competidores. “É uma situação inédita e vem cobranças inéditas junto”, relata. Segundo a gaúcha, sua experiência ajudou para que o nervosismo daquele momento não afetasse seu desempenho na prova.

Entre suas inspirações olímpicas, a brasileira destaca Francisca Crovetto do skeet, que na última edição dos Jogos foi a primeira chilena a conquistar uma medalha de ouro. Furquim ainda pontua a guatemalteca Adriana Ruano, da fossa olímpica, como mais um exemplo, e reforça sua admiração pela força mental dessas atletas  somada a seus trabalhos de ciclo olímpico impecáveis.

Kimberly Rhode posando em frente a um pôster com sua foto e seu nome
Furquim também citou Kim Rhode, estadunidense que ganhou sete medalhas em sete Jogos Olímpicos e competiu entre as modalidade do skeet e da fossa dupla [Reprodução/Instagram/@kimrhode]

Rompendo preconceitos: um esporte familiar e seguro

Os benefícios do esporte aos seus praticantes são variados, por exemplo: melhora no humor, aumento da capacidade de concentração e qualidade do sono. No tiro, Furquim menciona a expressão “tiroterapia”, usada para comparar o hábito de frequentar clubes de tiro a uma solução para o estresse. Para ela, o prazer da prática não está relacionado a essa visão, e sim ao prazer geral de realizar uma atividade da qual gosta.

“Não tem nada de violento, se deixar uma arma paradinha em cima da mesa, ela não vai agredir ninguém sozinha”

Georgia Furquim

“Quando tu chega no clube de tiro e diz que nunca teve contato com arma de fogo, tu vai para uma salinha para aprender as normas de segurança, receber aula de segurança de manuseio e conhecimento sobre aquele equipamento”, expõe a atleta olímpica. Furquim ainda reforça que o sentimento bom dessa prática está em executá-la de maneira correta ao analisar seus movimentos precisos e ver sua evolução.

Hussein Daruich praticando tiro esportivo ao ar livre
Hussein Daruich é a nova promessa do tiro esportivo ao Brasil: em 2024, foi vice-campeão no Campeonato Mundial Júnior de Lima [Reprodução/Instagram/@hussein_daruich]

A medalhista ressalta que o tiro esportivo não olímpico é um hobby familiar para muitas pessoas. “O pessoal vai com a família para as provas, chega o carro ali, desce sogra, mulher, filho, desce todo mundo. É um esporte muito familiar que acontece em um lugar agradável, bonito e a estrutura é boa”, afirma.

Além disso, destacou o caráter democrático do esporte, haja vista que nem a idade – com exceção de crianças menores de 14 anos, que são proibidas de atirar – nem o gênero são limitadores para a sua prática a nível competitivo. “Homens e mulheres têm condições de ter um desempenho muito perto, igual até. Pessoas de 50 e de 17 anos, como o Hussein, têm o mesmo nível técnico. Quer mais democracia que isso? É maravilhoso”, afirmou a atiradora.

Em nome da lei

Estar alinhado com as regras, os procedimentos e as regularizações estabelecidas pela política nacional é importante para praticar o tiro. “Não é ilegal ter posse de armas no Brasil. [O tiro esportivo] não é um esporte ilegal e é permitido [aos atletas] ter armas de fogo”, afirma Georgia Furquim. De acordo com ela, a legislação brasileira exige um processo burocrático extenso para que uma pessoa possa manusear uma arma, incluindo a emissão de um Certificado de Registro (CR). No país, o órgão regulador da prática é o Exército.

Como profissional registrada, Furquim afirma ter apenas a posse de sua arma, mas não o porte. Isso significa que ela pode, legalmente, manter o objeto em sua casa, mas possui o chamado guia de tráfego — em vez do porte — para deslocar a arma somente até os locais de treino e competição.

O desequilíbrio com as leis nacionais vem quando a burocracia pesa de um lado e o apoio legislativo aos atletas de tiro esportivo, falta do outro. “Nós não treinamos tudo o que precisamos treinar, porque a legislação e os incentivos do esporte não chegam até nós”, ressalta Furquim.

Apesar de ser uma atleta da seleção Brasileira, ela consegue poucos descontos na compra de munições, já que os preços de compra são definidos pelos fabricantes, não pelos consumidores. Segundo a legislação em voga, atletas do tiro têm direito a quatro mil munições no período de um ano, mas, a nível de exceção, Furquim foi autorizada pelo Exército Brasileiro para ter suplementos suficientes para treinar antes dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Detalhe de uma arma utilizada em competições esportivas
Sem significativos investimentos públicos no esporte, muitos atletas do tiro esportivo não conseguem ter um alto rendimento. Georgia diz ser impressionante o fato de um brasileiro chegar à campeonatos internacionais [Reprodução/PxHere]

“A cada prato quebrado, ou seja, a cada disparo que eu dou, eu gasto R$4,00 de munição e R$1,00 de prato. Então, são R$5,00 [gastos]. No período de abril até julho [de preparação pré-olímpica], eu dei aproximadamente 300 tiros por dia”, afirma. Estima-se que Furquim gastou cerca de R$183.000,00 no período pré-olímpico.

Com o escasso apoio público, os atletas também têm a sua profissão desvalorizada. “A legislação nacional não separa o atleta de tiro esportivo da pessoa que atira por lazer.  Isso é uma questão muito dolorosa para nós [atletas de alto rendimento], porque não sabemos até quando o nosso esporte vai sobreviver”, completa Furquim.

Para o Exército Brasileiro, o grupo de atiradores registrados é dividido entre Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CAC). Georgia Furquim, categorizada como atiradora, defende que o último termo seja substituído por “Controladores”, uma vez que a caça é uma prática ilegal no Brasil e muitas das pessoas que possuem terras obtêm a certificação para controlarem espécies invasoras de animais em suas propriedades.

O tiro final do Brasil pode estar próximo

Para Furquim, o futuro do tiro esportivo é incerto no Brasil. “Se eu tivesse que colocar em uma escala médica, estaria no CTI (Centro de Terapia Intensiva) entubado. Respirando pelos aparelhos, com falência múltipla dos órgãos”, apontou a atleta. Ela reforçou que os custos para praticar os esportes estão cada vez mais elevados e as competições têm cada vez menos atletas; por vezes, não vale mais a pena fazer uma categoria exclusivamente feminina.

Georgia Furquim exibindo uma arma que utiliza na prática do tiro esportivo
“É muito chato toda vez que leio uma matéria que vincula termos injustos [ao tiro esportivo],  dói bastante”, desabafa Furquim [Reprodução/Instagram: @georgiafurquimoly]

A atleta olímpica afirma que o Brasil tem atletas fantásticos e atiradores invejáveis que às vezes desistem do esporte por, entre outros motivos, falta de dinheiro para continuar. “Nós temos uma joia de esporte democrático e com problemas de legislação e incentivo fiscal. É isso que barra o tiro esportivo de voltar a ser aquele esporte que nos dá muito orgulho e que trouxe as primeiras medalhas para o Brasil”, complementou.

Além disso, Furquim cita o preconceito do público ao associar o esporte à criminalidade como um motivador à falta de apoio que pode comprometer o seu futuro. “O tiro esportivo é um esporte e precisa ser tratado como tal, [é necessário] separar questões de lazer, defesa e polícia do esporte”, afirma.

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