Por Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
A cantora e compositora Ethel Cain acaba de se tornar a primeira artista trans a ter um álbum no top 10 das Billboard Charts (paradas da Billboard) nos Estados Unidos. Preacher’s Daughter (2022), lançado há quase três anos, atingiu esse patamar após prensagem em vinil — e chegou a vender quase 40 mil unidades entre 4 e 10 de abril de 2025.
Com três milhões de ouvintes mensais no Spotify, Cain lançará seu segundo álbum de estúdio, Willoughby Tucker, I’ll Always Love You, em agosto deste ano e entrará em turnê a partir do dia 12 do mesmo mês. O novo projeto pretende ser um prelúdio de Preacher’s Daughter, elucidando a história anterior aos acontecimentos do primeiro álbum. Mas o que esperar deste precedente?
Quem é Ethel Cain
Hayden Silas Anhedönia é o nome real da cantora, compositora e produtora conhecida profissionalmente como Ethel Cain. Ethel, além de ser um pseudônimo, é uma figura artística que Hayden incorpora em suas obras e performances nos palcos. A história da personagem é inspirada no terror religioso.
Nascida e criada em Perry, uma pequena cidade da Flórida, Hayden é uma mulher trans que foi criada em uma família cristã protestante da Igreja Batista do Sul: seu pai era pastor e sua mãe, cantora no coral da igreja. Integrada em uma comunidade ultra religiosa desde cedo, ela cresceu com aulas em casa e explicou, em entrevista para a Pitchfork, que era proibida de usar a internet, ouvir músicas não-cristãs ou até mesmo escolher as próprias roupas.
A artista contou que começou a estudar piano clássico aos oito anos. Sendo a mais velha entre quatro irmãos, sua infância foi simples, mas ela reforçou que, na maior parte do tempo, se sentia deslocada no ambiente em que vivia.
Em entrevista para a revista Them, Hayden discutiu sua relação com as restrições da religião, esfera central de sua arte. Ela conta que, desde que se assumiu como uma pessoa queer, aos 12 anos, se sentia presa em uma “caça às bruxas” na comunidade. “A primeira pessoa que disse que eu não iria para o inferno quando morresse foi o terapeuta que meus pais me obrigaram a ver”, comenta. Com 16 anos, ela fugiu da cidade em que morava e se mudou para Tallahassee, ainda na Flórida.
Aos vinte anos, Hayden se assumiu como uma mulher trans. Ela contou que, nessa época, estava envolvida com o uso de álcool e de outras substâncias como uma válvula de escape para as dificuldades que passava. Em 2017, começou a compor músicas no estilo bedroom dreampop – caracterizado pelo aspecto caseiro, liricismo sonhador e produção de baixa qualidade — sob o pseudônimo de White Silas, e lançou seu primeiro EP, Sad Music For Sad People.
Em 2019, ela abandonou o antigo nome artístico e publicou os EPs Golden Age e Carpet Bed EP sob a persona de Ethel Cain. Em 2020, ela assinou oficialmente com a Prescription Songs e, em 2021, lançou o EP Inbred, período no qual começou a conquistar um público maior. Seu primeiro clipe, da música Crush, foi dirigido pela própria e gravado em um estilo de filme caseiro dos anos 90, com apenas as imagens de uma câmera de mão.
A artista deu foco para a exaltação de sua feminilidade, sem perder o conceito gótico do interior americano. Hayden afirmou, na entrevista, que Ethel foi a sua “salvação divina”, pois ela pôde reivindicar suas origens negadas por sua comunidade e tomar as rédeas de sua própria narrativa. Críticos da música elogiam a “cinematografia” de suas canções, devido à construção de músicas com cenas e personagens.
“Eu estava num momento de fragilidade e até meio incerta sobre minha feminilidade, especialmente depois de me assumir, então Ethel foi um grande passo na direção contrária. Ela está sempre no controle da situação, sempre um passo à frente de tudo” Ethel Cain, para a Pitchfork
Em maio de 2022, Cain lançou seu primeiro álbum, Preacher’s Daughter, amparado na narrativa e na estética. Rodrigo, de 19 anos, é fã da artista e administra um fã clube nas redes sociais. “Quando um amigo me apresentou Preacher’s Daughter, eu achei bem diferente de tudo que eu já tinha visto”, comenta, em entrevista ao Sala 33. “O fato dela não ser apreciada me atraiu mais, porque eu entendo o quanto é difícil, para artistas que lançam trabalhos tão únicos, serem entendidos pelo grande público”.
Hayden escolheu construir uma história ficcional, mas transmite sua vivência pessoal com a religiosidade e com o enfrentamento de traumas durante toda a obra, utilizando a música como meio de ressignificar suas experiências da juventude até a vida adulta.
A história de Preacher’s Daughter
Na mesma entrevista antes mencionada, Hayden diz sobre a sua relação com a personagem Ethel: “Se eu sou o final bom, ela é o mau”. A história desse projeto pretende retratar uma realidade na qual, partindo de um conto americano clássico, os traumas da personagem a levariam a um caminho sem volta, com um desfecho obscuro. A cantora classificou o álbum como “uma parábola sobre o que acontece se você não quebrar um ciclo e deixar ele continuar até um ponto ruinoso”.
Abordando temas sensíveis, como abuso sexual, sequestro e assassinato, a obra é escrita de forma poética, mas sem perder o aspecto grotesco. Segundo a artista, Preacher’s Daughter faz parte de uma trilogia de álbuns que acompanharão três gerações de mulheres e serão lançados fora da ordem cronológica. O primeiro, portanto, é a história da mais nova, a filha (Ethel). Em entrevista para a Alternative Press, Hayden explicou o enfoque de sua ideia: “Um tema comum sobre o qual gosto de escrever é o trauma intergeracional. Coisas que foram passadas de geração em geração e como as ações de seus pais ou avós podem afetá-lo”.
Ao sair de sua comunidade em busca do seu lugar no mundo, a protagonista confronta sua fé, mas sem nunca deixar de sentir uma conexão com o sagrado. “A personagem quer viver um amor independente de ele ser perigoso, só para poder escapar das garras da família dela”, opina Rodrigo. “É como se ela fizesse qualquer coisa para não fazer mais parte da narrativa na qual ela foi criada”.
O álbum começa com Family Tree (intro), narrada em 1991 após a morte do pai de Ethel, em que ela reflete sobre os valores familiares e religiosos que estarão sempre presentes em sua vida. Em American Teenager, ela expressa frustração com o “sonho americano”, pois se vê presa em um sistema que não a permite viver em seus próprios termos.
Na quarta faixa, Western Nights, ela decide fugir de casa e, na estrada, entra em um relacionamento abusivo com um personagem, Logan. Em Hard Times, ela revela o abuso provocado pelo pai em sua infância, refletindo sobre a confusão que sentia, visto que o pastor era considerado uma figura influente na comunidade.
Na opinião de Rodrigo, Hard Times é a música mais significativa do álbum. “Quando ela percebe que havia algo de extremamente errado na relação entre ela e o pai, isso marca a história do álbum como um todo”, afirma. “Existe um álbum antes e um depois dessa faixa, porque a gente muda a nossa visão sobre a história completamente quando a escuta”.
Thoroughfare abre o segundo ato da obra introduzindo Isaiah, e Ethel enxerga nesse relacionamento uma esperança de futuro. Em um trecho, ela diz: “Pela primeira vez desde que eu era criança, eu pude ver um homem que não sentia apenas raiva”. Entretanto, em Gibson Girl, fica claro que esse comportamento era parte de sua manipulação.
Na nona faixa, Ptolemaea, uma atmosfera auditiva aflitiva revela que Ethel foi sequestrada por Isaiah, e, devido às drogas, começou a ter alucinações e percebe o seu destino trágico. Em Sun Bleached Flies, Ethel está no céu e reflete sobre sua relação confusa com a religião. Ela finaliza a faixa cantando “God loves you, but not enough to save you” (Deus te ama, mas não o suficiente para te salvar).
Por fim, em Strangers, ela aceita sua falta de controle sobre o seu corpo e o ouvinte descobre seu aterrorizante fim – Ethel é canibalizada pelo homem que a sequestrou. “Trazer o canibalismo como metáfora é uma escolha bem obscura, eu nunca tinha visto algo parecido em nenhum outro artista”, diz Rodrigo.
Um elemento muito importante nesse disco é o simbolismo dos títulos de algumas músicas. A Gibson Girl, por exemplo, é uma figura criada pelo ilustrador americano Charles Dana Gibson, que determinou o primeiro padrão estético feminino nos Estados Unidos. Para Ethel, simbolicamente, a única forma de existir como mulher no mundo seria através da exploração e do abuso, pois ela nunca conheceu nada além disso.
Outra referência ocorre em Ptolomaea, nome dado a um dos giros do nono círculo (por isso, a nona faixa) do Inferno de Dante. A Ptoloméia é projetada para abrigar os indivíduos que traíram seus convidados – nesse caso, Ethel seria a convidada do homem que a sequestra, e ele seria o traidor. August Underground, por sua vez, é homônima a um filme de serial killer.
Ethel Cain se apropria dos arquétipos difundidos pela cultura pop dos Estados Unidos para narrar uma história de terror — para ela, não existe nada do glamour do sonho americano, e não há ninguém para salvá-la.
Colaborações
Hayden é uma artista muito ligada à cena alternativa atual. Ela fez uma curta turnê na Europa em junho de 2024, com shows em Paris, Amsterdã, Londres e Dublin. No mesmo ano, também participou de diversos festivais nos Estados Unidos, como o Summerfest (Milwaukee), o Hinterland (Iowa), o Thing Festival (Washington), o Bonnaroo (Manchester) e o Lollapalooza (Chicago).
Algumas das primeiras colaborações realizadas pela cantora foram no EP Inbreed, que contém features com artistas como lil aaron e Wicca Phase Springs Eternal.
Em 2024, a cantora lançou um cover de For Sure, originalmente da banda American Football, como parte de um projeto de celebração dos 25 anos do álbum de estreia do grupo. “A narrativa sonora deles me inspirou de maneiras que eu não consigo contar ao longo dos anos, então ser convidada a contribuir para essa edição de capas foi realmente uma honra”, comentou Hayden em entrevista.
Para Rodrigo, a melhor colaboração realizada por Cain foi Famous Last Words (An Ode To Eaters). “Originalmente, ela escreveu essa música inspirada no filme Até os Ossos, que é um dos meus favoritos”. Porém, a canção não foi oficialmente lançada até um projeto musical de Matthew Williams, diretor criativo da Givenchy – marca internacional e renomada de perfumes. Williams explica que o compilado pretendia incluir “música de nossos amigos, colaboradores e músicos favoritos”, e Cain foi uma das convidadas.
“A Hayden traz para a cena alternativa uma persistência que eu acho que falta em alguns artistas”, comentou o entrevistado. No início de 2025, Cain lançou o EP Perverts. Apesar de ser uma extensão natural do conceito de seu álbum, o EP é mais experimental e se aprofunda na ambientação sombria. Em Preacher’s Daughter, a melodia das composições por vezes mascara o conteúdo macabro das letras: em Perverts, o ouvinte não tem esse alívio.
As expectativas para Willoughby Tucker, I’ll Always Love You estão altas, e basta esperar para descobrir qual continuidade a história de Ethel receberá. Hayden está fazendo uma parceria com a organização The Ally Coalition para doar US$ 1 de cada ingresso vendido de sua turnê para organizações comprometidas com a proteção e a segurança da comunidade trans.