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Sexo na televisão: o papel dos coordenadores de intimidade

Normal People (2020) mostra como o sexo pode ser retratado com cuidado e profundidade, ao desafiar a tendência conservadora que marginaliza cenas íntimas no audiovisual
Por Beatriz Sandoval Cruzeiro (beatrizsandoval@usp.br)

Apesar da crescente liberdade nas plataformas de streaming, o sexo na televisão ainda causa incômodo quando foge da pornografia emocional ou da espetacularização. Ao mesmo tempo em que discursos sobre liberdade, identidade de gênero e sexualidade crescem nas redes sociais, a presença de cenas de intimidade em produções do audiovisual é frequentemente criticada e negligenciada como uma parte descartável das narrativas. Essa contradição revela uma tensão cultural persistente: enquanto o debate público avança em direção à aceitação da diversidade e da complexidade dos vínculos afetivos, o audiovisual ainda encontra resistência ao explorar a sexualidade como uma dimensão legítima da experiência humana. 

Cenas de sexo, quando tratadas com seriedade e profundidade emocional, têm o potencial de revelar vulnerabilidades, fortalecer arcos narrativos e aprofundar o desenvolvimento de personagens. No entanto, muitas vezes são reduzidas a elementos supérfluos ou são alvos de censura moral, especialmente quando escapam dos moldes heteronormativos ou desafiam padrões estéticos convencionais. 

De tal maneira, cenas íntimas devem ser tratadas com seriedade e receber uma direção tão cuidadosa quanto cenas de ação mais complexas, respeitando a vulnerabilidade dos atores e a importância narrativa da intimidade. Nesse contexto, ganha relevância a profissão de Coordenador de Intimidade, cuja presença ou ausência nos sets de filmagem tem gerado polêmica nos últimos meses. Um exemplo recente é o filme Anora (2024), vencedor do Oscar de Melhor Filme, que optou por não contar com profissionais dessa função, o que levantou uma onda de críticas — tanto favoráveis quanto contrárias — nas redes sociais devido à decisão de Mikey Madison (protagonista do longa-metragem).

Em entrevista com a atriz Pamela Anderson, no talk show Actors on Actors da Variety, Mikey afirma que os produtores a ofereceram um coordenador de intimidade, mas ela e Mark Eydelshteyn, que interpreta Ivan, escolheram manter a produção menor. A artista completa que encarou as cenas e coreografias sexuais do longa como parte do seu trabalho de atriz

“Minha personagem é uma profissional do sexo, e eu já tinha visto os filmes do Sean e conhecia sua dedicação à autenticidade. Eu estava pronta para isso.”

Mikey Madison

Mas, afinal, o que fazem e como trabalham os coordenadores? Historicamente, cenas íntimas entre atores eram muitas vezes dirigidas sem protocolos claros, o que deixava os profissionais vulneráveis a situações desconfortáveis, invasivas ou até traumáticas — como no caso do filme Azul é a Cor Mais Quente . A falta de limites bem definidos e a pressão para “entregar realismo” resultaram em experiências abusivas, com relatos frequentes de assédio e exploração.

A busca por um profissional que ficasse responsável por essas cenas delicadas ganhou força especialmente após a insurgência dos movimentos#MeToo” e “Time’s Up”, que expunham práticas abusivas em diversos níveis da indústria audiovisual.

Diferente do que Madison afirma, a presença de um coordenador de intimidade não retira a autenticidade da performance: “A Coordenação de Intimidade entra como um elo entre as propostas artísticas e a ética com os corpos em cena. Não estamos aqui para mudar as cenas pensadas pela direção ou roteiro, mas sim propor que seja feita de forma segura.”, destaca Juily Manghirmalani, coordenadora de Intimidade certificada pela Intimacy Professionals Association (IPA), em entrevista para a Jornalismo Júnior.

Segundo a profissional, o trabalho de preparação para cenas íntimas envolve um processo cuidadosamente estruturado, no qual os movimentos são ensaiados com antecedência, respeitando limites claros de contato, tempo e intensidade. Esses momentos são planejados com o apoio de recursos que garantem segurança física e emocional ao elenco. Ao contrário do que se imagina, essa previsibilidade não reduz a carga emocional das cenas — ela potencializa a entrega dos atores, justamente por haver um ambiente de confiança mútua e acompanhamento profissional constante, o que muitas vezes resulta em performances mais verdadeiras e impactantes.

“Tecnicamente, há ensaios e uma coreografia pré-definida, que delimita onde o toque acontece, com que intensidade e em que momento, juntamente do uso de proteções físicas, a fim de que os atores estejam no controle dos passos da performance.” 

Juily Manghirmalani

Por que cenas de intimidade são consideradas descartáveis para a  juventude atual?

Além da falta de compreensão sobre a seriedade das cenas sexuais em narrativas, cada vez mais os jovens se expressam de maneira contrária à presença desses conteúdos nas produções por meio das redes sociais.

 

Internautas expressam, nas redes, incômodo com a presença de cenas de sexo [Imagens: Reprodução/ X]

Essa postura puritana representa a nova onda conservadora que atinge os jovens, que são bombardeados diariamente com conteúdos de ideologia conservadora. Uma pesquisa realizada recentemente pela Universidade da Califórnia aponta, inclusive, que grande parte da Geração Z demonstra preferência por retratos de relações platônicas nas telas, considerando cenas de teor sexual como dispensáveis para o avanço das narrativas. 

Após anos de avanços em temas como liberdade de expressão, de gênero e sexualidade, começam a surgir sinais de que parte da juventude pode estar revendo — ou até mesmo recuando — em relação a esses ideais. Esse aparente retrocesso pode estar ligado a um desejo de controle diante de um mundo cada vez mais caótico, onde a exposição constante — tanto corporal quanto emocional — causa exaustão. Resta saber se esse é um novo tipo de conservadorismo disfarçado de autocuidado ou uma tentativa genuína de encontrar outras formas de lidar com o afeto, o desejo e a intimidade.

“O conservadorismo é exatamente conservador porque vem no sentido de pegar a harmonia social. […] Sempre se apega a esses discursos de pureza, de proteção, de harmonia, de condição, de gerar uma condição social de que o conservador está do lado do bem.”, explica Katya Braghini, Doutora em Educação, professora e pesquisadora do PEPG em Educação: História, Política,Sociedade (PUC-SP) e escritora do livro “Juventude e o pensamento conservador no Brasil”, em entrevista para o Sala 33.

Katya aponta que o conservadorismo não é apenas um conjunto de ideias, mas uma prática social que se configura conforme o contexto histórico. Ela ressalta que, em momentos percebidos como de “crise” (como o atual, com circulação massiva de informações e mudanças sociais), o conservadorismo ganha força ao se apoiar em discursos de proteção, moralidade e harmonia social — nesse caso, a rejeição contemporânea às cenas de intimidade. Essa rejeição crescente das cenas de sexo por parte da juventude atual pode ser compreendida à luz do moralismo digital. Segundo a professora, em um mundo cada vez mais individualizado e fragmentado, no qual vínculos sociais e coletivos se constroem e desconstroem com facilidade, há uma tendência a se apegar a discursos conservadores como forma de buscar segurança. 

“Estamos criando um mundo em que as pessoas também semeiam as desconexões, e o sexo e o envolvimento sexual acabam sendo marginalizados”

Katya Braghini 

Nesse contexto, a intimidade na ficção é muitas vezes vista com desconfiança ou como algo desnecessário — quando, na verdade, pode ser justamente uma via de reconexão emocional e social.

Além disso, a repetição de discursos sobre “proteger as crianças” e “manter os bons costumes” funciona  como justificativa para silenciar narrativas que abordam a sexualidade de maneira mais sensível e realista. Como aponta a entrevistada, essa adesão juvenil a ideais moralistas não é espontânea, mas sim fruto de um ambiente social que desagrega e isola. A juventude, ao internalizar esses discursos, atua como uma extensão da lógica conservadora, mesmo sem perceber. Essa dinâmica, ao se refletir nas críticas às representações de sexo no audiovisual, revela que o moralismo digital é menos sobre proteção e mais sobre controle — inclusive sobre o que pode ou não ser contado nas histórias.

Como a série Normal People rebate as expectativas conservadoras?

Normal People aparece como um respiro de produções sem intimidade física e de obras pautadas na sexualidade espetacularizada — uma abordagem em que o sexo é retratado mais como performance estética do que como expressão íntima de subjetividades, como no filme 50 Tons de Cinza (50 Shades of Grey, 2015) e na série Elite (2018-2024). 

Marianne (Daisy Edgar-Jones) e Connell (Paul Mescal) seguem uma linha diferente do comum. A narrativa, baseada no romance de Sally Rooney, rebate essas expectativas ao apresentar o sexo como uma extensão emocional das personagens,  não como espetáculo. As personagens se relacionam de forma vulnerável,  muitas vezes silenciosa, em que o toque, o olhar e a hesitação dizem mais do que palavras. A intimidade física entre eles é carregada de significado e funciona como ponte para o entendimento mútuo, para o cuidado, e para o enfrentamento das próprias fragilidades. Ao acompanhar Marianne e Connell, é possível perceber uma cronologia afetiva construída através de três elementos principais: nudez, entrega e confiança.

Com as cenas de intimidade coordenadas por Ita O’Brien — renomada por seu trabalho em séries como Sex Education (2019-2023) e I May Destroy You (2020)—, o processo foi conduzido de forma fluida e respeitosa, o que garantiu um ambiente de segurança e confiança para os atores. Essa sensibilidade transparece na tela e oferece também ao público uma experiência marcada por cuidado, autenticidade e profundidade emocional.

Durante a divulgação da série, Daisy Edgar-Jones compartilhou diversas fotos dos bastidores, mostrando um processo leve e divertido [Imagem: Reprodução/Instagram/@daisyedgarjones]

A primeira cena íntima entre os protagonistas já mostra o tom da série: há hesitação, cuidado, e principalmente comunicação. Antes de começarem a se relacionar, Connell pergunta a Marianne se ela está bem e se quer continuar, o momento deixa de ser sobre desejo imediato e se torna sobre respeito mútuo e consentimento —  algo tratado de maneira supérflua nas produções atuais, nas quais o consentimento só se torna uma questão e temática quando não existe.  A nudez é parcial, onde Marianne aparece mais, demonstrando sua entrega a Connell. Mas, o que se revela ali é mais íntimo do que a pele — é a vulnerabilidade de dois jovens tentando se entender.

Em entrevista à Elle, Daisy Edgar-Jones comentou que Connell foi retratado como delicado com Marianne na cena em que ela perde a virgindade, destacando que o personagem deixa claro que eles podem parar a qualquer momento e que não há qualquer tipo de pressão.

“Isso é tão importante ser visto, porque é exatamente assim que deveria ser qualquer relação – um espaço seguro e de diálogo”

Daisy Edgar-Jones, em tradução livre

Nos episódios seguintes, já em um relacionamento mais consolidado, o sexo passa a ser uma forma de conexão constante. A nudez se torna mais presente, mas nunca gratuita: ela é uma extensão da intimidade emocional, não uma ferramenta de choque visual. A entrega aumenta, mas junto com ela surgem desequilíbrios, especialmente na forma como Marianne se doa, às vezes de forma desigual. Ainda assim, a confiança segue como base, ainda que frágil.

O reencontro dos dois em Trieste, no episódio oito, marca uma das cenas mais intensas da série. A nudez aparece de forma mais evidente, mas o que realmente chama atenção é o que está por trás: um desejo de reconexão permeado por saudade, mágoas e afetos mal resolvidos. O sexo ali é menos uma celebração e mais uma tentativa de cura — dolorosa, mas honesta. Nos episódios finais, a relação entre eles amadurece. A nudez já não é mais um território de insegurança, e a entrega se torna mais consciente. Eles sabem mais sobre si mesmos, e isso torna o encontro físico mais terno, mais cúmplice. A confiança atinge seu ponto mais alto: não mais como certeza do futuro, mas como aceitação do presente.

Por fim, a cena mais íntima de todas é justamente a última, em que não há sexo, nem nudez física — mas há uma entrega total. Quando Connell recebe a oportunidade de estudar em Nova Iorque e Marianne o incentiva a ir, os dois se mostram em sua forma mais vulnerável: abertos, sem promessas, mas profundamente conectados  —  uma vulnerabilidade que antes só existia nas cenas íntimas. A confiança ali não está no que virá, mas no que existe entre eles, mesmo que silencioso.

A iluminação cuidadosa — como o uso expressivo da luz vermelha — foi pensada para reforçar o estado emocional dos personagens em cenas íntimas. [Imagem:  Divulgação/BBC/Hulu/IMDb]

Normal People transforma o sexo em linguagem, em gesto emocional, em ferramenta de construção de personagens. Não se tratam de cenas “quentes”, mas de retratos de humanidade. A série propõe um olhar que vai na contramão das narrativas conservadoras ou espetacularizadas: o corpo não como objeto, mas como extensão da alma e como a entrega dos personagens à relação.

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