Para Kyle Edward Ball, as semanas que seguiram a exibição de seu filme Skinamarink: Canção de Ninar (Skinamarink, 2023), no Fantasia International Film Festival, rapidamente se tornaram nada menos que um pesadelo acordado. Com um lançamento em cinemas estadunidenses e canadenses pela distribuidora IFC Films e outro na plataforma digital Shudder, programados para 2023, o longa de terror analógico começou a circular massivamente pela internet durante o Halloween de 2022, quando uma falha nas exibições online do festival, em julho, permitiu com que ele fosse pirateado.
O boca-a-boca de redes sociais e o compartilhamento feito por torrents e sites crípticos não apenas conferiu ao filme uma aura de mistério, como também elevou sua popularidade a níveis, até lá, inimagináveis para o diretor. Antes mesmo do vazamento, o trailer do longa já havia se tornado uma febre no Reddit e, posteriormente, uma série de Tik Toks e tweets fizeram com que Skinamarink fosse um dos assuntos mais falados nas discussões virtuais do cinema de horror.
“Nas primeiras três semanas após o pirateamento, eu tive uma crise, porque eu pensei que tudo tinha acabado, que o Shudder ia rasgar o acordo” disse Ball em conversa com o ator Patton Oswalt após uma exibição celebratória no Ace Theater DTLA. Não foi o caso: tanto o streaming quanto a distribuidora se moveram para mudar as datas de lançamento e, em janeiro de 2023, o filme foi lançado nos cinemas e conseguiu uma arrecadação de mais de 2 milhões de dólares, um lucro extraordinário dado seu orçamento de 15 mil dólares, arrecadado majoritariamente por crowdfunding, isto é, um financiamento coletivo.
Muito da popularidade e da intriga de Skinamarink veio de sua premissa angustiante e de sua estética única. Ao longo de uma hora e quarenta minutos, o filme conta a história dos irmãos Kevin (Lucas Paul) e Kaylee (Dali Rose Tetreault), duas crianças que acordam certa noite e encontram uma casa vazia, cujas janelas e portas para o mundo exterior subitamente desapareceram. A narrativa não é contada, no entanto, por meios usuais: sua câmera – majoritariamente estanque – mais parece fugir dos atores do que mostrá-los; seus planos longos e estáticos têm preferência por peças de mobília, esquinas de paredes, brinquedos espalhados e corredores sombrios, todos envoltos em escuridão; e seus diálogos são poucos e esparsos, por vezes dificilmente inteligíveis e ora legendados, ora não.
O que mais chama atenção na sua estilística geral, no entanto, é sua estética analógica. Por mais que tenha sido gravado digitalmente, o filme passou por um processamento pesado através de fitas Super 8 granuladas. Isso fez com que os visuais do longa remetessem às particularidades de fitas caseiras familiares gravadas ao redor da década de 1990, período quando a história se passa. Além disso, sua estética também constrói o terror de maneira muito particular: o granulado pesado contrastado contra cenas de predomínio da escuridão da casa cria visuais pouco nítidos e enigmáticos. As imperfeições da gravação analógica simulada pintam nas sombras ambiguidades e fantasmas que, ao remeter ou não a presença de algo escondido, brincam com a mente da audiência.
O estilo do filme é, afinal, uma confluência única de diversos gêneros cinematográficos, com inspiração direta no found-footage. Por sua estética analógica, sua narrativa vaga e seu lançamento particular, no entanto, o longa foi colocado sob o guarda-chuva de outra tendência do terror audiovisual, uma que remete à webséries, vídeos, curtas e obras multimídia que se tornaram febres na internet: o terror analógico.
Found-footage
Em 1938, a CBS Radio Network transmitiu aos Estados Unidos uma adaptação radiofônica do livro Guerra dos Mundos (H.G. Wells), feita pelo ator Orson Welles. Longe de uma apresentação ortodoxa, o programa fugiu das tradições narrativas do meio ao emular uma transmissão de rádio cotidiana que, vez ou outra, era interrompida por boletins urgentes sobre uma invasão marciana à Terra. Cenas como uma simples apresentação sinfônica eram subitamente entrecortadas por um narrador que anunciava com urgência explosões de gás em Marte ou relatos transmitidos de onde meteoritos teriam caído e revelado criaturas rastejantes. A cobertura jornalística é interrompida no momento em que os observadores teriam sido pulverizados por um dispositivo de luz.
O programa chama atenção ao emular a espontaneidade de uma cobertura jornalística ao vivo, de forma que as falhas e imprecisões do meio são usadas para ampliar um senso de realidade naquilo apresentado. Ele é, portanto, uma das primeiras instâncias históricas daquilo que, no audiovisual, posteriormente viria a ser referido como found-footage, isto é, obras que, ao utilizarem-se das características estilísticas de documentários reais, procuram enganar o espectador quanto a veracidade da narrativa apresentada, como explica o pesquisador Rodrigo Carreiro em um artigo sobre o gênero.
Para Marcos Kurtinaitis, coordenador de pós-produção no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP e doutorando do programa de meios e processos audiovisuais – cuja obra acadêmica analisa justamente o falso documentário e o found-footage –, a questão da imersão do espectador, uma das principais facetas do gênero, já podia ser observada nessa transmissão. Segundo ele, “é uma estratégia bem mais antiga da ficção de terror a tentativa de imergir o receptor dentro da história e de aproximar a realidade onde o filme busca esse ser aterrorizante ou, pelo menos, tenta convencer o receptor”.
O pesquisador também comenta a obra de Welles: “Tiveram alguns lugares nos Estados Unidos em que, de fato, acreditaram que estava acontecendo. As pessoas que sintonizaram a rádio naquele momento e pegaram a transmissão já começada, acharam que realmente estavam ouvindo uma reportagem sobre a invasão alienígena”.
Mais de 60 anos após a transmissão, em 1999, surgiu a obra que seria a maior responsável pela popularização do found-footage, A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999). O filme conta, em estilo documental, a história de três jovens estudantes de cinema estadunidenses que vão para a cidade de Burkittsville, em Maryland, para fazer um documentário sobre a lenda da Bruxa de Blair, e acabam se perdendo ao acampar em uma floresta local.
O longa, no entanto, mira no convencimento da plateia com a tentativa de conferir um grau de realidade a tudo que apresenta, tanto pela sua estética em si, com cenas em grande parte improvisadas e um método de gravação que procurava emular uma captura documental, como também pela mística de lenda urbana criada pelo marketing viral que precedeu seu lançamento.
Na realidade, A Bruxa de Blair surgiu primeiro como fenômeno cultural e, depois, como filme. Isso porque, na época, o primeiro contato que as pessoas tinham com a história era pelo boca-a-boca da internet e por meio de seu site, que já não está mais no ar, mas pode ser acessado pelo Wayback Machine. O blairwitch.com funcionava como um compêndio de todos os acontecimentos relacionados tanto com o próprio mito da bruxa, quanto também com o projeto dos três estudantes, seu subsequente desaparecimento e a forma como as gravações foram encontradas. Além disso, o estúdio também pendurou cartazes de pessoas desaparecidas e os marketeiros do filme injetaram fóruns na internet com informações sobre a lenda urbana fictícia.
O longa de 1999 foi a primeira instância dessa forma de marketing viral na internet, e serviu justamente para aumentar a imersão dos espectadores e enganá-los quanto a veracidade de tudo aquilo. “Quando A Bruxa de Blair foi lançado, a internet estava super no começo ainda, não existiam as redes sociais nem nada disso, mas, ainda assim, eles já tentaram usá-la como uma ferramenta de divulgação do filme e dessa imersão”, contou Kurtinaitis. “As primeiras pessoas que tiveram contato com A Bruxa de Blair pela internet tinham mais chance de acreditar que era uma história real”, acrescentou.
O filme, com seu micro-orçamento direcionado majoritariamente para a publicidade, arrecadou quase $250 milhões e foi seguido por mais uma série de outros filmes bem sucedidos em formato found-footage, como Atividade Paranormal (Paranormal Activity, 2007), [REC] (2007) e Cloverfield – Monstro (2008), que empregaram procedimentos estilísticos similares.
O fundamental e o que diferencia esse subgênero de qualquer forma de filmografia tradicional é o uso da câmera dentro da realidade narrativa das histórias e de sua diegese. Kurtinaitis também apresenta o termo para isso: câmera intradiegética. “A câmera é personagem, ela está dentro da história,” diz, “a câmera não é um um olhar onipresente e onisciente, ela, na verdade, está na mão de um personagem”.
O termo found-footage, segundo o pesquisador, também contém suas imprecisões. Segundo ele, “found-footage é um termo usado desde bem antes de aparecer nesse tipo de terror que se popularizou recentemente e que descrevia um procedimento da arte de vanguarda de construir obras de arte e filmes com imagens que foram, de fato, encontradas”. Para Kurtinaitis, os longas de terror do gênero “são, na verdade, mockumentaries, são falsos documentários. O termo mais abrangente e mais preciso para esses filmes seriam falsos documentários de terror”.
Terror analógico
Em 2006, um vídeo intitulado The Wyoming Incident foi postado no Youtube, acompanhado de uma creepypasta – isto é, histórias curtas facilmente compartilháveis na internet com temáticas de horror. Inspirado em acontecimentos como o Incidente Max Headroom, um caso real de 1987 quando um hacker invadiu a transmissão de duas redes de televisão de Chicago e substituiu a programação normal por imagens bizarras de um homem mascarado que falava com voz distorcida, o vídeo simula uma transmissão televisiva dos anos 1980 que é similarmente raptada.
As imagens injetadas na tela, no entanto, tomam a forma de textos enigmáticos contra um fundo preto – “Você não pode se esconder para sempre”, “Existe verdade na ficção” – entrecortados por flashes de cabeças digitais distorcidas. A transmissão é logo retomada e o canal segue com sua programação normal. A creepypasta conta que as baixas frequências que acompanhavam o vídeo teriam causado alucinações visuais naqueles que assistiram no dia.
The Wyoming Incident, por assumir uma estética de gravação em fita VHS e se tratar de uma transmissão televisiva corrompida, é considerado um dos exemplos mais anteriores daquilo que, posteriormente, viria a se chamar terror analógico. Porém, o vídeo também se comporta como um found-footage e serve para mostrar que as barreiras entre os dois fenômenos são nebulosas. Kurtinaitis, por exemplo, não vê diferenciação entre uma coisa e outra: “O que a gente chama de terror analógico seria, basicamente, a mesma coisa que já estavam chamando de found-footage de terror, exceto pelo fato de que tem essa ênfase em tecnologias ultrapassadas”.
“Vejo que o terror analógico não necessariamente é um filme e found-footage de terror geralmente é um filme ou um vídeo. E o terror analógico também se espalha por outras mídias, então, geralmente, tem também um blog, tem outros elementos, outras mídias que eles tentam ocupar para ampliar esse universo”, complementou. No caso, a outra mídia seria a creepypasta.
A diferenciação se torna ainda mais turva quando se considera não apenas o caso de A Bruxa de Blair, que, ainda segundo o pesquisador, “é claramente um exemplo de terror analógico” por sua estética e caráter multimídia, como também quando se olha para a segunda obra responsabilizada pela consolidação dessa forma de narrativa.
A websérie Marble Hornets (2009-2014), criada por Troy Wagner, tem uma proximidade inegável com o found-footage tradicional. Gravado com o mesmo estilo de câmera na mão, intradiegética, e sob a mesma premissa de gravações encontradas e publicadas após os eventos da narrativa, a série se insere no terror analógico por fazer parte de uma mitologia online. Composta de dezenas de vídeos curtos, a série consiste em fitas do jovem cineasta Alex Kralie, que, durante as gravações de seu filme Marble Hornets, começa a ser assombrado por uma presença sobrenatural. A obra insere a história em um universo alternativo ficcional da internet chamado Slenderverse, baseado na creepypasta do Slender-Man, um monstro criado por Eric Knudsen em um post no fórum Something Awful, em 2009.
A websérie também deixa claro outro lado fundamental do terror analógico e do terror de internet: seu aspecto comunitário. O Slenderverse, por exemplo, não é uma obra autoral e pessoal ligada a um autor específico, mas sim uma construção coletiva de uma comunidade da internet que se baseia em incontáveis histórias e personagens do mesmo universo ficcional, criados por pessoas diferentes. É o mesmo caso para sites como a SCP Foundation, que também já se arriscou na estética do terror analógico.
Unfiction é como se convencionou chamar essas formas de narrativa. São obras que pairam entre verdade e ficção, que se comportam e são contadas como se existissem na realidade e, frequentemente, são de construção comunitária. Novamente, A Bruxa de Blair e seu site se comportavam dessa maneira. Nesse quesito, surge também a questão da interatividade, isto é, a forma como estas obras frequentemente requerem um engajamento ativo do espectador, seja por meio da discussão online, da submersão em sites e hiperlinks na internet, da resolução de enigmas ou mesmo pela criação artística.
Outro nome surge nesse caso: ARGs (Alternate Reality Games ou Jogos de Realidade Alternativa), obras multimídia que, pertencentes a uma unfiction, escondem suas histórias atrás de links, posts isolados em fóruns, quebra-cabeças e códigos que formam, em união, uma caça ao tesouro atrás de uma narrativa coesa. Não é à toa que muito da popularidade de obras desse gênero veio dos vídeos de teorias feitos por canais como Nexpo, Wendigoon e The Film Theorists.
“Elas escapam mais ao controle do criador”, afirma Kurtinaitis. “Isso está em todos os filmes desde o início do cinema. Desde a primeira vez que o diretor falou ‘eu quero que aqui nessa estante que aparece na sala do personagem tenha tal livro’, porque esse livro é uma pista, querendo ou não, para um subtexto, para algum outro tema que aquela obra também queria trazer. Essas pistas sempre existiram e foram parte das narrativas, mas elas não eram fundamentais. Agora, elas são o principal. A graça de consumir o terror analógico é um pouco achar essas pistas. Elas não mais só apontam para o subtexto, elas fazem parte da própria trama”.
Nesse contexto, a primeira obra que consolidou muitos dos elementos que são associados ao terror analógico como se conhece atualmente foi a websérie Local 58 (2015-), criada por Kris Straub. Todos seus episódios partem de uma mesma premissa: a transmissão do canal televisivo Local 58 é corrompida por alguma entidade sobrenatural e sua programação usual é substituída por alguma variedade de bizarrice e terrores cósmicos.
No primeiro vídeo do canal, Weather Service, por exemplo, o anúncio da programação é interrompido por um alerta de emergência, em texto branco contra um fundo preto, com o anúncio de algum perigo meteorológico que não pode ser observado a olho nu. Uma correção, em seguida, com fundo vermelho, diz o contrário, que o perigo é, sim, observável. “Vá para fora”, ordena o alerta. Logo em seguida, com fundo distorcido e imagem corrompida, o texto diz: “NÃO OLHE PARA A LUA”.
Outro vídeo, You Are on the Fastest Available Route, parte do mesmo lugar: um anúncio de programação, interrompido, corta para filmagens noturnas da dashcam de um carro que segue instruções do GPS. O motorista sai da estrada e entra em um caminho na floresta enquanto a voz do programa acompanha a aproximação ao destino misterioso: “Você está na rota mais rápida disponível”. O carro chega ao destino e a voz do GPS instrui: “Desligue os faróis”. Um som estrondoso é emitido e o carro sai em fuga.
Local 58 marcou a popularização de diversos elementos estilísticos e temáticos que se veem até hoje em obras do gênero. Na realidade, a websérie também cunhou o termo em si. No vídeo Station ID, a frase “Terror analógico em 476 MHz” marcou a primeira vez que essa nomenclatura foi usada. A obra serviu, afinal, como uma consolidação de tudo aquilo que viria a ser associado com o terror analógico: a transmissão televisiva corrompida, a estética da tecnologia analógica falha, os alertas meteorológicos acompanhados de seu clássico barulho e os temas cósmicos. A série também ganhou seu próprio ARG.
O que seguiu a viralização do Local 58 foi, na realidade, uma série de one-offs de autores variados que se inspiravam na estética apresentada pela websérie e faziam obras similares. Não é por acaso: uma das marcas mais pronunciadas do terror analógico é sua acessibilidade. O found-footage já era um gênero que dava espaço para produções amadoras de baixíssimo orçamento. O terror analógico, no entanto, abriu as portas para que um autor expressasse sua criatividade em um vídeo curto para a internet com apenas um computador e um software de edição.
A acessibilidade se relaciona com a estética quando estes gêneros passam a fornecer justificativas para as falhas ou imperfeições nas suas imagens. O escuro exagerado, a câmera errática e as falhas técnicas passam a ser não mais erros, e sim ferramentas para a construção do terror. “A partir do momento que você incorpora essas falhas na narrativa,” diz Kurtinaitis, “elas estão perdoadas. Acho que isso tem a ver com essa busca do realismo, da confusão entre a ficção e o real, e acho que também tem a ver com uma popularização da tecnologia, que permite que as pessoas possam criar as suas próprias obras”.
“É a grande marca do nosso tempo, esse entretenimento feito por pessoas comuns, que acho que, inclusive, é a chave do sucesso para esse gênero. Porque ele é acessível, é fácil de ser criado. E eles se aproveitam disso. Se você assiste esses vídeos de terror analógico, muitas vezes o susto ou o elemento aterrorizante da imagem vem justamente disso: de uma sombra que aparece, de uma falha que, durante aquela falha, parece um vulto”, acrescentou.
Após um período de one-offs e clones de Local 58, o terror analógico passou por um renascimento que germinou uma variedade de obras e impulsionou ainda mais a popularidade do gênero. Neste estágio, os vídeos passaram a explorar novos formatos dentro da estética analógica além da simples transmissão televisiva corrompida: vídeos instrucionais, gravações pessoais, programas educativos, desenhos animados, documentários, peças publicitárias e até vídeos antigos de Youtube, quando fogem do estilo usual.
A websérie The Monument Mythos (2020-), criada por Alex Casanas, consiste em diversos vídeos educacionais sobre a história dos monumentos estadunidenses em um universo alternativo, onde a história dos Estados Unidos não transcorreu tal qual no mundo real. Na trama, o Monumento de Washington é uma prisão para uma árvore e a Estátua da Liberdade, móvel por meio de maquinários, é por onde grupos de imigrantes desapareceram.
Outra websérie, FNaF VHS (2019-2020), criada pelo usuário Squimpus McGrimpus, se inspira na ficção e personagens dos jogos da franquia Five Nights at Freddie’s – outro exemplo de unfiction e que ganhará seu próprio filme pela Blumhouse este ano. Seus vídeos tomam majoritariamente o formato de programas instrucionais ou registros de testes.
Em um de seus episódios, Facial Recognition Testing, um técnico testa o sistema de detecção facial de um dos bonecos animatrônicos da história e é atacado quando a foto de alguém indesejado é apresentada aos seus sensores. As imagens são interrompidas e substituídas por um retrato em preto e branco de um homem de terno sorridente enquanto uma voz robótica repete: “Criminoso, criminoso, criminoso”.
Porém, talvez a obra de maior notoriedade dentre todas desta leva – e possivelmente entre todas do gênero – foi The Mandela Catalogue (2022), de Alex Kister. Com histórias sobre uma pequena cidade suburbana e doppelgangers de outro plano que torturam suas vítimas psicologicamente e tomam suas feições de formas não tão precisas, a websérie apresenta uma Terra onde efeitos bíblicos foram corrompidos enquanto aconteciam. Muitas das características que hoje são consideradas clichês no terror analógico podem ser encontradas nessa série, como as vozes artificiais e os rostos semi-humanos deformados.
Também, mais recentemente, Backrooms, de Kane Parsons, uma obra baseada na mitologia ao redor de uma creepypasta homônima, chamou a atenção da internet. Muito próxima do found-footage tradicional, a websérie mostra personagens que caminham por espaços liminares que mais parecem extrapolações do mundo real. O destaque da trama está na forma como ela mostra seus cenários irreais de maneira fotorrealista e convincente.
As texturas de corredores e paredes, a iluminação grosseira das luzes incandescentes e o convincente movimento errático da câmera, somados ao efeito analógico – que tira muito da nitidez da gravação -, podem até fazer o espectador questionar, por momentos, se aquelas imagens foram de fato capturadas na realidade. Mas isso seria uma impossibilidade para Parsons que, com apenas 17 anos, construiu toda a obra em seu computador ao usar o software de modelagem e animação Blender.
Um dos aspectos mais curiosos do terror analógico que se observa com Parsons e que caminha de mãos dadas com sua acessibilidade é como muitos de seus criadores são, por vezes, notoriamente jovens. Alex Kister também tinha 17 anos quando publicou seu primeiro vídeo do gênero, Overthrone. É evidente que o contato que estes autores poderiam ter tido com a tecnologia analógica que exploram é mínimo, o que também diz muito sobre como essas tecnologias ajudam na produção do horror.
“Eu acho que é uma mistura de nostalgia com mistério, porque, para uma geração como a minha – que cresceu com o VHS –, ele não tem absolutamente nada de misterioso. Aqueles chiados da fita que fica torta, ou quando o vinil vai na rotação errada, podem ser meio misteriosos e assustadores para quem aquilo não fazia parte do cotidiano”, relatou o pesquisador Marcos Kurtinaitis.
Esta anemoia, uma nostalgia por um passado que nunca se viveu, se soma também às próprias qualidades falhas e misteriosas do analógico, que, segundo o acadêmico, podem revelar algo sobre a espécie humana: “Tudo isso, no fundo, fala alguma coisa mais primitiva do ser humano, que é essa sensação de que existe algo por trás. De que a realidade, na verdade, é um véu que oculta alguma coisa”.
Terror analógico na tela grande
O terror analógico, de uma forma ou outra, também teve suas diversas passagens pela tela grande. Além de A Bruxa de Blair e outros found-footages que caem nessas novas definições, alguns outros títulos e autores chamam a atenção nesse âmbito, como David Lynch em O Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006).
“O Inland Empire já fazia algumas dessas estratégias. Aquilo que aparece na TV do filme, que seria como se fosse uma sitcom com coelhos, já tinha aparecido na internet como vídeos avulsos antes. David Lynch é um cara que, desde o começo da internet, também criava vídeos e os colocava na web. Todo mundo é meio filho do David Lynch nessa história, justamente porque a cabeça dele já era exatamente a mesma do realizador do terror analógico, de ‘eu não vou explicar nada’”, comentou Kurtinaitis.
“Os filmes dele já colocam o espectador um pouco nessa postura. A Estrada Perdida, por exemplo, é claramente um precursor do terror analógico: o mistério começa quando o cara recebe em casa uma fita VHS e a assiste. Ali já tem todo o prenúncio dessa estética”, acrescentou o pesquisador sobre outro longa do roteirista, A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997).
Skinamarink, no entanto, aparece em um contexto diferente. Após a popularização daquilo que hoje é referido como terror analógico, o filme surge na tela dos cinemas como uma forma de legitimar o gênero em sua forma já consolidada, inserido na versão atual do fenômeno.
O longa não é considerado um terror analógico apenas pelo seu processamento de imagem por fitas Super 8. A estética, é claro, contribui para a definição, e a forma como o filme brinca com as convenções do gênero, tanto do terror analógico quanto do found-footage, o diferenciam de maneiras particulares. A câmera do filme, por exemplo, simula as técnicas de filmagem que viriam de uma câmera intradiegética, como se de fato houvesse câmeras jogadas desordenadamente ao redor de seus espaços ou carregadas pelas crianças em seus planos POV (no ponto de vista do personagem). A ferramenta, no entanto, é extradiegética nesse caso, e não influencia na narrativa.
O que consolida o filme nesse fenômeno é o histórico de Kyle Edward Ball. Em entrevista ao portal RogerEbert.com, o cineasta afirmou: “Desde o começo, a internet tem sido minha co-diretora”. A carreira de Ball começa, não nas salas de cinema, mas em seu canal do Youtube, Bitesized Nightmares, onde postava pequenos curtas em que recriava os pesadelos de membros de sua audiência comentados no Youtube ou no Reddit. Foi ali, afinal, que Ball esculpiu seu estilo único para criar Skinamarink, fruto de diversos comentários que recebeu de pessoas diferentes sobre um mesmo sonho ao longo de sua estadia na web. Não apenas isso, o diretor também tentou adaptar a creepypasta Three Kings Ritual para um curta à sua maneira.
O lançamento do longa nos cinemas, no entanto, também traz um paradoxo em relação ao lugar do terror analógico. Ao mesmo tempo em que Skinamarink denota o movimento de legitimação do gênero, de que o terror analógico pertence às grandes telas, ele também o contradiz com toda a sua polêmica relacionada ao vazamento. É preciso lembrar que, antes de ser um filme de cinema, o longa de Ball foi um fenômeno online que circulava de maneira muito similar às obras citadas, isto é, como um vídeo sinistro de terror analógico.
Para Kurtinaitis, “o filme funciona melhor assim, na verdade. Se você recebeu aquele vídeo e alguém te falar ‘esse vídeo apareceu aqui, não sei bem o que é isso’, tudo contribui para o filme”. Mas qual o lugar do terror analógico, afinal? Para o pesquisador, o sucesso do gênero no futuro reside justamente em seu aspecto comunitário, na unfiction: “Espero que ele seja esse formato intermediário entre o cinema e o RPG. Talvez com finais e explicações múltiplas e que a narrativa consiga realmente ir sendo criada na interação com os espectadores. Se não, ele vai ser, no fundo, só mais uma corrente de obras de terror com um ou outro diferencial. Espero que a evolução desse subgênero seja o de se afirmar como subgênero autônomo”.
“Acho que o caminho para isso está em investir na interação, na gamificação, na possibilidade dos espectadores efetivamente mudarem a narrativa. Na medida em que forem simplesmente narrativas prontas, a tendência, para mim, é que eles se misturem e fiquem indistintos do que já é o found-footage de terror”, completou.