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Entre mérito e desgaste: a representação do trabalhador no cinema

De histórias de sucesso à narrativas de revolta, a classe trabalhadora é assunto central dentro do cinema desde sua origem
Por Heloisa Falaschi (heloisafalaschi@usp.br)

A primeira aparição de trabalhadores no cinema completou 130 anos em 2025. No filme Workers Leaving The Lumière Factory in Lyon (La Sortie de l’usine Lumière à Lyon, 1895), Louis e Auguste Lumière mostram a saída de operários de uma fábrica, em quarenta segundos e poucos detalhes.

O filme é o ponto de partida para a representação de dinâmicas de trabalhistas nas telonas. A escolha dos operários como objeto principal do filme contribuiu com a ligação histórica do cinema com a representação de temáticas voltadas ao trabalho.

Ao focar na realidade massante do empregado, Tempos Modernos (Modern Times, 1936), mostra uma perspectiva mais aprofundada da realidade de classe operária. Mesmo que de forma cômica, a obra critica o sistema produtivo que passa por cima das necessidades básicas dos funcionários e pontua relações abusivas de trabalho

A cobrança excessiva que os patrões fazem aos assalariados é abordada em um contexto de direitos trabalhistas escassos e ressalta a importância dessas garantias para saúde física e mental dos proletários. O foco principal do filme é a trajetória do personagem de Carlitos que se encontra à margem da sociedade após ser demitido por não sustentar a carga árdua de serviço.

O trabalhador abusado continuou a ser o centro ao longo dos anos em diferentes gêneros fílmicos, porém as relações danosas nesses ambientes nem sempre foram trazidas como o ponto principal da trama. Em O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, 2006), Andrea Sachs (Anne Hathaway) era frequentemente assediada verbalmente pela sua chefe, Miranda Priestly (Meryl Streep). 

Os donos da fábrica são retratados como homens que só pensam em lucro e demitem os funcionários que não realizam a produção esperada [Imagem: Reprodução/IMDB]

O comportamento de total desrespeito aos subordinados pela patroa era similar com o dos líderes da fábrica de Tempos Modernos. Na comédia romântica, apesar da protagonista perceber a nocividade do trabalho, o tema é tratado de forma escapista, assim como em diversos títulos que chegam a normalizar dinâmicas de trabalho que causam esgotamento psicológico.

Em busca do sucesso

Marcos Kurtinaitis, Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), diz em entrevista ao Cinéfilos que nem todas produções cujas relações de trabalho são abordadas, são feitas com o propósito de conscientizar. Elas podem ter a prioridade de estabelecer uma narrativa fictícia ou, até mesmo, ter caráter propagandista.

“Existem dois vieses. Acho que existem filmes que botam o trabalho com esse viés de conscientização e existem aqueles que vão ter um viés mais escapista,  geralmente na esfera da comédia romântica ou da história de sucesso”, diz.

Segundo ele, existem filmes que são propagandas do capitalismo e retratam a ascensão social a partir do trabalho formal em grandes empresas ou do empreendedorismo. Como por exemplo, Os Estagiários (The Internship, 2013).

O longa-metragem retrata uma dupla de homens de meia idade que se sujeita a embarcar em um programa de estágio não remunerado em uma grande empresa de tecnologia. “É basicamente uma propaganda do Google, vendendo a corporação como um espaço de trabalho maravilhoso e aberto”, pontua Kurtinaitis.

Apesar de terem grande experiência na área de vendas, a mínima chance de serem efetivados os fazem enfrentar diversos desafios durante o período [Imagem: Reprodução/IMDB]

Também existem os filmes que elevam o empreendedorismo como via certeira de ascensão social. O mestre cita como exemplo a ficção histórica Joy: O Nome do Sucesso (Joy, 2015), que acompanha a trajetória da inventora do esfregão Miracle Mop, Joy Mangano (Jennifer Lawrence).

A partir de sua estrutura narrativa que normaliza o sofrimento do personagem para a chegada ao sucesso, o filme se torna uma espécie de divulgação do empreendedorismo. Ao mostrar uma mulher comum se tornando uma grande empresária, reforça a ideia de meritocracia  e reafirma que, com trabalho duro e esforço, todos podem alcançar prosperidade financeira.

Na atualidade é comum ver pessoas que rejeitam vínculos formais empregatícios, como trabalhos definidos sob a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e buscam levar a vida como empreendedor ou como profissional autônomo. Parte dessa procura pode ser tida a partir da influência da mídia.

Ainda que a obra seja baseada em fatos reais, uma narrativa que romantiza a história de Joy é aplicada [Imagem: Reprodução/The movie database]

Além dos diferentes conteúdos em redes sociais que influenciam o abandono de vínculos trabalhistas, diversos filmes, produzidos sob um sistema cinematográfico que valoriza o modo capitalista de produção, incentivam tal forma de trabalho ao selecionar exemplos de personagens que obtiveram êxito nessa área.

Existem títulos que mostram que o empreendedorismo ou o trabalho autônomo não são a chave do sucesso em todos os casos. À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness, 2006) mostra a luta de Christopher Gardner (Will Smith) para sobreviver após investir — e perder todo seu dinheiro — em mercadorias médicas.

O filme apresenta o desamparo que um trabalhador sem registro trabalhista formal e direitos, tem que enfrentar. Também salienta como isso pode gerar diversas problemáticas sociais e psicológicas. Embora conscientize sobre os perigos da ausência de vínculos empregatícios, assim como em Os Estagiários, a obra leva o espectador a romantizar o trabalho não remunerado.

Embora apresente as mazelas vividas por trabalhadores desamparados, o filme legitimiza a meritocracia ao mostrar que, com trabalho árduo e excessivo, o protagonista ascende social e economicamente [Imagem: Reprodução/The movie database]

O desgosto pelo trabalho

Trainspotting – Sem Limites (Trainspotting, 1996) mostra o outro lado da moeda. Alheios à sociedade trabalhista, o filme expõe a rotina e os pensamentos de Mark Renton (Ewan McGregor) e sua trupe. O famoso monólogo de Renton no início do filme traz à tona a alienação da sociedade em possuir prestígio social e coisas materiais.

“Escolha uma vida. Escolha um emprego. Escolha uma carreira. Escolha uma família. Escolha a porra de uma TV grande. Escolha máquinas de lavar, carros, CD players e abridores de lata elétricos.”

Mark Renton em Trainspotting – Sem Limites

A obra expõe as problemáticas da exploração trabalhista de uma sociedade neoliberal em esgotamento para os indivíduos de baixa renda, como era o caso da Escócia na época que o filme se passa  — como afirma Amaury Garcia dos Santos Neto no artigo Violência e escapismo como lazer para os desvalidos em Trainspotting e Cola de Irvine Welsh. Filho de operário, o jovem se mostra sem perspectivas de crescimento pessoal, social e, sobretudo, trabalhista.

Esses sentimentos são apresentados para além da parte narrativa e contexto histórico. A utilização de cores selecionadas para trazer determinados efeitos no espectador também comunica. Exemplo disso é o uso do vermelho, que indica agressividade e destaca o ritmo frenético em que a narrativa se passa. Também representa o estado de alerta incorporado pela atmosfera de perigo, induzido pela existência de crimes no enredo.

As cores frias são predominantemente presentes na obra. Elas representam o estado emocional complexo e melancólico dos personagens, além de acrescentarem destaque à cor vermelha e causarem uma possível sensação de desconforto ao espectador.

Entre o cansaço e a libertação

O Operário (The Machinist, 2004) também usa de cores frias para ressaltar o desgaste na saúde física e psicológica de Trevor Reznik (Christian Bale). O filme retrata as dificuldades vividas por um homem solitário que trabalha no período noturno em uma fábrica.

Trevor apresenta dificuldades para dormir e começa a emagrecer cada vez mais, forma de mostrar seu adoecimento. Marcos Kurtinaitis o descreve como “cadavérico” e aponta o físico do personagem como a exposição do abuso trabalhista que o protagonista sofre.

O filme possui um forte impacto visual por unir o enfraquecimento físico do personagem com a estética soturna para evidenciar os abusos do trabalho para além da narrativa [Imagem: Reprodução/IMDB]

Mesmo que de modo diferente da obra, produções do movimento cinematográfico neorrealista Italiano que focavam na realidade precária social europeia após a Segunda Guerra Mundial, foram viscerais em destacar os o sofrimento e desafios enfrentados pela classe trabalhadora.

Para o Cinéfilos, Edson Pereira da Costa Júnior, pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontou os principais fatores do movimento contextualizado no pós-segunda Guerra Mundial. Um deles era a inserção de não atores no elenco para trazer um maior efeito de realidade.

“Ao invés de chamar um ator para performar uma pessoa vivendo na pobreza, você tenta trazer alguém que tá vivendo essa realidade e a coloca ali”

Edson Pereira da Costa Júnior

A valorização do uso de espaços reais, cenas de longas e da representação de situações ordinárias são características do movimento que permitem a maior sensação de realidade nas obras. O pesquisador salienta que a escassez de cortes em cena torna o espectador uma espécie de “placa sensível” para o mundo, auxiliando na tradução do real. Dessa forma, os produtores do neorrealismo Italiano apresentavam as mazelas sociais de maneira bruta, se contrapondo com o otimismo e artificialidade de filmes hollywoodianos da época.

Esse movimento foi um ponto de virada para a representação do trabalho e dos indivíduos comuns nas telonas, pois não dependia de uma alta quantia de dinheiro para ser produzido. A partir disso, maior diversidade de temas e perspectivas eram apresentados. A disseminação de um cinema que foge das lógicas industriais tem efeito até a atualidade possibilitando as críticas ao sistema econômico vigente e a denúncia de relações abusivas e desiguais de trabalho.

Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948) é considerado um dos principais filmes do neorrealismo italiano e retrata a realidade de um homem de origem humilde quando finalmente encontra um emprego [Imagem: Reprodução/IMDB]

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