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A exaltação da meritocracia nos filmes da Disney

Como produções da empresa do ratinho ensinam que só se conquista o que se merece por meio do esforço e da capacidade
Por Sofia Colasanto (sofiacolasanto2@usp.br)

Atualmente, a meritocracia é amplamente aceita como a lógica de funcionamento da sociedade capitalista, mesmo em um mundo com desigualdades brutais que escancaram a fragilidade do sistema. Como forma de manutenção e reprodução do modelo, as animações infantis da Disney reforçam o discurso meritocrático, fazendo com que o seu público acredite, desde cedo, que o seu esforço trará um final feliz.

A palavra meritocracia surgiu a partir da junção do termo em latim meritum, que significa mérito, e do sufixo cracia, usado para designar governo ou poder. Logo, seu significado implica uma organização social baseada no mérito, em que a habilidade e o esforço dos indivíduos determinam sua posição social. O discurso defende que todos possuem direitos e oportunidades iguais para ascenderem socialmente, o que promove que não basta ser excelente no que faz, mas sim o melhor.

A meritocracia é um dos componentes do discurso capitalista neoliberal, justamente por promover o individualismo, a competição e uma perspectiva de justiça. Essa lógica faz parte de uma ideologia e não é um sistema natural, como demonstra o vídeo da Vox. Ele apresenta como a meritocracia não funciona nas sociedades atuais, pois há diversas desigualdades históricas que impedem as pessoas de estarem em pés iguais para competirem por seus espaços. A lógica meritocrática promove a desigualdade, pois perpetua-se que a responsabilidade pelo fracasso do indivíduo seria somente dele, e não por pertencer a grupos marginalizados que possuem menos acesso a oportunidades.

Vídeo escancara as outras variáveis relevantes para calcular o mérito de alguém [Imagem: Reprodução/Youtube/Vox]

O vídeo apresenta como o ser humano é introduzido ao mito da meritocracia desde a infância, principalmente pelo o ambiente escolar, por meio das várias provas e das disputas por melhores notas. Esse discurso também é transmitido pelos meios de comunicação, como os telejornais e os filmes de animação infantis. O que muitas vezes se assiste quando criança pensando ser apenas mais um desenho está, na verdade, infiltrado de ideologias e crenças que as acompanham pelo resto da vida.

Como afirma Andresa Silva da Costa Mutz, docente na Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em entrevista ao Cinéfilos, “Se pensarmos que as crianças têm, em geral, o hábito de assistir repetidamente o mesmo filme, já podemos imaginar o impacto que a Disney e outras corporações podem ter na construção de um certo modo de se entender e de entender o outro.”

Como as animações transmitem o discurso meritocrático

Um dos exemplos a serem citados é o filme Ratatouille (2007), da Disney Pixar, que acompanha a ascensão do rato Remy (Patton Oswalt) e do jovem Linguini (Lou Romano) no mundo da cozinha profissional parisiense. Inicialmente, a película expõe os dois personagens como pertencentes às classes mais baixas: um rato da zona rural que come lixo e um auxiliar de limpeza de um renomado restaurante. Quando o roedor foge após ser atacado por invadir a casa de uma senhora e tentar cozinhar sua própria comida, inspirado pelos programas do falecido chef Auguste Gusteau (Brad Garrett), ele acaba por chegar no restaurante do cozinheiro que admirava.

Lá, ele conhece o rapaz desajeitado que tenta, sem sucesso, consertar um acidente com uma sopa preparada na cozinha. Remy, que é sempre acompanhado pelo espírito de Gusteau, decide ajudar Linguini como forma de realizar seu sonho de cozinhar, motivado pelo lema que o fantasma que o segue sempre proclama “Qualquer um pode cozinhar!”. A partir disso, os dois se unem para realizarem seus sonhos: o de cozinhar mesmo sendo um rato e de ter sucesso profissional. Como não seria diferente em um filme infantil, mesmo enfrentando desafios, eles alcançam lugares de prestígio e vivem em harmonia.

Método que Remy e Linguini encontram de fazer o jovem cozinhar melhor e ascender profissionalmente [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

A narrativa do filme retrata a evolução das vidas de Remy e Linguini com base no mito meritocrático. Os dois, que a princípio tinham condições desfavoráveis para mudarem suas vidas, aproveitaram as oportunidades que apareceram para conseguir ascender socialmente. O espírito do chef atua como grande representante dos valores neoliberais, por enfatizar com sua máxima “Qualquer um pode cozinhar!” como todos possuem a mesma capacidade de vencer, basta querer. 

O longa é bastante enfático em condenar caminhos que não envolvam esforço para conseguir o que quer, como quando Remy ajuda sua família a roubar insumos do restaurante e perde a confiança de Linguini. A relação de paternidade entre Gusteau e o jovem também não é relevada para o rapaz durante grande parte da história, assim tendo pouco poder de influência em seu sucesso.

A meritocracia não é afirmada apenas pelos protagonistas. Os coadjuvantes também estão imersos nessa lógica, como é o caso da cozinheira Colette (Janeane Garofalo). Ela é uma moça que se esforçou muito para conquistar sua posição no mundo majoritariamente masculino da cozinha profissional e não aceita deixar tudo isso para trás quando descobre que o rato é que controla o corpo de Linguini para que cozinhe bem. Outro caso é o do crítico gastronômico Anton Ego (Peter O’Toole), que tem uma origem humilde e que, ao longo da vida, tornou-se um profissional aclamado, mas também um homem rude.

Enquanto fugia após a descoberta da farsa, Colette se depara com o livro de Gusteau com os dizeres “Qualquer um pode cozinhar” e decide retornar ao restaurante [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

Por meio de narrativas como essas, o espectador absorve desde a infância que a meritocracia funciona. Mesmo que as animações, em primeira instância, pareçam fantasiosas demais para adentrar na mente – afinal, ninguém acredita que ratos possam cozinhar – elas utilizam diversos artifícios para que a mensagem geral seja transmitida.

Andresa aponta que a utilização de imagens que dão prazer ao telespectador, como é o caso de todas as cenas que exploram os sabores dos alimentos, e a identificação com os personagens são importantes fatores que capturam o público. A pesquisadora evidencia que “Se você vai analisar o ratinho, o que tem nele que permite que quem está assistindo se identifique? Aquelas formas em que ele aparece com humildade, em que ele aparece bem humano, em que ele tenta e não dá certo e ele se frustra”. Segundo ela, o público cria identificação porque se coloca em circulação emoções humanas.

O filme utiliza elementos visuais e sonoros para transmitir o sabor do queijo e do morango [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

A meritocracia infiltrada no sujeito

Outra produção da Disney que reforça a lógica meritocrática é A Princesa e o Sapo (The Princess And The Frog, 2009). Ela narra a história de Tiana (Anika Noni Rose), uma mulher negra de Nova Orleans que herda de seu pai o sonho de ter o próprio restaurante. Depois de anos de economias e trabalho duro, a moça vê a realização de seu sonho distanciar-se quando o valor do salão que planejava comprar aumenta.

Então, enquanto pedia ajuda para uma estrela cadente, um charmoso sapo aparece e a convence que, se o beijasse, ganharia uma quantia em dinheiro, pois estaria ajudando um príncipe de família abastada retornar à forma humana. Porém, por não se tratar de uma princesa, quando os dois tocam os lábios é ela que torna-se um anfíbio. A partir dessa premissa é que o filme acompanha a aventura dos dois para voltarem a ser humanos.

Já nos primeiros dez minutos, o longa expõe seu viés social e meritocrático ao escancarar as diferentes classes de Tiana e sua melhor amiga Charlotte (Jennifer Cody) e a realidade humilde em que a primeira vive. Também é de início que a cena mais emblemática aparece, em que Tiana, durante uma conversa em que seu pai, lhe apresenta o desejo de abrir um restaurante e afirma que era possível realizá-lo através de um pedido para a estrela cadente. Então, seu pai a alerta que “Aquela estrelinha ali só é responsável pela metade, o resto você faz com muito trabalho. Então aí sim você vai poder fazer tudo o que imaginar.” O filme anuncia que, independente de sua origem e condição, você alcançará seus sonhos através do esforço.

A família e o amor pela cozinha são pilares que guiam Tiana em sua jornada [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

“A consequência mais importante, do meu ponto de vista, é que isso traz uma auto responsabilização. Então, você vai fazer tudo, vai acordar cedo, vai correr atrás, vai trabalhar no final de semana. E, se não der certo, você não investiu tempo o suficiente, não foi disciplinado o suficiente.”

— Andresa Silva da Costa Mutz

A narrativa também enaltece a meritocracia em outros aspectos da vida da protagonista para além da carreira profissional. Ao longo de sua trajetória romântica com Príncipe Naveen (Bruno Campos), é mostrado como ambos deveriam se esforçar e até desistirem de se tornar humanos para que a relação se concretizasse. Por meio da personagem forte, trabalhadora e gentil, a Disney passa a mensagem que coisas boas só acontecem com aqueles que as merecem e que praticam o bem.

Essa moral não é transmitida apenas por essa produção, já que diversos filmes do estúdio, principalmente aqueles com princesas bondosas, reforçam que só se recebe alegria, carinho, amizade e amor se eles forem merecidos por meio de boas ações e que eles não devem ser sentimentos ganhos sem nenhum custo. Assim, se não consegue tê-los na vida, o indivíduo pensa que ele mesmo é culpado por isso e não observa os motivos que fogem de seu controle.

O casal retorna à forma humana depois do casamento e, então, abrem um restaurante juntos [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

Motivos e perspectivas

Em entrevista, Andresa aponta que a principal motivação para a Disney transmitir os valores neoliberais por meio de seus filmes é o lucro. Isso porque “a Disney produz e, ao mesmo tempo, reproduz”, de modo que retratar um discurso que já é amplamente difundido em seus longas faria os espectadores o consumirem e gostarem de sua história devido à semelhança com o que acreditam e vivem. Logo, a empresa não atua sozinha e conscientemente na propagação do discurso meritocrático, mas o legitima. 

A pesquisadora acredita que a escola seria um ambiente possível de resistência, em que a lógica da competitividade e da meritocracia não fossem a norma, “porque parece que desde pequenos, desde os filmes, desde a escola, a gente aprende que o capitalismo sempre existiu”, comenta. “E ele nem sempre existiu, ele tem uma história. Assim como ele foi inventado, ele pode ser desinventado. A gente pode colocar outra coisa no lugar dele.”.

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