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A representação ilusória do amor nas comédias românticas

Quem nunca quis viver igual aos filmes de romance e ter o seu tão desejado “final feliz”?
Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)

As comédias românticas, ou rom-coms, formam um gênero cinematográfico que mescla elementos da comédia e romance. Possivelmente criadas por William Shakespeare (1564 – 1616), as famosas rom-coms são consideradas grandes sucessos de bilheteria em escala global e destinadas para o público feminino. Os temas destes filmes giram em torno de histórias de amor com toques de humor que se divergem da realidade. O mito ilusório de que estas obras cinematográficas espelham a vida romântica causa danos irreparáveis para as espectadoras.

A influência das comédias românticas na construção do amor

Em entrevista para a Revista People, a atriz Kate Hudson, que estrelou a famosa comédia romântica Como Perder um Homem em 10 Dias (How to Lose a Guy in 10 Days, 2002), aborda os filmes de comédia romântica como vivos e clássicos. “Uma ótima comédia romântica é sobre encontrar o amor, descobrir o amor, se apaixonar, o amor se desintegrar e então como vocês voltam a ficar juntos. Essa é uma estrutura muito tradicional.”

A habitual comédia romântica pode ter múltiplas facetas. Por meio dos clássicos tropes, a narrativa convencional do gênero gira em torno de uma protagonista e um interesse romântico que se apaixonam e enfrentam desafios. Exemplos de padrões que regem a maior parte das comédias românticas são “enemies to lovers”, “friends to lovers” e “the love triangle”. Os moldes dos filmes podem se relacionar entre si. No entanto, o público suspira quando os personagens são capazes de superar suas adversidades e concluir o longa com o tal “felizes para sempre”.

As comédias românticas, mesmo com o seu sucesso, também são subjulgadas pelo público. Em seu artigo A Comédia Romântica em Hollywood: o gosto da “água com açúcar”, Cecília A. R. Lima reflete sobre a desclassificação social do gênero, pois isso gera um prazer momentâneo e gratificação individual ao espectador. Isso faz com que a fórmula romântica seja considerada uma produção de entretenimento, e não arte, na hierarquização de gêneros por Hollywood.

O cinismo a respeito do amor, para a filósofa e autora Bell Hooks (1952 – 2021), é uma máscara para um coração ferido e partido. Isso não impede que a pessoa continue a buscar o romance. O cinismo com relação ao amor também se tornou tema de algumas comédias românticas. Este é o caso de 10 Coisas Que Eu Odeio em Você (10 Things I Hate About You, 1999), um sucesso inesperado do diretor Gil Junger. A personagem Kat Stratford é uma adolescente inteligente, feminista e ousada, mas considerada um “pé no saco” na escola. Ela não quer fazer parte dos padrões sociais do ensino médio e critica os relacionamentos amorosos convencionais, diferentemente de sua irmã, Bianca.

O amor, transmitido pelas telonas, mesmo que subjugado e visto com cinismo, é procurado por todo o ser humano. Assim como a afro-americana destaca em sua obra Tudo sobre o amor: novas perspectivas (1999),  “Todos ansiamos por amor – todos o buscamos –, mesmo quando não temos esperança de que ele possa ser de fato encontrado”. Na cultura ocidental, os traços de desespero em busca do amor também se expressam em livros, filmes, séries e música:

“Eu quero um amor como o que vi nos filmes”

Laufey em Like the movies

“Eu quero um amor como o que vi nos filmes”

Conan Gray em Movies

“Eu quero ser amada / Como se tivesse saído de um filme”

Etta Marcus em Theatre

Em seu livro, Bell Hooks convida o leitor à perspectiva da construção do amor socialmente e individualmente. A filósofa defende que o amor é uma ação política, capaz de transformar mazelas culturais. Ela conclui que o amor não pode ser subjetivo, pois o seu significado, uma vez pulverizado, jamais será compreensível.

Heath Ledger e Julia Styles dão vida ao casal protagonista em ‘10 Coisas Que Eu Odeio em Você, uma adaptação de ‘A Megera Domada(1594), de Shakespeare [Imagem: Reprodução/Touchstone Pictures /Disney]

Os danos das comédias românticas

Em entrevista ao Cinéfilos, a psicóloga clínica Ana Takenaka critica a propagação do amor moldado pelos filmes e redes sociais. Ela explica que esse conteúdo influencia o individualismo, o afastamento entre as pessoas e uma falta de responsabilidade afetiva, isto é, assumir a responsabilidade pelas emoções e expectativas que geramos nos outros com quem nos relacionamos.

“A ideia de amor romântico atualmente possui um nível tão elevado de exigência. Não se aceita alguns defeitos normais, pois tem que ser maravilhoso, como um personagem de filme. Mas somos seres humanos.”

— Ana Takenaka

Os seres humanos tendem a pensar que não são exigentes com os relacionamentos amorosos. Mas, na realidade, eles buscam em companheiros semelhanças com aquilo que vêem, seja nos filmes ou na internet. Entretanto, quando encontram aquilo que difere-se do que querem, eles se frustram, se distanciam e criticam. E é por isso que as comédias românticas começaram a ser vistas com olhos negativos.

As famosas rom-coms são consideradas danosas pela construção de um amor irreal, mas visto como um padrão que precisa ser alcançado e almejável na vida real. A ilusão de realidade nos filmes é oriunda de uma narrativa que possui uma ocasião cotidiana. De acordo com o artigo de Cecília A. R. Lima, isso “proporciona maior impacto e surpresa à história […]. A promessa é, ao mesmo tempo, casual e inesperada”. Outro mito destas histórias é o amor espontâneo e instantâneo, o chamado “amor à primeira vista”. Psicólogos e filósofos, como Bell Hooks, defendem que o amor se constrói, não surge.

A psicóloga e pesquisadora Anna Machin, por outro lado, disserta que o ser humano deveria deixar de colocar o amor romântico em um pedestal, em seu livro Why We Love: The Definitive Guide to Our Most Fundamental Need (2022). É nesse momento que se questiona o porquê de colocar relevância e prioridade em relacionamentos afetivos, além de criticar a imposição de expectativas e de um certo padrão de vida, característica enraizada pelas obras de Hollywood.

O filme ‘Todos Menos Você’ (2023) também é uma adaptação de uma peça de Shakespeare, ‘Muito Barulho por Nada’ (1600) [Imagem: Divulgação/Sony Pictures]

Cuidados com a infância e críticas à mídia

A geração que nasceu e cresceu entre os anos 1990 e 2000 acompanhou a febre das famosas rom-coms. Este é o grupo mais afetado pela construção irreal de amor. De acordo com a sua experiência clínica, a psicóloga Takenaka explica sobre a influência daquilo que vêem na televisão desde o período da infância. “As crianças reproduzem muito do que elas vivem”. 

No caso dos filmes do gênero, propaga-se um tipo de feminilidade e papel de gênero, delimitador para jovens mulheres. Sabe-se por meio de diversos estudos educacionais, como Meninas e Meninos na Educação Infantil: uma questão de gênero e poder, de Claudia Viana e Daniela Finco, que a normalização de uma suposta feminilidade e papel de gênero também é introduzida à criança desde os primórdios de sua educação.

Quando questionada sobre a pressão social sobre um padrão de vida ideal para as meninas, Takenaka aponta que “a gente precisa instruir as meninas de que as comédias românticas não são a vida real, que não é só daquele jeito, como nos filmes, que dá para ser feliz.” O que a psicóloga destaca é que não existe apenas uma trajetória de vida verticalizada: nascer, crescer, estudar, trabalhar, namorar, casar e ter filhos — imediatamente, o que encerraria o ciclo de trabalho e estudos das mulheres. “A gente não tem só uma maneira de ser feliz. Como movimento social, necessitamos estimular a capacidade das meninas jovens de questionar se essa é a vida que elas vão querer.”

“Quando eu era criança, tinha clareza de que não valia a pena viver se não conhecêssemos o amor.”

Trecho do livro Tudo sobre o amor e novas perspectivas (1999), de Bell Hooks

Os filmes, já criticados, limitam-se a pouca representatividade dos personagens. Com a presença quase  unicamente de pessoas brancas e hétero nos elencos e nas produções, o público demanda a necessidade de representatividade no gênero. A falta de representatividade também limita a condição do amor: associa-se que só um arquétipo branco e hétero merece a história amorosa. 

Takenaka afirma que “é necessário ter uma representatividade. As meninas, por exemplo, que já sentem que têm uma orientação sexual diferente, vão se sentir como ‘um peixe fora d’água’quando vêem comédias românticas heteronormativas”.

Outra crítica que muitos filmes de comédia romântica receberam, como Barraca do Beijo (The Kissing Booth, 2018) e After (2019), foi a normalização de relacionamentos tóxicos. Em um experimento norte-americano, os pesquisadores revelaram que, por conta da influência destas histórias românticas tóxicas nas mulheres, o público feminino é mais propenso a tolerar assédios e stalkers na realidade. 

O amor nas telonas 

Casamento Grego (My Big Fat Greek Wedding, 2002) é considerado o filme do gênero de comédia romântica com maior bilheteria internacional, arrecadando mais de 469 milhões de dólares. Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, o longa foi escrito por Nila Vardalos, a protagonista do filme. 

O longa é um caso explícito de como o “amor verdadeiro” se apresenta no cinema. Fotoula “Toula” Portokalos, uma mulher oriunda de uma família grega tradicional, se apaixona por Ian Miller, um homem anglo-saxão protestante. Tudo o que o seu pai quer é que Toula se case com um marido grego. Entretanto, foi necessário apenas um olhar da protagonista para começar a ter um crush no interesse romântico. 

Outro filme famoso e mais recente é Todos Menos Você (Anyone But You, 2023), dirigido por Will Gluck. A narrativa apresenta dois protagonistas desentendidos a partir do seu primeiro encontro. Diante os conflitos, o espectador encontra um famoso trope, o “enemies to lovers”. Nessa história baseada na comédia Muito Barulho por Nada de William Shakespeare, a atração física inicial de Bea e Ben se transforma em ódio. Mas um casamento na Austrália os forçam a conviver juntos novamente. 

Outras comédias românticas famosas são os dois filmes Sex and the City: The Movie (2008), criados por Darren Star e baseados no livro da jornalista Candace Bushnell. A trama acompanha a vida romântica e sexual de quatro amigas na casa dos trinta anos em Nova York: Carrie Bradshaw, Charlotte York, Samantha Jones e Miranda Hobbes. 

A série e os filmes receberam aclamação da crítica e do público, criando um legado indiscutível a respeito dos temas de amor e sexo na atualidade. Pela primeira vez nas obras destinadas ao público feminino, as quatro solteiras discutem quão rasos são os relacionamentos na modernidade líquida.

Miranda Robbes pergunta nesse episódio porque tudo o que as amigas sabem falar é sobre homens [Imagem: Reprodução/Youtube/@HBO]

Bauman e as relações amorosas

Em Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos Laços Humanos (2003), Bauman expande o conceito de modernidade líquida aos relacionamentos entre os indivíduos. Nesse sentido, elementos externos como a revolução da informação e as economias capitalistas, que caracterizam a contemporaneidade, impactam diretamente as relações interpessoais. As personalidades em uma sociedade líquida substituem as diferentes esferas do mundo. 

“O que Bauman fala é que as pessoas entram nessas relações como um consumo, como se  estivessem lidando com algoritmos, sem o intuito de me comprometer com o relacionamento plenamente”, diz Ana Takenaka a respeito das filosofias de Zygmunt Bauman. “As pessoas são descartáveis nessa nova realidade. Para quê se dar o trabalho de conhecer uma pessoa e defrontar-se com seus defeitos?” 

A tese de Bauman não é utilizada nas obras cinematográficas, pois a intenção das comédias românticas é ser algo prazeroso e para abstrair. Ao considerar essas histórias uma fuga da realidade, está-se implicitamente ressaltando que aquilo não existe no campo real. Então pode-se dizer que os filmes não retratam o cotidiano romântico, mesmo que tentem ilustrar cenas comuns, como os aplicativos de relacionamento e as dificuldades amorosas. A partir desta aparente aproximação ao dia a dia, as bilheterias desse gênero arrecadam cada vez mais. 

Enquanto se critica o gênero cinematográfico pelo seu teor irrealista e excessivamente romântico, o consumidor já deve imaginar a qualidade de seu produto quando o comprou: a comédia romântica é uma ilusão, meramente convencional para o consumo imediato. É rir, suspirar e emocionar-se quando os protagonistas terminam juntos, e o espectador deveria se limitar por aí.

‘Como Perder um Homem em 10 Dias’, filme estrelado por Kate Hudson, sugere, com humor, um questionamento sobre a facilidade de ser descartável em relacionamentos, como o próprio título sugere [Imagem: Divulgação/Paramount Pictures]

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