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Palestra Itália: sua origem e importância para o proletariado italiano

Uma reconstrução e retomada da narrativa da origem da equipe sob o olhar da realidade de seus fundadores operários

Por Nina Nassar (niiina@usp.br)

 A construção da identidade da Società Sportiva Palestra Italia, como era denominada em sua fundação, foi autêntica desde o início como único espaço esportivo que permitia a união da classe trabalhadora, com italianos imigrantes e com brasileiros de todas as regiões. A História sociopolítica do clube atravessa caminhos que vão além da “versão oficial”, contada sempre de forma a excluir os conflitos, e muito mais complexa do que as narrativas nocivas que são hoje difundidas na internet por rivais.

As ofensas direcionadas ao clube alviverde, como as que o relacionam com o movimento fascista, se fundamentam em preconceitos étnicos contra a italianidade, o que desconsidera toda a trajetória e luta dos imigrantes no Brasil e releva o fato de que os fundadores eram operários e anarquistas. Fernando Galuppo, jornalista e historiador, em entrevista exclusiva ao Arquibancada, explica que essa é a grande diferença dele para outros clubes de colônia: “o Palmeiras tem uma raiz étnica profunda, da qual se orgulha e da qual ele mantém essa chama acesa, mas nunca foi excludente.” O clube sempre se abriu para que pudesse receber todas as comunidades no seu espaço físico, como um pertencimento de torcedores, de ações sociais, dos mais diversos matizes e elementos, classistas ou étnicos.

Um espaço para a expressão da ascendência italiana

Em São Paulo, que chegou a ser identificada como uma “cidade italiana” no início do século XX, os italianos se ocuparam principalmente na indústria nascente e nas atividades de serviços urbanos. Chegaram a representar 90% dos 50.000 trabalhadores ocupados nas fábricas paulistas, em 1901. Como operário industrial, o imigrante recebia baixos salários, cumpria longas jornadas de trabalho e não possuía qualquer tipo de proteção contra acidentes e doenças.  

Com o trabalho exploratório e nenhum projeto de aderência a estes italianos na sociedade brasileira, não havia sentimento de unidade entre eles. A partir de uma carta de convocação divulgada no Fanfulla pelo jornalista Vicenzo Ragognotti (jornal em língua italiana de maior circulação em São Paulo na década de 20), 48 pessoas se reuniram para estruturar um clube esportivo representativo da comunidade italiana na capital paulista: no dia 26 de agosto de 1914, nasceu o Palestra Italia.

Segundo José Renato de Campos Araújo, em O Palestra Italia e sua trajetória: associativismo e etnicidade, a equipe não representava apenas uma invasão no campo de jogo de imigrantes italianos, em sua maioria originários das classes menos abastadas. Mas também uma invasão nas arquibancadas de “torcedores italianos”, aficionados que se deslocavam de bairros periféricos e operários como a Mooca, o Brás, a Barra Funda e o Bexiga para acompanhar os feitos de “italianos” como eles contra a elite local. Com ele, abriu-se a possibilidade de imigrantes deixarem suas origens e sentimentos étnicos transparecerem perante a sociedade receptora que, no caso da paulistana, sempre os menosprezou.

Galuppo disse sobre o estádio adquirido pela sociedade esportiva: “as coisas aconteciam ali, tanto para a comunidade italiana quanto para os operários e funcionários da indústria matarazzo, mas como também, por exemplo, para grupos étnicos importantes aqui em São Paulo, como, por exemplo, a Associação Atlética São Geraldo, que era um dos clubes formados apenas por elementos negros em São Paulo, treinavam naquele espaço, como o Áurea Futebol Clube, como todos os campeonatos distritais e varzianos no início dos tempos. Era, então, uma efervescência”.

Francisco Matarazzo, o italiano dono das grandes indústrias, hoje dá nome a uma das ruas que dão acesso ao estádio alviverde. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

 Os fundadores

Dos presentes na reunião de criação da diretoria do clube, os quatro principais fundadores, apontados pela história oficial, eram Ezequiel Simoni, Vicenzo Ragognetti, Luigi Cervo e Luigi Marzo. 

Ezequiel Simoni, eleito como primeiro presidente do clube, ao contrário do esperado, entendia pouco de futebol. Na verdade, era um militante anarquista consagrado. Sua posição foi determinada por sua experiência na administração e organização de movimentos do operariado anarquista. 

Suas principais atuações foram junto a grupos militantes como o Grupo Libertário Germinal e a Federação Operária de Santos, segundo o historiador Edgar Rodrigues, em Socialismo e Sindicalismo no Brasil. Além disso, o jornal La Battaglia divulgou que ele administrava manifestações teatrais e culturais anarquistas, de acordo com Micael Zaramella, no livro No gramado em que a luta o aguarda.

Luigi Cervo nasceu em Fuscaldo, na Itália, e veio ao Brasil para trabalhar como operário em uma das indústrias de Francisco Matarazzo – um dos homens mais ricos de São Paulo na época. Ele foi ex-atleta e sócio do Sport Clube Internacional, também participava de clubes de várzea da cidade e da Sociedade Dramática e Recreativa Bella Estrella, que congregava vários de seus companheiros italianos que trabalhavam nas indústrias. Envolvido no meio do futebol, disseminou entre seus colegas de trabalho da indústria a ideia de um clube na capital estadual que abrangesse a italianidade. Ele próprio visitou a sede do Fanfulla e conversou com Vicenzo, para que publicasse a carta. Foi o grande idealizador da agremiação e se empenhou para que o futebol fosse seu carro-chefe.

De acordo com Ragognetti, em entrevista para o acervo do Palmeiras: “ele era um líder, um abnegado, um idealista de inteligência, sútil e lúcida, com sua incrível capacidade de trabalho, com a sua resistência, com a sua persistência”. Cervo buscava criar um espaço que coubesse e acolhesse o italiano em meio a sociedade paulistana. Que pudesse trazer o desejo dos imigrantes trabalhadores de expressar a ancestralidade, os quais, como ele, muitas vezes eram explorados nas indústrias e necessitavam de um ambiente de lazer e união. Galuppo explica que, com essa intenção, o Palestra deu um senso de identidade a uma comunidade considerada um elemento de segunda classe.

Luigi Marzo, vice-presidente do clube em sua fundação, circulava pelos ambientes letrados das classes médias ítalo-paulistanas, era um intelectual. Já Vicenzo Ragognotti, filho de imigrantes italianos, nasceu em um cortiço em Santa Ifigênia. Formou-se como jornalista no que hoje é o Colégio Mackenzie, e se tornou redator do Fanfulla em 1913. Neste momento, já mantinha vínculos com intelectuais como Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Aproximou-se, nos anos seguintes, também do escritor Monteiro Lobato, com quem manteve amizade, e do Movimento Modernista de 1922, ao publicar poesias de sua autoria na Revista Klaxon, uma das mais importantes publicações poéticas do modernismo.    

Vicenzo era um anticapitalista e antifascista declarado. Entre 1950 e 1960, publicou uma série de trabalhos notáveis no Seminário Moscardo, jornal da colônia italiana. Neles, investiu em ataques e ironias contra a Coca Cola, pela qual possuía uma aversão obsessiva. Estas edições eram cheias de charges e piadas que responsabilizavam a Coca pela “burrice, pasmaceira e envenenamento da massa”, além de sugerir cinicamente que seria a causa da impotência sexual.

A pluralidade étnica e o legado antirracista no Palestra Itália

Apesar da formação do clube ser italiana, o Palestra foi responsável por um dos primeiros eventos esportivos para celebrar a abolição da escravatura. Em um festival idealizado pelo extinto Áurea Futebol Clube, um clube formado apenas por integrantes negros, segundo Galuppo. A ancestralidade afro-brasileira sempre esteve presente nas raízes do clube, inclusive, a imigração italiana para o Brasil só ocorreu devido ao processo de abolição da escravatura, no fim do século XIX. 

A figura mais representativa da História da torcida organizada palestrina é Adelaide Antônia das Dores, apelidada como “Vovó do Pito”. O coordenador do acervo histórico do Palmeiras, Miro Moraes, realizou uma intensa pesquisa sobre essa chefe de torcida precursora após encontrar sua foto em uma edição do jornal “Diário de Abax’o Piques”, de 1933. Ela cresceu em Sorocaba como escravizada e, ainda jovem, comprou a própria alforria e se mudou para São Paulo, onde trabalhou como cozinheira para famílias de elite para garantir o sustento de sua família.

Adelaide era simpatizante dos ideais de Isidoro Dias Lopes, que comandou a Revolta Paulista em 1924. Entre outras pautas, a Vovó defendia a justiça gratuita e a implementação do ensino público obrigatório. Segundo o jornal Correio Paulistano, por ser simpatizante da Revolta, Adelaide foi detida aos 102 anos, mas não ficou mais do que algumas horas na delegacia porque os estudantes de direito da Faculdade do Largo do São Francisco a estimavam muito e se mobilizaram para tirá-la da prisão. 

Ela era considerada uma pessoa muito adorável e tão conhecida na metrópole em ascensão, na década de 1920, que o pintor belga Adrien Henri Vital van Emelen (1868-1943), recém-chegado ao Brasil, retratou Adelaide em duas telas: “Negra com chapéu e cachimbo” e “Negra rezando com terço”. Em seu enterro, esteve presente grande parte da diretoria do Palmeiras e diversos torcedores.

Foto real da Vovó vestindo o escudo palmeirense em um evento da torcida [Imagem: acervo pessoal/Nina Nassar]

 O time de atletismo do Palestra Italia foi uma das primeiras equipes do Brasil a aceitar a participação de atletas negros, que garantiram muitas vitórias. O jornalista e ativista Salathiel Campos, em 1934, publicou que o clube do parque antártica deve aos elementos negros a maioria de suas glórias. “Vê-se, pois, que embora o seu aspecto colonial, o Palestra não levou a sério, ou tão longe, o preconceito da côr, chamando para as suas fileiras, como atletas, elementos brasileiros e negros, o que não faziam os chamados clubes nacionaes!“.

Circulam boatos de que o primeiro jogador negro do Palestra seria Og Moreira, em 1942, o que é incorreto, pois muito antes, em 1923, Arthur Friedenreich foi o primeiro negro a jogar e marcar um gol com a camisa do Palestra Italia, quando este e o time do Clube Atlético Paulistano formaram um combinado para enfrentar o Universal do Uruguai. Segundo Zaramella, desde sua fundação, a agremiação notavelmente institui um contraponto ao caráter elitizado do circuito futebolístico oficial da cidade, cujas ligas e campeonatos eram formados por equipes majoritariamente atreladas aos grupos economicamente dominantes. Na época de fundação do Palestra, eram poucos os clubes de origem popular.

 Os estereótipos atribuídos ao Palmeiras atualmente são fundamentados em preconceitos sobre a comunidade italiana. Quando rivais relacionam o clube ao fascismo, ignoram os fatos históricos (o Partido Fascista foi criado em 1919, e a Marcha sobre Roma, que consolidou a difusão do fascismo na Itália, ocorreu em 1922, muito depois da fundação do Palestra Italia, no Brasil). Assim como propagam uma generalização tipicamente intolerante e sentenciosa, que silencia todos os ideais críticos e humanitários dos fundadores. 

A questão do apelido “porco”, de acordo com Galuppo, veio como provocação ao operariado das indústrias Matarazzo, que trabalhavam em cima da banha de porco. “O porco vive no ambiente do chiqueiro, e aquilo, obviamente, ao final do dia, gerava um odor. E muito daquele contingente tinha como única forma de lazer depois do trabalho ir aos jogos de futebol.” Dessa forma pejorativa, os rivais associavam o italiano a um porco, denotavam uma ofensa àquela comunidade que, depois, na própria história, é ressignificada como algo positivo para os anos 80, se tornando o mascote oficial do clube.

Além do preconceito dos dias de hoje, o clube alviverde enfrentou, ao longo de muitos anos, este comportamento por parte da mídia. Segundo José Renato de Campos Araújo, em Imigração e futebol: o caso Palestra Italia, um fato que começa a surgir com maior clareza em 1917 é a parcialidade da imprensa desportiva que cobria o desenrolar diário do futebol paulistano. Ao analisar o conjunto das notícias publicadas sobre o Palestra Itália, observa-se que a imprensa menosprezava ou não dava a devida ênfase aos feitos esportivos da associação, principalmente quando o Palestra enfrentava os “grandes”. Outro aspecto a destacar é que as poucas menções aos palestrinos nas reportagens eram feitas pelo sobrenome, demarcando bem sua origem italiana.

Galuppo, que possui origem italiana, resumiu a pluralidade étnica e os anos de resistência negra no Palestra com um texto publicado em suas redes sociais: “A batalha étnico-racial no ambiente esportivo, principalmente, está sempre cruzando a história do Palestra Italia-Palmeiras, desde a sua fundação. No passado, fomos tachados como ‘Carcamanos’, ‘Italianinhos’, ‘Traidores da Pátria’, ‘Desertores’, ‘Porcos Sujos’, ‘Fascistas’, entre outros…”

“Por nossa origem imigrante, nos tornamos apátridas perante quem nunca nos suportou. Quanto mais nos ofendem, mais nos fortalecemos como coletividade em nossos princípios e valores”

Fernando Galuppo

A democracia no Palmeiras

O espírito anárquico presente na fundação do Palestra Italia nunca se dissipou. Durante a ditadura militar, o treinador Mario Travaglini adotou uma abordagem dentro de campo que refletia os ideais da equipe. No livro “No gramado em que a luta o aguarda”, ele afirma: “fomos empossados como técnicos, mas preferimos continuar como companheiros. Assim, ali não se dão ordens. Sempre que nos reunimos, comunicamos aos companheiros do elenco quais as medidas que serão postas em prática e trocamos ideias a respeito.”

Ele, junto dos jogadores Djalma Santos, Valdemar Carabina e Julio Botelho, experimentaram uma espécie de comissão técnica compartilhada que, como exposto por Zaramella, eram chamados de “quarteto da esperança”. No mundo do futebol, essa foi a primeira experiência de autogestão de um clube, uma autonomia criada pelo Palmeiras para si próprio, sem hierarquia.

Time do Palmeiras de 1969 na Taça de Prata [Imagem: Reprodução/wikimedia commons]

Travaglini ficou no Palmeiras de 1966 até 1971, mais tarde, foi também o responsável pela Democracia Corinthiana, quando treinou o time. Este, inclusive, foi um período de glória para o clube, que consagrou a chamada “primeira academia”, com ídolos como Ademir da Guia e César Maluco.

 De acordo com os jornalistas Helvio Borelli e Mário Trevisan no livro “Mario Travaglini: da academia à democracia”, o movimento alviverde desenvolvia-se na contracorrente do processo de militarização da sociedade brasileira e encontrava os limites impostos à construção da autonomia. Nos tempos da ditadura, o Palmeiras se fez resistente ao agir segundo seus ideais dentro da própria organização.

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