Por Felipe Saturnino
Naqueles meus anos mais juvenis e vulneráveis, eu abria e fechava os olhos com grande satisfação.
A 2005, eu fiz 8 anos: idade em que não se tarda demasiado a dormir nem se apressa tanto a despertar. Os sonhos são as coisas melhores, diziam, vocês o sabem, mas são água fina da chuva que se desfaz no ar. Em verdade efêmeros, são fantasias a se perder no tempo, nesse caos todo. É um erro, porém, engano no qual ainda se calca o senso comum, crer que a realidade não seja uma peça fantasiosa. Aos 8 ali e aos 18 aqui, na tentativa de recoletar uma das minhas conquistas futebolísticas mais afetuosas e valorosas, ou seja, o último título mundial são-paulino, é assim que é: a memória, que não é um mero estoque da consciência, perde-se, confunde-se, vai tropeçando para lá e para cá, oscila em regiões pouco frequentadas. Ao reescrever, contudo, um fragmento de recordação daquela bela história tricolor, está certo o que mais me importa e que não deixará de ser verdade a custo algum: o São Paulo foi campeão do mundo.
Também será seguro dizer, por outro lado, que as lembranças da conquista daquela Libertadores – e não do Mundial – de 2005 me são muito mais claras, a contar das disputas de mata-mata. À primeira delas, nas oitavas, correspondem as duas vitórias no clássico contra o Palmeiras. Nelas, os dois chutaços em gol de Cicinho, ambos de fora da área, um no velho Parque Antarctica (o São Paulo levou por 1 a 0) e outro no Morumbi (por 2 a 0), reluzem forte no espelho da memória. Assim como acende, na lâmpada da lembrança, num sinal de brilho típico do que é inesquecível, a grande atuação de Rogério Ceni na ida contra o Tigres, do México, no qual o eterno 01 marcou um casal de gols de falta e perdeu um penal. E, por fim, o jogo que tomo como o mais significante da campanha, o tenso confronto de ida das semifinais contra o River Plate, disputado aqui na capital, um embate truncado e de poucas chances, vencido por 2 a 0 com tentos de Danilo – o camisa 10 moroso e canhoto cuja posição há muito se encontra ineficientemente ocupada e do qual os são-paulinos, sob restrições, muito por ele hoje jogar no rival alvinegro da capital, sentem dissimuladas saudades – e do mesmo Ceni no seu, muito provavelmente, melhor ano da longa e premiada carreira.
Esse segundo título do São Paulo naquele ano – o primeiro havia sido o estadual paulista, logrado ao mês de abril – data daquele início de julho, cuja existência é indispensável para chegar ao mundial de fim de ano. Passada mais de uma década desde a última vez que saboreara o torneio, ganho durante o ciclo histórico do bicontinental e do bimundial 92-93, o Tricolor saiu do considerável jejum marcando quatro vezes contra o Atlético Paranaense no jogo de volta daquela decisão, realizado num Morumbi lotadíssimo, em enredo já muito sabido. O técnico era Paulo Autuori, que entrara em lugar de Leão, este campeão do Paulistão pela equipe e ido para o Japão, na fase eliminatória da Libertadores. Os gols de Fabão – aquele bom beque bruto, aguerrido e de poucos requintes técnicos -, Amoroso – um talentoso atacante com alguma idade nas costas à época, de muita experiência e recursos -, Luizão – um legítimo “fazedor” de gols, embora em fim de carreira – e Diego Tardelli – promissora cria das categorias de base, que ainda que tenha deixado seu nome nessa bela história, construiu sua verdadeira história fora dos arredores tricolores – sacramentaram a vitoriosa campanha. Foi um claro passeio.
O que não era tão claro é se eu vestia uma recém ganha camisa são-paulina – que ainda hoje uso com algum conforto e sem escrúpulos por não ter muito crescido -, aquele primeiro uniforme, tradicional e belíssimo, mas eu portava uma bandeira tricolor, isto é certo, que talvez não tenha sido por mim segurada durante todo o jogo, visto pela televisão cinza de 24 polegadas da sala, quem sabe mesmo eu a tenha cedido a meu irmão, ou mesmo a meu pai, a algum instante. Seja que for, aquele desempenho convincente e amplamente superior da equipe não se encontra perdido em meio a recordações nubladas ou, por assim dizer, incertas: tem-se a certeza que era noite, que não chovia nem ao estádio nem à minha casa e que o complexo clima paulistano era agradável. Para além do cenário, a imagem mais forte, talvez das mais fortes da minha vida de torcedor e amante da peleja, seja o bico do lateral-direito Cicinho em direção à torcida alucinada a algum momento do jogo, e, logo após isto se dar, a reação fervorosa do ótimo camisa 2. Tipo de lance do qual se diz, ou ainda, que quer dizer: “Hoje, não perdemos.”
Não perderam, jamais perderiam. Não é propaganda enganosa ou por palavreados à toa que o mito Ceni afirmou, mais recentemente em seu adeus e com alguma veemência, que “o time de 2005 foi a equipe de mais alma com que joguei”. Essa dúvida me serpenteia no espírito e às vezes vem ter comigo. De fato, conquistas como as de 2005 eternizam um seleto grupo de jogadores, mas também ocorre o mesmo com o tricampeonato brasileiro de 2006, 2007 e 2008 – um feito enorme -, de times fortes de cabeça – e com um grupo similar entre os três anos – que, porém, não sagraram a Libertadores.
Naquele afã de prolongar a minha percepção da vitória de 10 anos atrás, guardada no armazém das lembranças como uma das mais gratificantes, era minha pretensão básica comprar pôsteres e revistas logo na manhã seguinte ao jogo, coisa que meu irmão fez por mim, trazendo o Lance! que hoje acumula poeira nalguma sacola, além de rever os lances dos gols, que todas as emissoras reprisavam, sem parar. Ele também gritou e pulou nos quatro gols, não por mim, mas comigo. Meu pai comemorava e gritava, sem pular, e havia de ser tarde quando fechei os olhos, mais satisfeito que o normal, e era tarde da manhã quando abri os olhos para o noticiário esportivo, ainda mais satisfeito.
As visões retorcidas a seguir versariam sobre um letárgico campeonato brasileiro, caso dele conviesse falar, sempre com pouco sentido e de pouca razão aos clubes que vencedores da Copa Libertadores, ainda que descartá-lo seja, certamente, ato irresponsável. Foi insosso pois, de qualquer forma, na sequência do torneio continental, se encontra imediatamente na mira das ambições, seja para torcedor ou time, o mundial de clubes.
Aí, escureceu e era dezembro. Uma voz veio e disse assim:
– Acorda, é hora!
Talvez tenha sido assim. Na verdade, é mais provável que não.
A minha véspera de final de mundial não foi passada em casa, não. Equívoco que jamais poderá ser cometido. Cuidava, então, aquela voz que chamava ser uma voz de timbre não são-paulino, visto que há grande parte de meus amigos e familiares que não o são. Abaixo de mim, havia o colchão sobre o chão frio e os meus olhos fechados abriram. O relógio devia marcar seis horas da matina e a manhã era cinza, e o mundial, bem verdade, inicia sua disputa sob esse invariável cenário, uma manhã cinzenta. Devia ser cinza porque muito cedo, mas logo, logo se ia ver pintá-la de branco, preto e vermelho.
– Acorda! – vinha a voz de novo e se afastava, mas talvez não tenha havido esse grito.
A casa de meu padrinho era, à época, um de meus lugares preferidos. Hoje, não é, pois que as coisas mudam e as pessoas mudam junto delas. Ele continua a ser um corintiano dos mais pessimistas dos que já ouvi e vi, ainda em tempos bons como são estes, e devia ter vindo acordar-me, ou não. O certo é que nós veríamos o jogo em minha casa. Não se poderia deixar de fazê-lo. O terreno era todo conhecido, algo bom para um torcedor em momento de ânsia, ou não: o Liverpool era um time a que me havia habituado e saltava aos olhos, mas não pela técnica e sim, pela garra, o meu predileto nos videogames, o campeão europeu com a melhor defesa da Europa, o time de Gerrard, uma equipe de muita alma – e que alma, vai bastar relembrar, para tanto, o grande empate em tempo normal e sequente triunfo que os ingleses buscaram diante do Milan na finalíssima da Liga dos Campeões daquele ano, jogo que foi de 3 a 0 contra na etapa inicial para vitória épica dos Reds nos pênaltis, no que veio a ser conhecido como “Milagre de Istambul”. O São Paulo não era o favorito.
Na memória:
A bandeira tricolor colocada na minha janela.
Alguém a apitar com empolgação pela madrugada recém-desfeita.
Os vizinhos a gritar principalmente quando do gol são-paulino.
O gol de Mineiro, típico do volante que sabe se enfiar à frente, é típico de quem se acostumou a fazer bem a sua função no Morumbi, em São Paulo, mas também no Japão, ali em Tóquio, se levamos precisão em estima. À memória não convém relembrar o gol, todos o sabemos. Todos temos de saber – e exaltar – da mesma forma a importância do passe brilhante de Aloísio Chulapa para o número 7 anotar o tento. Aloísio me marcou demais naquele tempo – e hoje continua a marcar, por razões que tem a ver com seu status de celebridade das mídias, que não encontram razão de ser aqui: o atacante, chegado para substituir o bom e velho Luizão no ataque, fazendo dupla com Amoroso, deu seu toque genial de Ronaldinho do Paraguai – como ele mesmo, irreverente, uma vez afirmou – que achou Mineiro nos entrespaços da zaga do Liverpool, que não era vazado havia 11 jogos.
O momento que levo mais em conta naquele grande entrave, contudo, é a defesa magistral de Rogério Ceni, deflagrada no minuto seis da segunda parte do jogo. E, se já é esta a hora de definir ou pitacar sobre maiores momentos em sua carreira, ou se a faz em atraso, eu bato o pé: foi a defesa mais importante de sua jornada brilhante, uma das mais sensacionais que vi.
Não contraditoriamente, foi o vigor ofensivo dos ingleses que chamou atenção, que se não fosse por Ceni e uma zaga sólida, talvez a história do mundial tivesse sido manobrada noutra direção. É dever relembrar que a equipe teve três gols anulados. Foram algo como mais de 20 arremates, contra apenas 3 dos são-paulinos, deixando visível a situação defensiva do time brasileiro naquele jogo; isso obviamente não quer dizer que o Tricolornão soubesse atacar ou mostrar suas garras e ganas de vencer. Seu ímpeto e seu fado de vitorioso o conduzem a esse estágio de sucesso inestimável.
A celebração, em verdade, não destoou em demasia dos pulos e gritos contemplados da final da Libertadores – e a memória me engana, dizendo ora que estava vestindo a camisa, ora não. A diferença é que, se a nós isso era possível dar, havíamos ganho o mundo, guardadas as críticas que tenho ao mundial hoje e que não tinha à época. Mas pouco importa. Aquele time, o time do 3-5-2 – depois reeditado com sucesso por Muricy -, da dupla de volantes Josué e Mineiro, de laterais Júnior e Cicinho, de Lugano, de Amoroso, de Danilo e, como não deixará de ser, de Rogério, fez-me ganhar o mundo. Saímos à rua com a bandeira, eu tímido, porque era o desvirginar das minhas comemorações tricolores. E eu abria e fechava os olhos com grande satisfação, o mundo em três cores. E hoje, eu abro e fecho os olhos, faz dez anos. Mas já?